Lisboa no tempo do “Memorial do Convento”

Texto de Miguel Real

Lisboa no tempo do “Memorial do Convento”

Num itinerário com início na Fundação José Saramago, à Casa dos Bicos, o escritor ensaísta e crítico literário Miguel Real parte em busca da Lisboa de setecentos, cruzando história e ficção à medida que estabelece ligações entre a capital em processo de profunda transformação e a vivência das personagens do romance Memorial do Convento, escrito pelo Nobel da Literatura José Saramago.

No tempo do Memorial do Convento, Lisboa não era ainda uma cidade moderna, mas não era já uma cidade medieval. A primeira caracterizava-se, como Paris, pelas largas ruas e pelos inúmeros e soberbos palácios; a segunda, constituía um amontoado de casario vinculado à orografia do terreno, em torno de uma fortaleza ou castelo, rodeada de uma muralha defensiva, donde se destacavam as torres sineiras das igrejas e dos conventos.

Baltazar e Blimunda, os protagonistas do romance de Saramago, assistiram a esta transformação da capital de Portugal de cidade dos Descobrimentos, cosmopolita mas de geografia e urbanismo pós-medieval, em cidade contemporânea, concebida e estruturada para uma economia comercial. Neste sentido, a Lisboa do Memorial do Convento é uma cidade em mudança, descaracterizada do seu antigo poderio de cais imperial, uma cidade que assistia aos rituais majestáticos da Coroa à imitação dos parisienses do Rei-Sol. Não é já uma cidade só de palacetes renascentistas, que abundavam na Costa do Castelo, nos arredores do Rossio e na linha que segue da Ribeira das Naus à Junqueira, mas de verdadeiros palácios e quintas, que se vão construindo nos arredores da capital (Junqueira, Benfica, Lumiar, Campo Grande…).

Este itinerário inicia-se junto à Casa dos Bicos onde está instalada a Fundação José Saramago.

Lisboa, hoje desenhada verticalmente ao Tejo, seguia então paralela ao rio, as ruas acompanhavam os declives naturais (as colinas, os vales). Mais do que outro símbolo urbano, eram as igrejas e conventos que marcavam os lugares de Lisboa. Dificilmente se daria um passo de uma rua para outra que não se deparasse com uma igreja, uma capela ou, na linha do horizonte, uma ermida, como a de São Mamede. No lado oriental, a capela de Nossa Senhora da Penha velava pelos lisboetas; do ocidental, São Mamede, o santo abençoador dos rebanhos que pastavam às portas da cidade. Por esta, dezenas de igrejas, que nenhum bairro se sentia bairro sem que tivesse o seu santinho protector, o seu pároco particular, que controlava os costumes, baptizava os meninos, casava os jovens, consolava os adultos e amortalhava os velhos no caixão, melhor, na mortalha.

As casas dificilmente ultrapassavam os três andares, todas elas com quintais, algumas com curtos jardins, encostadas e cravadas umas nas outras, compondo um labirinto de ruas e ruelas estreitinhas por que dificilmente passava uma carroça larga ou uma carruagem. Pelos casaréus de Alfama e Mouraria vivia o povo pobre de Lisboa, aqui vivia Blimunda, em casas de duas-águas, chão de terra batida e duas divisões, a cozinha, que também era sala, composta em torno da lareira de cozer, e o aposento de dormir, pais e filhos na mesma câmara, separados, não raro, por um pano de chita velha pendurado num cordel, que unia parede a parede. Na sala-cozinha, escanos de sentar e recostar, a trempe da sopa e dos guizados, que aquecia a casa de vapor de água, acrescido do calor das braseiras. Uma mesa articulada encostada a um canto, que os filhos armavam sendo horas de refeição (ainda hoje se diz “pôr” e “levantar a mesa”); no aposento de dormir, palha pelo chão ou peles de boi, um enxergão de folhelho ou de estopa (colchões de lã ou de penas eram reservados para os grupos sociais mais poderosos), a cobrir o corpo malcheiroso uma manta grossa de lã mal cardada, pasto abundante de pulgas, piolhos e percevejos.

A [antiga] praça era dominada pelo Palácio Real, com o Torreão do Terzi encostadinho à água.

No Terreiro do Paço, rosto do país para o estrangeiro, D. João V mandou construir a igreja da Patriarcal, a igreja mais rica de Portugal, possuía uma biblioteca e uma pinacoteca valiosíssimas, bem como a Ópera do Tejo. A praça era dominada pelo Palácio Real, com o Torreão do Terzi encostadinho à água, onde, no tempo doMemorial do Convento, D. João V agonizará entrevado no leito cerca de dez anos.

