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Helena Lapas

Poética das Superfícies e Marcas do Tempo - Parte I

artes
21 novembro 2019 a 31 janeiro 2020
vários horários
Galeria Ratton
Helena Lapas

A recorrente sensibilidade epidérmica de Helena Lapas apresenta nas recentes obras expostas na Galeria Ratton, um dos seus momentos mais marcantes. Aqui, a sensibilização das superfícies exibem-se como uma espécie de relicários.

Para esse efeito de relicário contribuí o modo como a artista anula os fundos na transparência. Anulando uma superfície base, as superfícies jogam-se na transparência, lembrando o Le Grand Verre de Marcel Duchamp, aqui explorado num modo particular de emolduramento ou enclausuramento, colocando as suas peles a agirem numa dinâmica compositiva ainda mais autónoma. Neste caso não se trata de abrir uma relação para o espaço por detrás dos elementos na abertura transparente do fundo, como no Le Grand Verre, mas de anular esse fundo para isolar e fazer sobressair as peles. A parede por detrás não é para entrar, mas pelo contrário, para se segregar, para não interferir.

Tal relaciona-se com o interesse de Helena Lapas em afirmar a moldura enquanto modo de encerrar o campo visual próprio, o lugar onde devemos olhar, que é esse lugar onde se circunscrevem e suspendem os elementos que foram alvos da sua manipulação. Há um gosto em fechar, em delimitar, tornando claro o que foi alvo da acção da artista e o que é a sua produção artística – em suma, separa, isola e destaca.

Helena Lapas quer manter essa força da moldura do quadro tradicional, essa eficácia de separar o que está dentro e o que está fora, o que é quadro e o que está fora do quadro, como destaca Jacques Derrida em La Vérité en Peinture. Não tanto para fazer funcionar um tempo interno representado, uma cena imagética na tradição da pintura e escultura, por segregação do tempo do espaço vivido do observador, mas para isolar esses elementos que as suas mãos conceberam – para o destacar não enquanto imagem, mas exactamente enquanto presença ao olhar, parecendo reagir e resistir ao excesso actual de imagens fáceis, da proliferação de imagens feitas por máquinas de modo imediato que saturam o nosso ambiente visual. Em Helena Lapas a moldura fecha um campo de autonomia das peles no interior do qual estas podem recortar o seu próprio limite. É a forma dessas peles que decide o seu próprio limite, porque este já não lhes é imposto por uma superfície de base (de fundo) que recebe as outras, mas tudo se fecha ao abrigo de uma moldura que delimita o foco do nosso olhar. Não imagem do mundo, nem imagem num mundo já saturado de imagens, mas a severidade da autonomia de um campo visual onde uma nova superfície de mundo se recorta e oferece como uma presença de matéria sensível enquanto imagem.

Também por esta razão, o tempo que aí se pretende circunscrever não é o tempo de uma narrativa ou representação da imagem, mas o do próprio material e o da temporalidade do trabalho da artista, solicitando a percepção a debruçar-se sobre esse tempo próprio à produção. Há como que uma reação à actual imagem-ecrã, em que as imagens se oferecem facilmente invadindo e ritmando o nosso tempo de observador. Esta moldura não é a da imagem electrónica do ecrã, que cintila por toda a superfície em tempo real, mas uma moldura que isola e destaca o que está ali enquanto realidade perante nós e produzida para nós. Não é uma imagem que nos invade, mas uma presença de que nos podemos aproximar.

Há assim uma imperceptível ontologia nestas obras de Helena Lapas, uma ética que devolve atitude à percepção nessa recuperação de um horizonte relacional e de liberdade que nos permite retomar o espanto e a credulidade perante a opacidade da presença da realidade. No tempo da imagem tradicional, sobretudo quando ela era rara, a imagem era a possibilidade de ver para além da realidade. O ecrã, enquanto imagem electrónica, é o que vemos para não vermos a realidade («A visão já não é a possibilidade de ver, mas a impossibilidade de não ver», afirmou Gary Hill), um fluxo imagético que nos rouba o olhar ao ver. As peles de Helena Lapas, pela crueza da sua presença material, pela combinação sensível em que sentimos as mãos da artista a mexer e a decidir, devolve o ver ao olhar, assinala a força de uma presença visual que é uma alternativa ao excesso de imagens. É como um encontro com um direito a ver num tempo saturado de imagens, uma alternativa à proposta do direito à cegueira que Paul Virilio contrapõe a esse excesso, de modo a podermos recuperar esse prazer de estarmos perante uma realidade trabalhada com uma teknè humanizada… e feminina. No fundo, reencontrar um lugar para a artisticidade das formas, que resiste como uma relíquia sensível, onde ainda funcione uma experiência estética.

Para o núcleo de obras a expor na Galeria Ratton foi também concebido um mosaico a partir de uma tapeçaria de Helena Lapas. A sensibilidade simultaneamente textural e cromática dos fios de cor e tecidos são transferidos para a dureza das pequenas pedras. Há uma trans-mediação que provoca fatalmente a experiência de uma transmutação formal. O fascínio está nesse jogo de transferência, na espera do que vai surgir em mosaico a partir do que a tapeçaria sugere. A forte sensibilidade de Helena Lapas às texturas e à expressividade das superfícies, torna o trabalho tão delicado como de desafio. Não se trata de escolher pedras com a mesma cor dos fios de cor e colocar na mesma proporção de espaço. Tal como os tecidos conjugados criam cores e texturas próprias à síntese de olhar (daí as tradicionais relações com o pontilhismo do impressionismo científico de Seurat), também as tesselas do mosaico (que aqui são vários tipos de pedra e vidro) sofre um particular processos de síntese. Tal como a dureza e maleabilidade dos materiais são diferentes, o que resulta em cada um destes media, com matérias e técnicas diferentes são uma diferença a gerir. O jogo da transmutação dessa sensibilidade textural, no esforço de criação de um análogo de síntese textural, articulado com as dificuldades em prever completamente os resultados, obrigou a processos de experimentação que tornou o processo tanto de pesquisa como de criação.

Fernando Rosa Dias

Segunda a sexta, das 10h às 13h30/15h às 9h30
Visita guiada 25 janeiro, às 15h | Marcação: 213 460 948


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