Grada Kilomba

The Most Beautiful Language

Grada Kilomba

Grada Kilomba é uma escritora, professora e artista interdisciplinar portuguesa que tem visto o seu nome a ser cada vez mais solicitado nos circuitos mundiais da arte contemporânea. A residir em Berlim, onde tem um percurso ativo na cena artística, Grada apresenta agora as suas duas primeiras exposições individuais no nosso país.

A sua formação é em psicologia clínica e psicanálise. Como é que a arte surge no seu percurso?

Na minha família, fui a primeira que teve a grande oportunidade de estudar, e estudar significava “fazer algo sério”,  a arte era vista como uma paixão, que se alivia no tempo livre. E de todas as coisas “sérias” o que mais me apaixonava era a psicanálise, por isso a escolhi como o meu começo. Mas esta escolha não foi por acaso, pois a psicanálise trabalha com o inconsciente, assim como a arte. Trabalha com imagens, com símbolos, metáforas e interpretações da realidade. Por isso esta passagem foi muito natural. Logo depois de concluir os meus estudos, comecei por trabalhar com ‘sobreviventes de guerra’, e com temas ligadas à memória, trauma, pós-colonialismo. Rapidamente estes temas passaram a ser escritos, depois encenados, depois visualizados, e o meu trabalho tornou-se cada vez mais experimental e artístico. Penso que a arte é como um rio que percorre muitos caminhos, mas acaba sempre por desaguar nas águas do mar. Sinto-me um pouco como um rio que passou por vários sítios até chegar ao mar.

Que influência tem a psicologia na sua obra?

A psicanálise é muito presente no meu trabalho, não pelo facto de eu ter estudado, mas muito mais porque houve uma série de artistas e autores importantíssimos na minha carreira que me inspiraram e, acima de tudo, me deram uma linguagem psicanalítica e visual para lidar com a minha história  – o que não aconteceu com o curriculum da universidade. Autores como Frantz Fanon, Toni Morrison, Bell Hooks, W.E.B. du Bois, Audre Lord, e os seus livros que foram verdadeiras bíblias para mim, e que nunca encontrei nas bibliotecas da universidade, mas que lia repetidamente em casa nos originais em francês e inglês. Estes tinham uma abordagem não só analítica, mas extremamente visual e metafórica da realidade pós-colonial, que me encantou e me definiu como artista.

Como é que as suas leituras encenadas, as suas performances e as suas instalações de vídeo e som ganham vida?

Julgo que a escrita é o começo de todos os meus trabalhos. Trabalhar com texto, com palavras, com histórias, e construir narrativas, é sempre a primeira fase do meu trabalho. Os meus textos têm uma textura híbrida, são simultaneamente subjetivos, políticos, teóricos, mas também poéticos. E é exatamente esta forma de conhecimento que me interessa tornar vivido, emocional e corporal – por isso eu tenho chamado o meu trabalho de Performing Knowledge. Esta é a segunda fase do meu trabalho e a que melhor define aquilo que faço, que é dar corpo, som, imagem, movimento aos meus textos. Quando passo a esta segunda fase, não estou particularmente interessada em trabalhar com um único formato, como filme, ou performance, ou teatro, mas sim em contar histórias. Elas podem aparecer em múltiplos e híbridos formatos: numa leitura encenada em que os atores dão voz às histórias como em Plantation Memories (em ambas exposições); ou numa instalação de vídeo como The Desire Project em que o próprio texto se torna a imagem e a música se torna a voz (no MAAT); ou Illusions em que a história de Narciso e Eco é coreografada e ao mesmo tempo narrada num segundo ecrã, juntando filme e performance numa instalação (que foi mostrada este ano na Documenta 14 em Kassel, e especialmente reconfigurada para a exposição da Avenida da Índia). Cada tema e cada história precisa da sua própria linguagem e formato para ser contada, e é muito excitante “escutar” como uma história quer ser contada.

“A psicanálise trabalha com o inconsciente, assim como a arte. Trabalha com imagens, com símbolos, metáforas e interpretações da realidade.”

 

O seu trabalho tem sublinhado a urgência de uma descolonização mental que não está cumprida, apesar das descolonizações formais. Pode explicar?

A descolonização mental parece-me ser a mais urgente, mas também a mais complexa, pois tem a ver com a criação de uma nova linguagem, não só gráfica, mas também visual. E digo isto por uma razão muito simples: toda a linguagem colonial, e a linguagem do racismo, é discursiva. Ou seja, o racismo não é algo biológico, mas discursivo, funciona através de uma associação de palavras e de imagens, que não são reais, mas que se tornam equivalentes através de uma associação. Por exemplo, um tema atual como a imigração. Quando se fala de imigração fala-se geralmente de “imigrantes ilegais”, associação entre duas palavras não equivalentes, mas que se tornam, através de um processo associativo de palavras. Palavras que, por sua vez, criam imagens: ser ilegal, significa ser ilegítimo; ilegítimo significa ser contra a lei; ser contra a lei significa ser criminoso; e os criminosos metem medo. O discurso sobre a imigração é um discurso de medo, e se perguntarmos em geral o que a maioria das pessoas pensam sobre os “imigrantes” , elas responderão “que têm medo”. Estas associações são registadas pelo nosso inconsciente, e reproduzem-se através de um discurso de palavras e de imagens que não são reais, mas que se tornam credíveis. Por isso a arte, assim como a literatura, têm um papel tão importante em criar novas associações, novas palavras e imagens.

