Nos 20 Anos do Útero

‘O Duelo’ estreia na Sala Garrett

Nos 20 Anos do Útero

Para celebrar 20 anos de atividade, o coletivo Útero estreia-se na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II para mostrar a sua visão de O Duelo, de Bernardo Santareno. Sem conceções, num exercício de absoluta liberdade, Miguel Moreira e sete intérpretes cocriadores guiam-nos numa viagem singular pelo texto de um dos maiores dramaturgos portugueses do século XX.

Sempre foram, e gostam de ser, um coletivo à margem. Aliás, a marca de marginalidade está na génese do coletivo (hoje liderado por Miguel Moreira com os bailarinos Romeu Runa, Catarina Félix e Sandra Rosado) desde os primórdios, quando sediou a sua atividade no Espaço Ginjal, na margem sul do Tejo. Não será, portanto, surpreendente – apesar de, nos últimos anos, as criações do Útero terem saltado dos “armazéns sujos da cintura industrial e portuária para as grandes salas (não só de Portugal, como do mundo [The Old King marcou a estreia do coletivo no Festival de Avignon, em 2012]) – que, ao apresentar-se pela primeira vez no Teatro Nacional D. Maria II, e logo na Sala Garrett, o Útero aliasse às marcas próprias do seu teatro/dança um autor só aparentemente improvável: Bernardo Santareno.

Miguel Moreira reconhece essa suposta improbabilidade. Mas, na verdade, O Duelo andava na cabeça do encenador e coreógrafo desde há uma década. Porém, “foi preciso o Tiago Rodrigues [atual diretor do Nacional] convidar-nos a celebrar aqui os 20 anos do Útero para pegar no texto do Santareno, rompendo assim a tendência dos últimos anos, com peças mais coreográficas, totalmente, ou quase, despojadas de texto”.

”Considero Bernardo Santareno um autor ultra contemporâneo”, sublinha Miguel Moreira

 

Mas porque é que só na aparência o teatro de Santareno pode parecer improvável no percurso do Útero? Luiz Francisco Rebelo, na sua História do Teatro Português, ajuda-nos a responder à questão, ao caracterizar a obra do autor ribatejano como oscilante “entre polos (de sinal contrário, mas de força equivalente) de uma fascinação do mal e de uma obsessão de angelismo”, capaz de realizar “a inesperada fusão de temas de raiz popular com as preocupações existenciais mais fundamente sentidas na carne e no espírito do homem seu e nosso contemporâneo”. Com as devidas distâncias, o percurso criativo do Útero (do Ginjal às grandes salas) tem tudo para se sentir confortável no universo de Santareno, que Miguel Moreira considera mesmo “um autor ultra contemporâneo.”

À semelhança de tantos espetáculos criados pelo Útero, em O Duelo sente-se a presença do fetichismo, da ambiguidade sexual, da violência sadomasoquista, do prazer, de almas humanas que mergulham no lado mais negro e oculto de si mesmas. “São, todos eles, temas muito presentes na obra de Santareno”, sublinha Miguel Moreira, ressalvando a sua herança bauschiana: “o contacto que tivemos naquele ano de 1994 [Lisboa, Capital Europeia da Cultura] com as criações de Pina Bausch marcou-nos para sempre”.

O magnifico texto de Santareno, “entre o poético e filosófico e uma crueza quase animal”, penetra num “lugar de espanto, irreal”

 

Assim, o magnifico texto de Santareno, “entre o poético e filosófico e uma crueza quase animal”, penetra num “lugar de espanto, irreal”, como o considera o encenador. “Quisemos um ambiente pictórico, impressionista”, onde os sete intérpretes se movem, habitando uma lezíria imaginada, carregada de toda uma simbologia rural que parece pertencer a um Portugal esquecido, mas “ainda tão presente”. E é ali, entre trevas e nevoeiro, água que cai e terra que suja, que os poderosos oprimem os mais fracos, e os homens ganham uma dimensão animal, sombria. Mas, também, a intensa vontade de se libertarem, como que para fugir ao destino inconjurável enunciado nas palavras de Rosária, a mãe amarga e sofrida, para  o filho Ângelo, no primeiro ato da peça: “Eles são os senhores, filho, e a gente os servos, eles podem tudo e a gente nada.”