Sandro Aguilar

‘Mariphasa’ em estreia nacional

Sandro Aguilar

A obra de Sandro Aguilar assenta num extenso conjunto de curtas-metragens e dois filmes de longa-duração. Mariphasa (2018) é o segundo destes títulos e foi descoberto na secção Forum do Festival de Berlim, tendo passado mais tarde no IndieLisboa, na Competição Nacional. Aguilar é nome que gerou culto entre frequentadores de festivais de cinema, programadores e alguns críticos. O cinema que pratica é do mais experimental e subterrâneo a que se pode assistir numa sessão comercial. Daí a estreia de Mariphasa ser um fenómeno, ou um antídoto. Coisa rara.

O nome Mariphasa sugere mariposa, borboleta, transformação. Como é que este título se liga à natureza do filme?

Mariphasa é o nome de uma flor que existe apenas num filme muito mau, Werewolf of London [O Lobo Humano, 1935, de Stuart Walker], que se tornou um clássico por duas ou três cenas, e essa flor no filme existe no Tibete e funciona com antídoto à transformação dos lobisomens. Dessa maneira, o título dá uma espécie de mote ao meu filme que, em hora e meia, sugere a possibilidade de um acontecimento que nunca chegamos a ver e que vai gerindo pequenas informações de coisas que se terão passado antes do filme começar.

Será então um antídoto a uma estrutura narrativa mais convencional…

Certamente, certamente. Não me é natural lidar com as personagens na perspectiva clássica. Sei o que é, sei trabalhá-la, sei falar sobre ela, muitas vezes parto para os projectos pensando que desta vez será um pouco mais narrativo, mas perco o interesse. Enquanto realizador e enquanto espectador passa-se o mesmo.

“A minha natureza não é tão sombria como os filmes que faço” \ ©Alexandra Silva

 

Quando apresentou Mariphasa no IndieLisboa disse que aquilo a que o público iria assistir era como que “um pesadelo”. De onde lhe vieram as ideias para o filme?

Quem me conhece sabe que a minha natureza não é tão sombria como os filmes que faço. Tento pôr em suspenso o meu lado racional o mais possível quando estou a trabalhar, porque a minha racionalidade impediria de dar consequência às primeiras ideias, teria de as pensar demasiado, testar demasiado, articular demasiado. E, quando as coisas se tornam claras, desinteresso-me. Os filmes vêm de um lado completamente subterrâneo em mim, uma mistura de memórias, medos, inquietações, que tento traduzir em imagens e sons o melhor que consigo. Vem de um lado totalmente inconsciente, dai aproximarem-se desse lado dos sonhos e dos pesadelos.

Este filme dá-nos a ideia de ter sido feito sem qualquer tipo de concessões. Fez exactamente o filme que quis, ou teve de fazer cedências?

Os filmes são sempre resultado das circunstâncias particulares em que são feitos. Uma das principais concessões que tive de fazer foi com o tempo da rodagem. Trabalho com uma equipa muito pequena e pensei que com isso ganharia margem de manobra para ter tempo para falhar antes de acertar. Trabalho muito de improviso e preciso da tranquilidade de poder não acertar exatamente à primeira. Criativamente nunca tive essa possibilidade de me sentir tranquilo numa rodagem para falhar. O filme foi feito com base em intuições, estou sempre a trabalhar no vazio. Gostava de ter tido mais tempo para esse vazio.

A criança em Mariphasa é interpretada pelo seu filho. Escolheu-o porque seria mais fácil dirigi-lo ou porque quis trazer com isso maiores implicações autobiográficas para o filme?

Já trabalhei com o meu filho várias vezes e gosto muito de trabalhar com ele. No geral não gosto de ver crianças nos filmes, porque fazem de crianças. Sei que sou capaz de falar com ele e ele perceber-me. Sei como ele é verdadeiramente, e sei como travar esse impulso que as crianças têm de representar como crianças. Desde muito pequenino que é muito maleável, muito inteligente. Não tenho de o apanhar desprevenido. Faz uma coisa extraordinária que é eu falar com ele para dentro de cena e não mostra em nenhum momento que estou a falar com ele, toma o seu tempo e faz o que lhe digo.

Fez ainda na Escola de Cinema um filme chamado O Cadáver Esquisito. Este título parece anunciar todo o cinema que fez depois. Residia ali algum tipo de programa que se estende até Mariphasa?

Paulo Rocha referia-se a esse filme como um magnífico sketchbook. Estavam ali várias possibilidades de filmes que eu poderia vir a fazer. De facto, várias coisas foram revisitadas ao longo dos meus filmes seguintes. Formalmente é, no entanto, muito diferente. Para esse filme, escrevi seis monólogos, vinte páginas, o contrário do que faço hoje em dia. O que fica de estrutural é a minha vontade de não afirmar muito as coisas. Foi algo que sempre segui, não permitir que as coisas façam um sentido literal para que outro tipo de sentidos pudesse emergir. A linguagem do cinema está tão codificada que, hoje, temos que negar muitas coisas, fazer muitas coisas ao contrário para que aquilo que estamos a fazer não seja lido como tudo o que está à volta.

Os seus filmes, e este em concreto, não se parecem com nenhuns outros. Que afinidade intelectual ou estética sente relativamente a outros realizadores do presente?

Temos uma história do cinema inteira atrás de nós, com muitas coisas extraordinárias e inúmeras coisas admiráveis. Nunca pus o meu trabalho em diálogo com coisas que admire. Filmes de que gosto, dos recentes, são os de Apichatpong [Weerasethakul], sendo que o que ele faz não tem muito a ver com o que eu faço; é mais caloroso, mas há um lado subterrâneo também ali que eu gosto de ver. Há nele um extraordinário compromisso entre um cinema que não deixa de ser afetivo, mas bastante abstrato também. Para mim a realidade não basta, a realidade social, política, tudo isso. Preciso de expandir o meu imaginário, tornar expressionistas os elementos da realidade.

David Cronenberg disse em Veneza que não vai ao cinema há anos, que o cinema acabou, tal como os discos de vinil ou as máquinas de escrever, e que ir hoje ao cinema é uma retroatividade. O que pensa disto?  

A minha experiência da sala tem ainda um lado mágico que não gostaria de perder. Socialmente, economicamente, a ideia de cinema como nós a conhecemos, numa sala, com muita gente a ver ao mesmo tempo é uma coisa que está a perder sentido. De facto parece uma coisa do passado que não dirá muito às gerações mais novas. Saber se vê numa sala, saber se vê numa televisão grande, se vê num telemóvel, isso infelizmente muda a natureza dos objetos que se pode produzir. Percebo o que ele quer dizer mas, afetivamente, não estou próximo disso.