Luz e Sombra

A Karnart visita 'A Farsa' de Raúl Brandão

Luz e Sombra

Depois de Húmus e Ilhas, a KARNART regressa ao mundo simultaneamente tão português como universal de Raul Brandão. A Farsa, texto fragmentado por uma ténue luminosidade entre sombras vincadas da paisagem e do humano, deixa-se apropriar na leitura perfinst – performance e instalação –, timbre criativo do coletivo. Sara Carinhas, a solo, dá expressão corpórea à narração por Luís Castro das palavras lancinantes do escritor portuense.

Há pelo menos três razões incontornáveis que levam Luís Castro e a KARNART a reincidir na obra de Raúl Brandão (1867-1930): o universo das personagens, a marca daquilo que poderíamos designar como “portugalidade” e as potencialidades performativas dos seus textos. A Farsa, romance datado de 1903, conjuga-as na perfeição. As personagens são um “espelho social”, tão particulares como universais; “os lados sociológico, antropológico e telúrico” vincam uma certa ideia de portugalidade, que se encontra mais próxima dos nossos tempos do que supomos; e o modo como a palavra “humaniza as coisas do mundo” oferece um amplo campo de experimentação ao nível performativo e plástico.

Para adaptar o texto de Brandão à linguagem criativa da KARNART, Castro procedeu a um intenso trabalho dramatúrgico que conduziu à expressão cénica de duas partes distintas no espetáculo. Numa primeira, o móbil é sobretudo performativo, com Sara Carinhas a entregar-se à corporalização das várias personagens do romance, sendo o movimento e o gesto partículas materializáveis do caráter dessas mesmas personagens e da sua imanente ligação ao mundo, à paisagem e à terra (o “lado telúrico” da obra de Brandão que muito seduz o diretor do espetáculo). A atriz é peça de museu, “objeto instalado”, até substituir a narração em off e humanizar-se ao ser ela mesma a assumir a palavra. Segundo Luís Castro, um trabalho como este requer “a capacidade técnica e o rigor de uma atriz como Sara Carinhas [que trabalhara com a KARNART em 2010, em Húmus], tão eficaz no campo performativo e plástico como enquanto atriz no sentido mais ‘clássico’.”

Na primeira parte do espetáculo, a atriz entregar-se à corporalização das várias personagens do romance de Brandão.

 

Na segunda parte do espetáculo, a “materialização” da atriz encontra um novo desafio. Tal qual objeto vivo (uma boneca, talvez) de olhos vazos, cega como uma sombra, percorre sete mesas, cada uma com três níveis, construindo 21 pequenas instalações, num processo que o público é convidado a assistir bem de perto, enquanto a narrativa e a excelente paisagem sonora criada por Adriano Filipe nos conduzem pelas tortuosas fragas do humano. Para Sara Carinhas, “apesar da exigência e da meticulosidade requerida, a construção dos objetos em tempo real assemelha-se ao trabalho sobre os textos. É necessário dominá-los, senti-los e saber como os manipular.”

A Farsa, que estreia a 25 de setembro na Sala-Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, é mais do que um espetáculo de teatro. É uma experiência sensorial de luz e sombra pelos trilhos das palavras e das imagens, onde somos livres de desfragmentar contextos e emoções a cada momento. Um processo que não se esgota na última récita no D. Maria II. A partir de 29 de outubro, o espetáculo continua no Gabinete Curiosidades Karnart, onde, como esclarece Luís Castro, será apresentada “uma variável perfinst de reflexão sobre este mesmo objeto”.