Shakespeare para lá do género

'Hamlet(a)' em estreia no Teatro da Comuna

Shakespeare para lá do género

Sete atrizes sobem ao palco para protagonizar aquela que será, talvez, a mais estudada e celebrada tragédia de Shakespeare, e dar corpo a personagens, homens e mulheres, que encarnam como poucas em toda a história da criação humana, a loucura, a traição, a vingança e a procura da verdade. Hamlet(a) estreia a 7 de fevereiro, na Comuna.

No palco da Comuna reúne-se um elenco inteiramente feminino para levar à cena o Hamlet de William Shakespeare, quase 500 anos depois da primeira encenação da peça, quando em pleno período isabelino apenas aos homens era permitido subir ao palco. Para este “projeto transgressor”, o encenador Hugo Franco pega na (academicamente) controversa, mas a todos os níveis belíssima, tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen, depura o texto e entrega a Maria Ana Filipe, Margarida Cardeal, Diana Costa e Silva, Mónica Garnel, Tânia Alves, Lia Carvalho e Custódia Gallego, as personagens centrais da tragédia.

“Interessou-me perceber como é que aquelas palavras que parecem conter toda a essência do amor e do ódio, e tanta, mas tanta paixão, poderiam ser ditas por mulheres”, explica Hugo Franco. “E aquilo que descobri ao longo dos ensaios foi que, ao entregar as personagens de Hamlet a um elenco feminino, essas palavras tornaram-se ainda mais humanas” acrescenta, não deixando de sublinhar que, pessoalmente, acha inigualável “a sensibilidade a que uma atriz se entrega quando as diz.”

Independentemente do género da personagem interpretada (de facto, apenas Custódia Gallego e Lia Carvalho encarnam personagens femininas), são sempre mulheres que vemos em palco. “Não pretendi que houvesse qualquer traço de masculinização das personagens. São elas a ser Hamlet, a ser Cláudio ou Polónio, com figurinos que não lhes conferem qualquer outra característica que não a de serem mulheres a representar aqueles papéis.”

Cabe a Maria Ana Filipe interpretar Hamlet. Segundo a atriz, “o que importa é deixar que o texto nos atravesse, e não o facto de estar a representar um personagem masculino”. Margarida Cardeal, que representa Cláudio, o tio usurpador de Hamlet, tem opinião semelhante, mas ressalva nunca se sentir a representar um Rei, nem mesmo uma Rainha. “Afinal, uma mulher é sempre uma mulher”, salienta a atriz.

Para além do género, Hugo Franco inclui uma outra “transgressão” nesta sua visão da peça de Shakespeare. Para interpretar Ofélia, a apaixonada do protagonista, o encenador escolheu Custódia Gallego, a mais velha das atrizes do elenco. “Aquilo que pretendia de Ofélia, aquele misto de tesão e afeto, de paixão e sentido trágico, só me poderia ser dado por uma atriz mais velha e com a capacidade de dar uma força suplementar a uma personagem tão marcante.”

HAMLET(a) pela Comuna Teatro de Pesquisa

HAMLET(a)Nota do EncenadorSer ou não ser…?É uma questão que me inquieta e Inquietar-nos é uma das funções do Teatro.A minha proposta para esta encenação foi a de TRANSGREDIR, quero muito TRANSGREDIR.Há muito tempo que tenho esta ideia de fazer um "Hamlet" em que todas as personagens são interpretadas por mulheres, situação essa que seria impossível na altura em que a peça foi escrita (séc.XVII), pois nesse tempo as mulheres estavam proibidas de representar .O que me interessou neste processo de criação foi a abordagem ao texto por parte das actrizes: as questões que daí surgiram, questões de género (claro), e também questões filosóficas mas, acima de tudo, o meu intuito sempre foi o de contar esta história que está para além do género. Este texto representado por mulheres tem, sem dúvida, uma pulsão diferente. E é essa diferença que me interessa. Mas que diferença é essa? O amor de Hamlet pelo Pai é diferente quando representado por uma mulher? A amizade de Horácio por Hamlet é diferente quando é representado por uma mulher? Mais do que um género, estas questões são essenciais à humanidade.Nesta tragédia temos amor, assassinato, traição, ódio, vingança – sentimentos transversais da natureza humana, sentimentos que não têm género…SER OU NÃO SER?O Verbo SER não é feminino nem masculino. É irregular.É próprio da natureza humana a busca pela felicidade, eu busco a felicidade a fazer teatro.Viva o Teatro!!!Hugo Francocreditos_Eduardo Breda

Posted by Teatro da Comuna on Friday, 1 February 2019

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Para além do masculino ou do feminino

O percurso das peças de Shakespeare nos palcos tem sido profícuo em ultrapassar toda e qualquer questão de género. Basta lembrar, como já sublinhámos, que na Inglaterra isabelina apenas aos homens era permitido atuar num palco, por isso, a primeira vez que um mortal teve o privilégio de tomar contacto com a beleza da “alma suicida” de Ofélia foi no corpo de um homem. O mesmo se poderia dizer da Julieta que conquistou o coração de Romeu, ou da Rosalinda (que até chegou a ser homem) de As You Like It, para alguns a mais hamletiana das personagens femininas de Shakespeare.

A enigmática dedicatória nos sonetos de Shakespeare.

 

Fora dos textos para palco, imagine uma teoria diferente para abordar a temática do masculino e feminino em Shakespeare, tal como Oscar Wilde o fez. Em O Retrato de Mr. W.H., o autor irlandês avançou com a tese provocadora de que a enigmática dedicatória feita por Shakespeare nos seus sonetos era dedicada a Willie Hughes, um jovem ator da sua companhia especializado em papéis femininos. Seria o senhor W.H. o misterioso Fair Youth, protagonista dos primeiros 126 sonetos?

 

Universais e simplesmente humanos

Será difícil aferir se no mundo, e ao longo dos tempos, Hamlet terá sido ou não interpretado somente por mulheres. Se ainda não aconteceu, o encenador Hugo Franco e o Teatro da Comuna tornam-se pioneiros na direção de um Hamlet “com pulsão totalmente feminina”. No entanto, na história do teatro, grandes atrizes subiram ao palco para interpretar os heróis do teatro shakespeariano, acreditando em personagens universais e simplesmente humanas, à prova de poderem ser reduzidas meramente ao masculino ou ao feminino.

A mítica atriz francesa Sarah Bernhardt interpretando Hamlet no final do século XIX.

 

O exemplo mais famoso é o de Sarah Bernhardt que, em 1899, estrearia em Paris um Hamlet por si protagonizado. Embora assumindo (como se escreveu em jornais da época) “uma masculinidade engenhosa”, Bernhardt rasgava o cânone – muito embora atrizes de inferior gabarito já tivessem interpretado o papel antes da diva francesa – e seria aplaudida no país natal do Bardo, atuando mesmo em Stratford, no Shakespeare Memorial Theatre. Mais recentemente, sem optar pela masculinização da personagem, atrizes como Frances de la Tour e Maxine Peake também encarnaram o papel do jovem Hamlet.