Cícero

"A relação que tenho com a MPB não é estética, é mais ideológica''

Cícero

Cícero não é um nome novo para os portugueses. A sua relação com o nosso país remonta a 2013, altura em que começou a vir a Portugal mostrar o que vale ao vivo. A pretexto do seu concerto no Capitólio, a 20 de junho, estivemos à conversa com o músico brasileiro. O novo disco, Cícero & Albatroz, a sua relação com a música portuguesa e o seu desejo de vir morar para Lisboa foram apenas alguns dos tópicos da conversa.

Como começou a tua relação com a música?

A minha relação com a música não foi académica, mas sim afetiva. O meu pai toca violão de forma recreativa desde que eu era criança. Na primeira infância eu olhava para o violão com curiosidade, aí comecei a tocar com dez anos. Ouvia músicas no rádio e tentava tocá-las. Essa foi a minha escola. Mais tarde comecei a estudar, de forma autodidata, com a internet. Comecei a me interessar por teoria musical, harmonia, leitura, etc.

Canções de Apartamento (2011), Sábado (2013) e A Praia (2015) são discos com canções intemporais com a raiz brasileira sempre presente. Como descreverias a tua música?

Ainda me sinto bem com a designação Música Popular Brasileira (MPB). Ainda me sinto bem porque a relação que tenho com a MPB não é uma relação estética, é mais ideológica porque tudo se permite na composição, todos os elementos agregam a música brasileira porque ela é inclusiva, não excluente. Dentro dessa ótica, a minha música é MPB: é música, não é erudita, e é brasileira. Mas, num sentido mais comum, já não seria. Seria, talvez, world music.

Quais são as tuas referências musicais?

Há os discos que me formaram na infância e na adolescência e que ficam no subconsciente: do Caetano Veloso, Tom Jobim, Chico Buarque, João Gilberto, Nirvana, Radiohead, Pixies…

Neste disco juntas-te aos Albatroz, grupo formado por elementos de outras bandas da cena carioca. Porque decidiste chamar este grupo de músicos para este disco?

Essa banda foi-se formando ao longo dos últimos oito anos. Tinha um amigo que me ajudava a produzir um disco, aí um outro amigo indicava um outro amigo, saía um e entrava outro na banda. Eram músicos que iam para estrada comigo tocar as músicas que eu tocava em casa. Ao longo dos anos fomos criando uma identidade musical por causa da estrada, e as músicas foram ganhando uma personalidade própria em palco. Ficavam diferentes do que eu tinha feito no disco, só que soava bem, soava a uma coisa mais orgânica. Teve um dado momento em que eu vi que tinha uma sonoridade específica e eu queria gravar um disco com aquela sonoridade. Então peguei aquele grupo de amigos e botei no estúdio, e a gente interagiu e gravou o disco. Eu queria personalizar esse grupo de pessoas para não ser “Cícero e músicos amigos”.

Porquê Albatroz?

Porque é o maior pássaro do mundo e a banda é grande, são sete pessoas. É um dos únicos pássaros que consegue atravessar o oceano, faria Brasil-Portugal, é intercontinental. A ideia da banda era essa, vir a Portugal.

Como funciona o processo de criação?

O primeiro disco que gravei com banda tinha 15 anos, foi há 17 anos atrás. Depende muito. Há fases em que estou lendo alguma coisa, então eu começo escrevendo muito. Tem fases em que estou ouvindo muita música instrumental, então faço um disco inteiro sem letra e depois vou escrevendo. Às vezes faço colagens, pego um poema e boto em cima de uma música pronta e vejo se funciona. Canção de Apartamento, o meu primeiro disco a solo, foi todo feito mais ou menos de forma parecida: sempre sentado com o violão e um caderno, um processo mais à moda antiga.

 

©Eduardo Magalhães

 

Como é a tua relação com a música portuguesa? O que gostas de ouvir?

