Os dias das pequenas coisas

A obra de Sarah Affonso no Museu do Chiado

Os dias das pequenas coisas

Depois da apresentação de Sarah Affonso e a Arte Popular do Minho na Fundação Calouste Gulbenkian, o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado divulga o trabalho de uma das mais notáveis artistas modernistas portuguesas nos 120 anos do seu nascimento. Os dias das pequenas coisas está patente até março do próximo ano.

Apesar de uma obra multifacetada que percorre o desenho, a pintura, a ilustração, a cerâmica, os bordados e a decoração de móveis e interiores, Sarah Affonso permanece, 120 anos após o seu nascimento, relativamente desconhecida do grande público. O seu casamento com a figura prometeica de Almada Negreiros, e o facto de ter nascido num país que impunha fortes barreiras sociais à afirmação artística feminina, muito terão contribuído para este facto.

Contudo, Sarah foi uma das primeiras a transpor tais barreiras sociais à afirmação das mulheres como artistas, no Portugal das décadas iniciais do século XX. Foi a primeira mulher a frequentar, contra todas as convenções, o Café Brasileira, no Chiado, o que revela não só os preconceitos do seu tempo, mas também o espírito independente com que os encarava. Na sua arte construiu também uma linguagem e uma temática próprias, usando como matéria-prima as vivências e as memórias.

A pintora passou duas temporadas fundamentais para a sua evolução artística na cidade de Paris, a primeira no final de 1923, a segunda no ano de 1928. Aí viu exposições de Paul Cézanne e de Henri Matisse, colaborou esporadicamente com Sonia Delaunay e mostrou-se atenta ao trabalho de Georges Braque ou de Marie Laurencin, com quem partilhava o gosto pelos retratos femininos.

Família, 1937

Neste contexto, a obra de Sarah Affonso enquadra-se numa tendência clara de reafirmação da figuração que marca a arte europeia do pós-guerra. No seu caso, uma figuração intimista e sensível num registo inédito em Portugal, remetendo para um universo feminino e familiar e reconvertendo para uma arte moderna e cosmopolita as artes e o imaginário popular da sua infância minhota.

No livro de referência 100 Quadros Portugueses no Século XX, José-Augusto França dedica um belíssimo texto à obra Sereia de Sarah Affonso, datada de 1939, escrevendo:

“O que há de melhor neste quadro de devoção popular e lembrança minhota da pintora é que a sua importância de protagonista vai toda para a sereia nua e rosada, dengosa na sua cabeleira de estopa dourada, e não para a Senhora da Salvação! À graça católica sobrepõe-se a graça da arte (…)”

Sereia, 1939

Em seguida, define de forma lapidar a principal contribuição da pintora para a arte portuguesa da sua época e a paradoxal e singular posição que nela ocupa: “Aparecendo nos ‘independentes’ de 1930, a pintora levou às salas de exposição  uma lufada de ar novo e saboroso, (…) definindo um gosto infantil de inocência poética, numa dimensão insólita de modernismo que aqui de certo modo deteve a sua capacidade de invenção original – até (se fosse o caso de fazer história) à estruturação final e sintética das pinturas de Almada nas gares marítimas de Lisboa, seis ou sete anos mais tarde -, numa lógica cronológica em que Sarah Affonso, esposa e colega de Almada, cabe sem caber. O que é , aliás, a sua situação na pintura nacional do seu tempo.”

Por vezes, Sarah Affonso deixa de lado o retrato, a grande marca autoral da sua obra, optando por integrar nas suas composições determinados aspetos do vernáculo minhoto: as suas tradições e as suas feiras, procissões e romarias, a par das mitologias populares. Nestas obras evidencia a forma como a cidade de Viana do Castelo marcou a sua infância e adolescência, deixando-lhe na memória o carácter especial da terra minhota.

Procissão. 1934

Em 1962, António Pedro salientava “a originalidade gostosíssima da aventura minhota desta pintora sem folclore – o Minho de que falo está na memória do gosto, não na anedota e é portanto categoria, não acidente.”

A exposição do Museu Nacional de Arte Contemporânea, bem como o catálogo editado, pretende colmatar essa falha e divulgar o trabalho de uma das mais notáveis modernistas portuguesas, homenagem a uma artista que, apesar de todos os condicionalismos, criou uma obra com uma linguagem e temática próprias sabendo ser, simultaneamente, nas palavras de Emília Ferreira, directora do Museu Nacional de Arte Contemporânea, uma “hábil tecedeira” do seu tempo.