Para que a memória não se apague

Uma visita à exposição permanente do Museu do Aljube

Para que a memória não se apague

Inaugurado a 25 de Abril deste ano, o Museu do Aljube é uma evocação à resistência e à liberdade, protagonizada por homens e mulheres que inscreveram, com incalculáveis sacrifícios, o combate à longa ditadura salazarista. A exposição permanente é um repositório da memória, para que nenhuma geração esqueça os valores da liberdade e da democracia.

Da antiga cadeia do Aljube, pouco resta. Na década de 60 do século passado, após uma série de campanhas de denúncia com repercussão internacional, a ditadura de Salazar encerrava este tenebroso estabelecimento prisional situado no coração de Lisboa. A manobra de branqueamento perpetrada pelo fascismo fez desaparecer tudo aquilo que, no interior do edifício, remetia para o caráter repressor do regime. O velho edifício, com uma história prisional de séculos, e muitas lágrimas e sangue derramados, teve de esperar quase meio século para ser aberto ao público como museu. Um museu vivo de memórias que não podem, nem devem ser esquecidas, a bem dos valores da democracia.

Um século com pouca liberdade de imprensa

A instauração da República e a Primeira Guerra Mundial criaram, nos primeiros decénios do século XX, um conjunto de conturbações na sociedade portuguesa que desaguam, primeiro, na Ditadura Militar (1926-1933) e, depois, no Estado Novo (1933-1974). São 48 anos de desmantelamento do Estado liberal, do multipartidarismo, do sindicalismo livre e da liberdade de imprensa que condenam Portugal a um obscurantismo atroz, quebrado pelo golpe dos militares, a 25 de Abril de 1974.

O início desta viagem pelo Museu do Aljube tem como cenário o Portugal entre as duas guerras mundiais, dando particular ênfase aos condicionamentos à liberdade de imprensa. Como nos refere o diretor do Museu, o historiador Luís Farinha, “o século XX português ficou muito marcado pela falta de liberdade de imprensa. É preciso não esquecer que a censura é ainda instituída durante a Primeira República.”

São inúmeras as reproduções de documentos censurados, desde capas de periódicos a artigos. A força do “lápis azul” amputa os cidadãos do conhecimento sobre a realidade dos factos e a imprensa torna-se uma extensão natural dos interesses do regime ditatorial.

 

Resistir e subverter as “verdades indiscutíveis” do Salazarismo

Focos de resistência ao regime e aos condicionamentos dos censores, a imprensa clandestina desempenha um papel essencial na oposição a Salazar. Depois de percorrermos o sombrio corredor das “verdades indiscutíveis” do Estado Novo – “Deus, Pátria e Família” –, uma sala inteira é dedicada à imprensa clandestina que, muito mais do que meios de propaganda, eram veículo único para denunciar a opressão, e passar informações sobre o país e o mundo a partir de pontos de vistas não oficiais.

Para além do Avante!, jornal oficial do Partido Comunista Português, podemos encontrar dezenas de títulos que representam praticamente todas as famílias políticas portuguesas, da direita mais radical à extrema esquerda, ao longo dos 48 anos de ditadura. Também a rádio não é esquecida, enaltecendo-se, com reprodução sonora, as emissões de rádios oposicionistas, como a Portugal Livre ou a Voz da Liberdade.

A memória fotográfica da opressão ou as condições em que se realizavam as reuniões clandestinas, se redigiam os artigos ou se imprimia um jornal clandestino demonstram toda a coragem e engenho dos que ousaram resistir.

A prisão nos curros

O caráter violento e opressor do regime encontra-se plasmado nos seus cárceres em Portugal e nas colónias ultramarinas. O Aljube – prisão eclesiástica até meados do século XIX, depois, prisão de mulheres e, a partir da Ditadura Militar, destinada a presos políticos e sociais, que se torna, mais tarde cadeia privada da polícia política –, à semelhança de outras prisões do fascismo, continha a marca da arbitrariedade da opressão salazarista.

Depois dos longos interrogatórios, da tortura e da humilhação, os prisioneiros chegavam ao edifício da Rua Augusto Rosa onde eram encarcerados nos chamados curros, ou “gavetas”. Originalmente, estas celas com cerca de um metro de largura por dois de comprimento, sem luz natural e praticamente sem ar, eram 14. Para o atual Museu foram reconstruídas quatro onde, sem entrarmos, é possível experienciar a sensação asfixiante porque passaram os presos.

De facto, não é fácil imaginar o que seria estar ali, uma hora sequer, em total isolamento. Domingos Abrantes, dirigente comunista, foi isolado num curro durante seis meses. Lino Lima, outro destacado oposicionista, comparou-os a “sarcófagos”. O falecido dirigente do MPLA Joaquim Pinto de Andrade denunciou mesmo, num Tribunal Plenário em 1971, a sua experiência, referindo ter sido “lançado numa enxovia estreitíssima (…), onde a luz e o ar entravam por um postigo de 15 por 20 centímetros, filtrados através de duas férreas portas, postigo, aliás permanentemente fechado.”

Luís Farinha aponta ainda uma curiosidade: o espaço é de tal modo exíguo e claustrofóbico, que as lâmpadas colocadas no teto tendem a fundir-se em poucas horas.

Depois da guerra, a Revolução

No terceiro piso do Museu, o colonialismo e a luta anticolonial estão em destaque. Ao imparável movimento do fim dos impérios europeus, Salazar resiste lançando Portugal num esforço de guerra que marca o princípio do fim do regime. Entre 1961 e 1974, ao país amordaçado junta-se um esforço de guerra que marcará da forma mais terrível toda uma geração de portugueses e africanos.

Por fim, Abril. Antecedida por um memorial em construção com o nome das vítimas da resistência ao fascismo – “os que ficaram pelo caminho”, assim é denominado – e pela epígrafe “Democracia”, uma sala evoca os “capitães” e o dia 25 de Abril de 1974. Com uma parede inteira de cravos vermelhos…

 

Um Museu vivo de memórias

Equipado com um Centro de Documentação que, no futuro, disponibilizará um vasto espólio bibliográfico e documental sobre a resistência ao Estado Novo, o Museu do Aljube dispõe, no último piso, de uma agradável cafetaria, com vista sobre o rio, e de um pequeno auditório.

Segundo o seu diretor, “o auditório vai passar a acolher, já a partir de setembro, várias iniciativas de âmbito cultural. No final de setembro, iniciam-se as Tertúlias com a presença de antigos presos políticos e a exibição de filmes; e em outubro, às sextas, haverá um ciclo de Música de Protesto, com a atuação de baladeiros.”

O Museu é ainda uma obra em construção. E, assim, deverá continuar a ser. Como sublinha Luís Farinha, “queremos que as pessoas que viveram a ditadura continuem a vir ter connosco e a enriquecer este espólio coletivo com as suas lembranças e os seus próprios acervos.”

Para que não nos falte, de novo, a Liberdade e a Democracia pelas quais tantos se bateram.