Uma janela aberta para a banalidade do mal

"Terror e Miséria" em cena no Teatro do Bairro

Uma janela aberta para a banalidade do mal

A partir de testemunhos e notícias de jornais que retratam a ascensão do nazismo na Alemanha, Bertolt Brecht, já no exílio, escreveu Terror e Miséria no Terceiro Reich. Mais de 80 anos depois, António Pires recupera 15 das cenas da peça e cria um espetáculo à medida da genialidade do dramaturgo alemão, capaz de divertir mas, acima de tudo, inquietar consciências. Ou não estivesse o mal aqui tão perto.

Na primeira vez que dirige um texto de Brecht, o encenador António Pires admite não o ter feito por razões artísticas. “O que me moveu foram questões sociais”, e releva “a urgência” de trazer para o palco um conjunto de cenas curtas que compõem esta “profunda reflexão para teatro sobre a ascensão do nazismo na Alemanha.”

Terror e Miséria no Terceiro Reich terá sido escrita, na Dinamarca, entre 1935 e 1938. Brecht estava exilado, mas particularmente atento aos ecos que chegavam do seu país natal, onde, e resgatando uma expressão cunhada por Hannah Arendt já após a grande guerra de 1939/1945, a banalidade do mal imperava na sociedade alemã.

Num ambiente de uma certa austeridade cénica, pontuada por uma janela ao fundo do palco onde, recorrendo ao vídeo, surgem paisagens das cidades, dos campos ou das fábricas (consoante a temática da cena), António Pires construiu, a partir da tradução de Fiama Hasse Pais Brandão, um mosaico cronológico que se inicia em 1933, com a chegada ao poder de Hitler, e encerra com a anexação da Áustria em 38, num quadro em que os resistentes se mobilizam, adivinhando que o pior ainda estava por vir.

Mas as 15 cenas que compõem o espetáculo não são, de todo, narrativa histórica. São, isso sim, cenas do quotidiano do povo alemão, que Brecht adapta a partir de notícias de jornal e relatos testemunhais, revelando como o medo se instalou paredes meias com o espírito messiânico nacionalista personificado na figura do Fuhrer. E estas cenas, escolhidas de um total de 24 do texto original de Brecht, evidenciam, nas palavras do encenador, “assustadoras semelhanças com aquilo que se vai passando na atualidade” (chama-se a atenção para um excelente texto do jornalista Daniel Oliveira, que integra a folha de sala, e parte precisamente do caso brasileiro).

Perante o terror e a miséria, é com bastante humor e ironia que a peça convoca a inquietação no espectador. São absolutamente deliciosas cenas como a do casal (Adriano Luz e Inês Castel-Branco excelentes) que teme a denúncia por parte do filho menor, devido a um conjunto de conversas que mantêm muito pouco abonatórias da situação social e política que se vive; ou aquela em que o guião de um programa de rádio, feito em direto de uma fábrica para propagandear a “alegria e infatigável energia” do proletariado no nacional-socialismo, acaba por fugir ao controlo do locutor e do próprio agente das SA, graças às imprevisíveis declarações dos operários.

Mas numa sociedade em que o mal se impregnou, a tragédia só pode mesmo trespassar as vidas dos cidadãos comuns. A cena da judia, casada com um “ariano”, que faz a mala para fugir e vai dando conta da cobardia do marido; ou a do comunista que sai da prisão e procura ajuda junto de um casal de amigos que a negam, são bem demonstrativas da profunda melancolia em que o Brecht exilado se encontrava quando as escreveu.

Reunindo um elenco composto pelos já referidos Adriano Luz e Inês Castel-Branco, mas também por Carolina Serrão, Francisco Vistas, Jaime Beata, João Barbosa João Maria, Mário Sousa, Rafael Fonseca, Sandra Santos e Manuel Encarnação ou Tomás Andrade (crianças), Terror e Miséria conta ainda com a participação do músico e pianista Nicholas MacNair. Um espetáculo em estado de urgência, para ver no Teatro do Bairro, até 14 de abril.