Na Galeria Avenida da Índia expõe, até março, The Most Beautiful Language. O que é que essa língua tão bela tem para nos dizer?

No catálogo desta exposição, a minha curadora Gabi Ngcobo escreveu um texto lindíssimo que conta a história de uma senhora que, nos anos 50, escreveu uma carta à Galeria Nacional do Zimbabwe (na altura Rhodesia), a expressar a sua irritação pelo facto dos “homens africanos” trabalharem dentro dos museus, a cuidar das peças de arte. Ela estava especialmente irritada com som da língua deles, que conversavam na língua Shona. Para a Sra. Brown, o nome dela, o som desta língua nos espaços do museu perturbava profundamente as suas expectativas de como arte deveria ser vivenciada. Na carta, ela sugere então que os “africanos” sejam removidos ou que não possam mais falar as “suas” línguas dentro da galeria. Isso, ela insistiu, manteria a ordem de como uma exposição e a arte deveriam ser vivenciadas. Esta história verdadeira revela a incapacidade das instituições artísticas, culturais, mas também académicas, lidarem não só com a realidade pós-colonial, mas também com os seus sujeitos, com as suas línguas, narrativas, imagens e conhecimentos. Durante todos estes anos tenho mostrado o meu trabalho internacionalmente, nas mais distintas casas, mas é a primeira vez na minha carreira que recebo um convite de Portugal onde nasci e cresci. Nas minhas viagens de trabalho quando digo que sou portuguesa, respondem-me com entusiasmo que o português é “the most beautiful language”. Esta é uma situação irónica, que eu queria usar como título para esta primeira exposição individual em Portugal, e que levanta duas questões: quais os corpos que podem representar estalíngua tão bela? E que línguas é que estes corpos falam? Como na história acima, o título The Most Beautiful Language brinca com a fantasia de que as línguas dominantes possuem uma beleza que fica acima das línguas que continuam a ser reprimidas e apagadas através dos processos de colonização. E, por outro lado. o título alude à importância de criar novas línguas artísticas, e que estas possam ser ouvidas, visualizadas e vivenciadas, em espaços como museus e galerias. Para mim, esta exposição está recheada de novas línguas, línguas que muitos de nós nunca pudemos falar antes.

Em paralelo, no MAAT está patente a exposição Secrets to Tell, onde o assunto é, uma vez mais, a palavra. Que importância tem ela para si?

Nesta exposição a palavra torna-se literalmente visível, pois a peça central será a instalação de vídeo The Desire Project, que foi originalmente criada para a Bienal de São Paulo, em 2016. Esta instalação é composta por três canais e contada em três atos, e a sua particularidade é que a palavra é usada como o único elemento visual. Como ponto de partida tive a história da Escrava Anastácia, uma figura feminina que durante a escravatura foi obrigada a usar uma mordaça e impedida de falar, como era habitual. Esta figura tem sido uma grande inspiração no meu trabalho, pois levanta questões como: Quem pode falar? Quem é que não pode? E, acima de tudo, sobre o que é que se pode falar? Para abordar estas questões, que ainda são atuais, usei o texto como única imagem visual que se movimenta para narrar uma história. Da mesma forma escolhi usar a música como um elemento de narração. Para isso, em colaboração com Moses Leo, que compôs a música, trabalhamos durante semanas no texto e na percussão até que ambos se tornassem um e respirassem como um corpo vivo. A música, assim como a palavra, torna-se central neste trabalho, e ambos aparecem como uma nova linguagem para narrar uma história silenciada.

“Há um racismo institucionalizado e estrutural que nos acompanha diariamente e que consegue construir uma normalidade.”

 

O seu nome é um dos mais requisitados nos circuitos internacionais de arte contemporânea. Como é que só agora surgiu a oportunidade de expor individualmente em Portugal?

Esta é a resposta mais simples, começa com R e acaba com O, e chama-se racismo. Há um racismo institucionalizado e estrutural que nos acompanha diariamente e que consegue construir uma normalidade, em que as pessoas negras no nosso país são sistematicamente excluídas das estruturas e das instituições, sem que isso seja necessariamente visto como anormal. É como ver um filme dos anos 50, em que quase todos os personagens são homens, sem que isso incomode os espectadores. É criada uma normalidade que não é normal. O racismo tem essa capacidade de tornar o anormal ou o incoerente, em algo normal. E não há nada mais violento do que lidar com a incoerência. É incoerente quando artistas e intelectuais negros são reconhecidos internacionalmente, mas não podem fazer parte do cânone nacional. E aqui temos que perguntar de novo: quais os corpos que podem representar a língua mais bela; e quais as línguas é que estes corpos falam? Estes convites são importantíssimos, pois mostram que estamos prontos para criar uma nova normalidade, não só para mim, mas para muitos outros artistas que incoerentemente têm sido colocados à margem dos museus e das galerias nacionais. E isso é maravilhoso…