Gosto de muita coisa. Tive uma namorada portuguesa que me apresentou coisas que estavam fora do meu radar. Comecei a ouvir mais depois da primeira vez que vim a Portugal, já tem um tempo, foi em 2013. Ouço muito Manel Cruz, Capitão Fausto, Carminho, B Fachada… Estou até querendo tocar uma música do Manel Cruz nos shows aqui em Portugal.

Se pudesses escolher um artista português para fazer uma parceria musical, quem seria?

Manel Cruz. Vou tocar no Festival Rock Nordeste no mesmo palco e no mesmo horário que o Manel Cruz, só que no dia seguinte…

A relação entre a música brasileira e a portuguesa tem criado laços cada vez mais fortes. Como vês essa ligação?

Vejo a nação brasileira como se fosse uma continuação das linhas de raciocínio de Portugal, a forma de viver em sociedade, os sentimentos… Ontem estava no apartamento com a banda e com dois músicos portugueses que vão tocar com a gente, e aí começamos a ouvir Luiz Gonzaga, que é um músico brasileiro dos anos 30/40. Aí o trombonista começou a falar que o som era igual a fulano (que era um músico português da mesma época). Aí começaram a mostrar (esqueci o nome agora), mas era a mesma sonoridade, era a mesma poesia, o mesmo jeito de cantar, só que com o ritmo um pouquinho diferente. O processo civilizacional brasileiro é mais um modelo americano, mas eu acho muito parecidas nossas culturas. Nos últimos anos aconteceu uma abertura dos media, a internet começou a botar em contacto o brasileiro com a cultura portuguesa, mais do que através da televisão.

No dia 20 de junho, apresentas o disco no Capitólio. Quais as expectativas para este concerto?

Tento sempre controlar minha expectativa para que seja uma noite agradável, mas eu sempre penso no show de Portugal como se fosse a primeira vez que estou tocando para aquelas pessoas. Já toquei bastante em Lisboa, mas quero muito ter esse sentimento de primeira vez. Sempre tenho impressão de que são pessoas que estou vendo pela primeira vez, um sentimento de descoberta.

As tuas viagens inspiram-te de alguma forma?

Totalmente. Esse disco novo tem uma música que comecei a fazer aqui em Portugal. Chama-se Velho Sitio (sem o acento da língua portuguesa, sitio como lugar). O meio onde estou influencia as músicas que vou fazer naquele período. Todos os meus discos foram assim. São muito ligados ao bairro em que eu moro, ao som do dia-a-dia: se acordo com som de carro ou som de passarinho, se as pessoas são gentis ou não. Isso influencia seu estado emocional, seu interior. Suas questões mais profundamente internas têm a ver com seu vizinho, com o céu que você ’tá olhando.

Li numa entrevista que gostarias de viver em Lisboa. Para quando a mudança?

A minha ideia é vir no começo do ano que vem, logo depois do Carnaval. Março, talvez. Não é uma mudança definitiva, mas sim uma temporada. Meus pais estão com 65 anos, então eu pretendo ficar um, dois anos, mas voltar pra cuidar dos meus pais, em vez de me estabelecer definitivamente aqui. Já fiz a viagem para Lisboa cinco vezes e sinto que está cada vez mais curta a viagem. Eu chego à meia-noite no voo, durmo, e acordo em Lisboa.

Planos para um futuro breve?

Estou sempre pensando na próxima música. Não toco em casa as músicas que eu já gravei, tenho esse problema não sei porquê [risos]. É como se eu tivesse educado filho e ele, de repente, casou. Em casa estou sempre pensando na próxima ideia. Já estou com um monte de música nova, só que essas coisas ao longo dos meses vão melhorando ou piorando. Você grava e acha muito bonito, daí a um mês você ouve e acha horrível. Tem músicas que eu começo a achar horríveis, aí boas de novo, elas ficam mudando todo o ano. Tem algumas músicas que eu acho boas para sempre e algumas que eu acho eternamente chatas.