O obscuro como objeto do desejo

Retrospetiva Jean-Claude Brisseau

O obscuro como objeto do desejo

A Cinemateca Portuguesa apresenta, a partir de 2 de julho, uma exaustiva retrospetiva da obra do cineasta francês Jean-Claude Brisseau, desaparecido no último mês de maio, aos 74 anos.  Esta completíssima retrospetiva, constituída por 14 títulos que percorrem mais de 40 anos de carreira, dirige-se a iniciados, e até aos maiores conhecedores da sua obra.

A correspondência será meramente simbólica, mas a retrospetiva quase integral da obra de Jean-Claude Brisseau (1944-2019) que a Cinemateca Portuguesa fará durante o mês de julho (de 2 a 30), remete-nos para a iniciativa semelhante de há ano e meio, ainda era vivo o cineasta, que a congénere francesa acabou por adiar e nunca vir a realizar.

O anátema sofrido por Brisseau tem origem na preparação do filme que o deu a conhecer em Portugal, e não só: Coisas Secretas (2002) assinala a última vez que o realizador dispôs de valores de produção ditos padrão, que se mantiveram na primeira meia-dúzia de longas-metragens para o cinema que dirigiu – de Un Jeau Brutal (1983) até Coisas Secretas – uma vez que o trajeto brisseauniano descreve uma curva bastante irónica onde observamos no começo e no final a mesma condição de amadorismo. Se, no início, isso tinha a ver com a experimentação de alguém que se situava fora do meio do cinema e que não dispunha dos recursos de um realizador profissional, anos mais tarde seria consequência de ter sido colocado fora do mesmo, na conclusão de um processo de assédio que resultaria o pagamento de uma indemnização e a condenação a um ano de pena suspensa. Um dos seus melhores filmes, Coisas Secretas, foi, assim, aquele que amaldiçoou o resto da sua carreira.

“Céline” (1992)

 

Jean-Claude Brisseau foi sempre um nome periférico na história da cinematografia francesa. O realizador nunca escondeu a maior influência que sentia da parte do cinema de fora do seu país (Alfred Hitchcock, Stanley Kubrick ou Luis Buñuel) e os filmes que realizou mostraram sempre elementos idiossincráticos que os demarcavam de uma dominante realista feita do cuidado com que eram dados os aspetos sociais das suas histórias.

Desse período inicial, mas já na qualidade de realizador de profissão, destacam-se os títulos De bruit et de fureur (1988) e Noce blanche (1989), que refletem igualmente a atividade de professor de liceu que Brisseau desempenhou até aos 40 anos. Mas havia ali já uma dimensão sobrenatural, mística ou metafísica, que se acentuou decisivamente com um dos seus principais filmes, Céline (1992), e que trouxe uma marca tão individual que não mais abandonaria a obra de Brisseau.

Esta espécie de ligação ao cosmos, a outras dimensões, realidades e vidas, à figuração de fantasmas, que são na prática de Brisseau como que obscuros objetos do desejo, acompanhada de uma especulação científica e teológica que bebe das mais heterogéneas culturas e fontes do conhecimento, seria ainda reforçada nos seus últimos filmes, alguns de carácter doméstico, no sentido literal, porque filmados parcialmente na própria casa do realizador. São os casos de A Rapariga de Parte Nenhuma (2012), belíssimo filme-testamento que lhe granjeou o prémio máximo no Festival de Locarno, e o derradeiro Que o Diabo Nos Carregue (2018) de que Portugal foi um dos dois ou três países a estreá-lo comercialmente.

“A Rapariga de Parte Nenhuma” (2012)

 

Esta completíssima retrospectiva da obra de Jean-Claude Brisseau dirige-se a iniciados e até aos maiores conhecedores da sua obra. Teremos a oportunidade muito rara de ver os seus filmes feitos para a televisão, La Croisée des Chemins (1975) e La Vie Comme Ça (1978), pela primeira vez mostrados na Cinemateca e em cópias digitais, e todos os restantes títulos por ele assinados que existem num suporte que permite a exibição, num total de 14 títulos, mais o documentário-entrevista com o realizador, Brisseau – 251 Rua Marcadet (2018), de Laurent Achard.

Aceitemos pois o desafio de procurar neste vasto obscuro, objetos partilháveis do desejo, que é uma outra forma de dizer em poucas palavras aquilo que constitui a essência do ato de ver cinema.

Jean-Claude Brisseau

Desaparecido em maio passado, aos 75 anos, Jean-Claude Brisseau foi um cineasta muito falado nos últimos anos da sua vida, pelas piores razões. Muito falado, mas pouco visto: grande parte da sua obra, iniciada nos anos 70, permanece totalmente inédita em Portugal, e ao circuito comercial português os seus filmes só começaram chegar com regularidade a partir de CHOSES SÈCRETES, já anos 2000. Esta retrospetiva, que mostra todas as longas-metragens de Brisseau de que exista cópia física em condições de projeção, realizada agora na sequência da sua morte mas nos planos da Cinemateca há tempo considerável, será portanto uma revelação: pela primeira vez, em Portugal, um olhar de conjunto sobre uma obra crucial do cinema contemporâneo.Mais informações em: http://www.cinemateca.pt/CinematecaSite/media/Documentos/brisseau.pdf

Posted by Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema on Tuesday, 2 July 2019