Trabalhar até morrer

"Karōshi" no Teatro Nacional D. Maria II

Trabalhar até morrer

A nova criação do Teatro da Cidade resgata à língua japonesa o título. Karōshi é uma palavra cunhada no final da década de 60 do século passado que significa, literalmente, “morte por excesso de trabalho”. Nesta alegoria dos nossos tempos, um incansável trabalhador de escritório é mantido até ao limite do esforço por um conjunto de outros trabalhadores que, como numa linha de montagem, apenas têm como objetivo zelar pela eficiência daquela máquina humana.

Toda a caixa de palco está forrada a frias e asséticas folhas de alumínio. A uma secretária, de costas para a plateia, está Bob, o incansável trabalhador da empresa. A seu lado, a menina da manutenção física e emocional desta máquina humana zela para que tudo corra bem. Mede-lhe a temperatura, dá-lhe água, esvazia o depósito da algália; em suma, mantem-no vivo e operacional. Para complementar o conforto de Bob, há ainda o rapaz das limpezas que louva a eficácia deste espaço para que não se perca, inutilmente, tempo de trabalho; o responsável pelo som, que ocasionalmente coloca a música preferida de Bob; e uma desenhadora de luz que deve, mediante o passar das horas, trocar o fundo da janela do dia para a noite, e vice-versa. Um dia, Bob decide abandonar o seu posto e dá conta da existência de um elemento disruptivo na incólume sala de trabalho.

Como mote para a sua mais recente criação, o Teatro da Cidade, coletivo constituído pelos atores e atores Guilherme Gomes, Rita Cabaço, Nídia Roque, Bernardo Souto e João Reixa, propõe uma reflexão “sobre o modo como o ser humano se relaciona com o trabalho”. O ambiente distópico, “espaço hostil, artificial e sem contacto com a natureza”, que leva ao extremo a ideia daquilo que pode ser “o escritório de uma grande corporação”, é dado pelo cenário concebido pela cenógrafa Ângela Rocha.

“A ideia, nomeadamente a palavra japonesa que dá título ao espetáculo, surgiu em conversa com um amigo durante uma viagem num autocarro apinhado de pessoas que regressavam a casa vindas do trabalho”, lembra Guilherme Gomes, que aqui interpreta Bob, o trabalhador que funciona “como um telemóvel ligado ininterruptamente”. “Nos rostos notava-se o cansaço, e começámos a falar sobre o karōshi, fenómeno que é reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho, e que é indissociável do stress ou do síndroma de burnout”. Importa lembrar que, ainda recentemente, em sequência de eleições na Indonésia, mais de 270 trabalhadores incumbidos de contar votos terão sido vítimas de doenças relacionadas com cansaço provocado pelas longas horas de trabalho.

Karōshi é uma tragicomédia sobre “a urgência de refletir sobre o trabalho e de como ele interfere nas nossas vidas e na nossa sociedade”. O espetáculo está em cena na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, até 24 de novembro.