Encontrar a morte em Lisboa

'Don Juan esfaqueado na Avenida da Liberdade' no São Luiz

Encontrar a morte em Lisboa

A partir de uma visita ao Museu do Aljube, Pedro Gil decidiu revistar o mito do subversor por excelência: o sevilhano Don Juan. Às aventuras descritas na lenda, Don Juan esfaqueado na Avenida da Liberdade soma uma evasão para Lisboa e um salto no tempo para o mais libertino dos aventureiros perceber que talvez já não haja lugar para ser... Don Juan. Em cena no Teatro São Luiz, até 2 de dezembro.

Nem o tempo vence o mito e, não fossem as vicissitudes da vida, Don Juan teria sobrevivido à Lisboa deste século, entre hordas de turistas e obscuras oportunidades de negócio. Mas, a arte da sedução já não é o que era e o mais venturoso dos libertinos acaba tolhido por uma facada em plena Avenida da Liberdade. Até esse derradeiro acontecimento, o sedutor não deixa os seus atributos por mãos alheias e, com maior ou menor dificuldade, por entre conquistas, trapaças, artes mágicas e saltos no tempo, não há morto nem vivo que lhe consiga deitar a mão. Se bem que ser Don Juan nos dias que correm não é propriamente  como sê-lo no seu tempo. E isso, como se percebe na segunda parte da peça, pode acabar em desfecho trágico.

Escrita por Pedro Gil após uma visita ao Aljube, onde o ator e encenador recordou o rol de “Nãos” do salazarismo – NÃO discutimos a pátria, NÃO discutimos a autoridade, NÃO discutimos a família, NÃO discutimos o trabalho e NÃO discutimos Deus –, Don Juan esfaqueado na Avenida da Liberdade é uma comédia “mirabolante” sobre o famoso “vilão que questiona as coisas e deixa atrás de si um rasto de destruição. Mas sempre com qualidade!”

Miguel Loureiro é Paco, o servo fiel de D. Juan (Tónan Quito)

“Foi desde sempre uma personagem que me fascinou e, quando me deparei, no Aljube, com aqueles Nãos ali inscritos ocorreu-me que quem melhor do que esta figura os poderia subverter e destruir com elegância e sedução”, conta o autor. “Don Juan é, por excelência, o blasfemo, o anti patriótico, o amoral, o aventureiro”, uma figura do século XVII que até pode encaixar como uma luva neste século XXI, “onde o grande negócio é a mentira”, como se perceberá na peça, quando o sevilhano decide liderar, através do YouTube, uma seita que fatura com o embuste.

Pedro Gil e Raquel Castro numa cena da peça.

Num espetáculo que recorre saudavelmente ao engano, ao ridículo e ao grotesco, Pedro Gil justifica a opção de trazer para os dias de hoje Don Juan pela acutilância de “trabalhar, literalmente, um clássico que produziu em todas as artes largas centenas de versões”. A leitura que Gil faz do mito pauta-se pelo humor, e até pela imprevisibilidade de situações caricatas em catadupa que, ao longo de mais de duas horas, trocam por completo as voltas ao espectador. Sem pruridos nem pingo de moralidade, como convém ao caráter do libertino aventureiro de Sevilha. Aquele que, afinal, encontrou a morte em Lisboa, tantos séculos depois das suas mais célebres façanhas.