Nas costas do Terreiro do Paço, amontoavam-se ao sol da manhã os trabalhadores da Ribeira das Naus, de rosto encardido pelo lume das fogueiras gigantescas que ferviam caldeirões de água, cujo vapor provocava a concavidade das pranchas de madeira que compunham o casco dos barcos; calafeteiros limpavam as mãos sujas de pez a margaços de estopa. Podemos imaginar Baltasar a passar entre os fragateiros do Tejo, a comer sardinhas cozidas ou fritas em azeite do Alentejo ou peixe fumado, que tragava em ruidosas mastigações, os lábios corrompidos de pústulas secas, oleados pelo quartilho de vinho tinto.

Do Terreiro de Paço ao Rossio, não havia caminho directo ou rua direita. As ruas corriam paralelas ao Tejo. Entre estas, salientavam-se a Rua Nova dos Ferros – rua de compras de material e mercadorias, de e para o trabalho -, e a Rua dos Ourives da Prata – rua das compras refinadas. Para o lado da Boavista, estava nascendo a Rua dos Remolares, rua da moda no século XVIII, que Baltazar e Blimunda nunca visitarão, que receberá os figurinos parisienses da moda, onde jovens fidalgos estanciarão longas horas, suspeitando ver, quando as meninas descem dos coches, depondo o sapatim de pele de gamo no tijolo da rua para visitar as lojas, a brancura de leite de um calcanhar sob os folhos de rendas graciosas.

Pela Madalena… entre azinhagas sombrias e ruelas malcheirosas… acolhiam-se os bordéis de meretrizes

Ao fundo oriental do Terreiro do Paço, a caminho da Madalena, evolava-se um cheiro acre a sangue e carne fresca, era o açougue, dos curros saíam os gemidos das vacas, dos bezerros, dos carneiros, das ovelhas, mortos por degola ou por um pontifim aguçado espetado até ao coração, sacavam-se-lhes as peles, depositadas em grandes tanques, de cheiro fétido, para começo da curtição, e esquartejavam-se os corpos, separando a carne dos ossos, que, resticulados de sangue e tendões, eram arrastados em padiolas, acompanhados de matilhas de cães ladrando, e deitados ao Tejo.

Pela Madalena, também, entre azinhagas sombrias e ruelas malcheirosas, rescendendo ao ardor nojento de peixe podre ou enxúndias de carne putrefacta, acolhiam-se os bordéis de meretrizes, breve transferidos para a Rua Suja, uma viela mesmo à beirinha do novíssimo Bairro Alto. Prolongando o edifício do açougue em direcção ao Tejo, no final da actual Rua da Madalena, ficava a Alfândega, 14 casarões, enormes, sólidos, por onde transitava a mercadoria vinda do Império, sobretudo caixotes de açúcar, fardos de peles, varas de pano, rolos de fumo (tabaco) e sacas, barricas, cestas e cabazes de especiarias. Da Alfândega saíam os grandes proventos que alimentavam a Casa Real e o Senado da Câmara de Lisboa.

No Rossio, segunda grande praça da cidade, não existe edifício único dominador. A norte, estabelecendo de certo modo o limite de Lisboa, a Casa do Senado da Câmara e o Palácio dos Estaus, antigo palácio de acolhimento de embaixadas estrangeiras doado por D. João III ao Tribunal do Santo Ofício, dirigido pela Ordem dos Dominicanos. Aqui se encarceram judeus e heréticos, homossexuais e lésbicas, ciganos e blasfemos, velando-se pela santa pureza de Portugal. Aqui se encarcerou Sebastiana de Jesus (mãe de Blimunda) e até Bartolomeu de Gusmão, o frade-voador da Passarola de Memorial do Convento, caso não tivesse fugido para Toledo por ambicionar voar.

Do lado sul, dando origem ao dédalo de ruas que levavam ao Tejo, casas de habitação e uma arcaria, onde se iniciava a Feira da Ladra, posteriormente exilada para a actual Praça da Figueira.

Perto, a Igreja de São Domingos, comprida e baixa, donde partiam os autos-de-fé, um dia completo, que terminava com a queimança do corpo dos condenados, ora no Rossio, ora no Terreiro do Paço, com a família real e os dignitários maiores da hierarquia da Igreja a assistir.