A última sessão

'O Cinema' pelos Artistas Unidos

A última sessão

A multipremiada peça da dramaturga norte-americana Annie Baker, O Cinema, estreia-se em palcos portugueses com direção de Pedro Carraca. Rita Cabaço, António Simão, Bruno Huca e Pedro Gabriel Marques são os trabalhadores da velha sala de cinema de província que parece anunciar a todo o instante a sua última sessão. Para ver, na Culturgest, de 19 a 23 de abril, e, a partir de 3 de maio, no Teatro da Politécnica.

O genérico final acaba. Acendem-se as luzes ao mesmo tempo que o velhinho projetor de 35mm se apaga. O público já abandonou a sala e cabe agora a dois trabalhadores deste cinema, situado algures numa pequena cidade do Massachusetts, varrer restos de pipocas, recolher copos e garrafas e dissimular vestígios de lixo indecifráveis. Este é o quotidiano laboral de Avery, o novo funcionário, negro e apaixonado por filmes (ao ponto de o definirem como um “cineasta snob”) e do “veterano” Sam, mais velho, derrotado, sem expetativas, e que, quando confrontado sobre o que gostaria de fazer na vida tanto hesita, respondendo, sem grande convicção, “ser chefe de cozinha”.

Acima, na cabine de projeção, está Rose. Também ela começou a varrer lixo, lá em baixo nas coxias, ao lado de Sam, mas depois foi promovida a projecionista. Goza da fama de ser lésbica, mas nem por isso parece deixar de surtir um enorme magnetismo sobre os homens (que o diga Sam, e também, apesar dos fantasmas, Avery). Gostaria de poder deixar este emprego mal pago, mas, há uma renda de casa para pagar. Aliás, para colmatar tão pouco vencimento, sustenta com Sam um esquema de revenda de bilhetes a que chamam “dinheiro para o jantar”. E no qual Avery terá de alinhar…

”Esta é uma peça que analisa as diferenças sociais a partir das possibilidades de futuro das pessoas.”

 

Escrito no apogeu do digital, numa altura em que os velhos projetores de película se transformaram em peças de ferro velho, O Cinema (The Flick, no original) estreia-se nos palcos portugueses depois de ter valido à dramaturga Annie Baker o Prémio Pullitzer, em 2014, e um Obie Award, um ano antes, e de se ter tornado um dos grandes sucessos recentes off-Broadway.

“É incrível como os autores norte-americanos atuais permanecem praticamente desconhecidos entre nós”, observa o encenador Pedro Carraca ao explicar-nos que o texto lhe chegou às mãos através de Francisco Frazão, programador de Teatro da Culturgest. É, precisamente, a Culturgest que lança aos Artistas Unidos o desafio de o encenar. E Pedro Carraca assumiu-o, ciente que é, “pelos ritmos e pelas tensões dissimuladas, um texto muito diferente de todos aqueles que fiz.”

“Acima de tudo, é uma peça que analisa as diferenças sociais a partir das possibilidades de futuro das pessoas”, refere. “Fá-lo de um modo subtil e melancólico através de três personagens que sobrevivem no inferno que é o seu local de trabalho. Sublinho isso, introduzindo uma outra personagem: o lixo que cai no chão a todo o instante”. Carraca lembra que, em tempos, passou por uma experiência semelhante quando trabalhou numa fábrica de vidro. “Vivia não só a rotina, mas também o medo de falhar e de isso implicar uma penalização no meu vencimento. Tanto o Sam como a Rose vivem esse inferno porque a sua própria sobrevivência depende do que ganham naquele cinema.”

Avery, o afro-americano cinéfilo de 20 anos “é o único dos três que tem reais perspetivas de futuro para lá daquele emprego”. Aliás, o pai de Avery é professor de Semiótica e o que move o mais jovem dos três é, precisamente, o amor pelos filmes e a crença quase romântica de que só existirá cinema se os velhos projetores de película sobreviverem ao digital. Isso justifica que ele ali esteja, removendo lixo enquanto ambiciona subir uns degraus e ocupar a sala de projeção.

Para lá do retrato de uma certa classe trabalhadora, a peça de Baker é também uma homenagem ao cinema, a grande arte popular do século XX. A autora pauta todo o texto com referências e citações a filmes, desde clássicos a sucessos de época, como se Jean-Paul Belmondo em Pierrot Le Fou pudesse dialogar com Samuel L. Jackson em Pulp Fiction, ou Jeanne Moreau em Jules et Jim o pudesse fazer com Kim Catrall em Manequim. Em pleno século XXI, no triunfo do digital, e num cinema que aguarda lentamente pela última sessão.