Teresa Salgueiro

"Ainda hoje muitos me dizem que foi através do 'Lisbon Story' que conheceram os Madredeus"

Teresa Salgueiro

Teresa Salgueiro foi, durante 20 anos, a imagem e a voz dos Madredeus. Foram muitos os discos, concertos e viagens que partilhou com o grupo, mas uma das experiências que mais a marcou foi a participação no filme Lisbon Story - Viagem a Lisboa, de Wim Wenders. 25 anos depois, a cantora reencontra o realizador alemão na 13.ª edição do LEFFEST - Lisbon & Sintra Film Festival. No dia 24 de novembro, Teresa leva ao palco do Teatro Tivoli BBVA um concerto dedicado a Wenders.

É verdade que foi descoberta por acaso, quando cantava com uns amigos numa mesa ao lado do Rodrigo Leão e do Gabriel Gomes?

Na altura tinha 17 anos e o Bairro Alto era um lugar bastante misterioso, muito diferente do que é hoje, com algumas tasquinhas e discotecas. Eu e os meus amigos corríamos essas capelinhas todas, e essas saídas noturnas revestiam-se de um encanto especial, porque eu estava sempre a cantarolar, e tinha uma amiga que me pedia sempre para cantar nessas saídas. Isso reforçou esse gosto pelo canto, dando-me algum eco do entusiasmo das pessoas que batiam palmas e pediam mais. Nesse dia em particular, estávamos no Gingão, e entraram os Sétima Legião. Na altura, estavam à procura de uma cantora e penso que fui a 14ª que eles ouviram. Houve uma história muito engraçada relacionada com esse episódio: o Pedro Ayres estava no Brasil, e o Rodrigo levou a cassete com a gravação da audição ao aeroporto para ele ouvir. Depois chamaram-me para começarmos a trabalhar e nunca mais parei.

Tinha apenas 17 anos quando integrou os Madredeus, um projeto musical inovador na cena musical portuguesa nos anos 80. Teve logo noção que a sonoridade dos Madredeus era algo de único e inovador?

Desde o primeiro disco que o grupo foi recebido com um entusiasmo extraordinário, quer por parte do público, quer por parte da crítica. Gravámos o primeiro disco em 1987, e no final do ano seguinte fomos convidados para participar na Bienal de Jovens Artistas de Bolonha. Logo aí tivemos noção do entusiasmo que a nossa música provocava em quem nos ouvia e nem sequer percebia o idioma. Quando esta aventura começou, não imaginava que a música ia ser a minha vida, embora não deixasse de o desejar. A música sempre foi uma grande companhia para mim. Sendo filha única, ocupava grande parte do tempo a ouvir música e a cantar. Tive a felicidade de integrar um grupo em formação que me apresentou um repertório que era completamente novo, mas que ao mesmo tempo me era muito familiar e que acabou por ter grande ressonância junto do público. Os primeiros anos foram de muito entusiasmo, até porque estávamos a entrar numa fase muito diferente daquela que o país tinha vivido na década anterior. Os Madredeus tinham um pendor muito português, vindos da tradição, mas renovando-a. Tínhamos uma linguagem diferente, de um ambiente íntimo, de uma quietude… Penso que não percebemos isso logo à partida, não como o fazemos hoje, olhando para trás e analisando o nosso percurso. Cantava canções que me emocionavam muito, com as quais me identificava, e o lado sentimental das músicas causava uma grande ressonância junto das pessoas. A minha vida foi-se lentamente transformando no oposto do que tinha vivido até então, que era filha única, estava a estudar e nunca tinha saído do país. A gravação do primeiro disco foi feita em três noites no Teatro Ibérico. Tínhamos que tocar de noite para não captar o som do elétrico [risos].

Os seus pais incentivavam-na?

Estudei piano e na altura em que comecei a cantar estava na Academia de Amadores de Música, mas encarava isto de forma lúdica. Em casa organizava Festivais da Canção com as minhas primas que viviam no andar de baixo. O canto era uma presença constante e uma companhia. Na altura em que comecei a sair à noite e a cantar nessas saídas, andava apaixonada por dois discos que os meus pais tinham em casa e que me marcaram. Um deles da Amália (o que tinha o tema Abandono e que tinha o busto na capa), e Cantigas do Maio, do Zeca Afonso. Eram temas desses dois discos que cantava nessas saídas.

Em 2007 deixou o grupo. Achou que estava na altura de se dedicar a uma carreira a solo?

As nossas vidas mudaram, passámos a ter famílias, o calendário teve que se começar a gerir de outra forma. O primeiro calendário durou dez anos, o segundo outros dez, entretanto parámos durante um ano para pensar como nos íamos organizar. Tinha-se falado em ter três ou quatro meses de atividade muito intensiva e depois cada um faria outras coisas, até porque havia músicos que tinham outros projetos. Nesse ano gravei dois discos produzidos pelo Pedro Ayres de Magalhães, e outro a convite do compositor polaco Zbigniew Preisner, Silence Night & Dreams, gravado pela EMI Classics. Foi um ano de grande intensidade, em que fiz tournée com esses três projetos. No final do ano, quando voltámos a falar sobre o calendário, o que me foi proposto foi uma coisa muito distinta: um contrato de sete anos de prioridade (não de exclusividade). Ou era isso ou saía. Fiquei surpresa com a inflexibilidade, mas uma vez que as coisas eram assim, decidi sair. Pela primeira vez disse que não.

Mas nunca desistiu da música…

Entretanto integrei um grupo de criação de repertório, comecei a criar algumas melodias e a escrever umas letras. Nos Madredeus cantava aquilo que me entregavam, tinha algum espaço de criatividade mas não é o mesmo que ter total liberdade para criar letras e melodias. Esse grupo não continuou, mas fiquei sempre com a ideia de criar um grupo de músicos com os quais iria criar repertório, o que veio a acontecer mais tarde, em 2011. Até essa data fiz muitas coisas: estive em Itália, onde cantei com os Solis String Quartet, ao mesmo tempo que ia construindo concertos e fazendo arranjos, sempre à procura dos músicos certos para criar esse ambiente de grande dedicação. Isso surgiu em 2011, e em 2012 gravei o meu primeiro disco de originais, Mistério, e o segundo, Horizonte, em 2016. Entre esses dois, gravei um disco onde fiz os arranjos para uma série de canções mexicanas e de outros países da América Latina.

“Quando esta aventura começou, não imaginava que a música ia ser a minha vida, embora não deixasse de o desejar”

Colaborou com diversos artistas de renome internacional como José Carreras, Caetano Veloso ou Gilberto Gil. Há algum nome com quem gostasse de trabalhar?

Nunca pensei muito nisso. As colaborações que fui fazendo foram sempre encontros muito fugazes, convites que me chegaram. Só muito recentemente, em maio, num concerto que dei no Casino Estoril, é que convidei duas pessoas para se juntarem a mim: a Marisa Liz e a Sara Tavares. Duas mulheres que admiro profundamente, de personalidades muito distintas mas igualmente encantadoras. Mulheres de grande força e de grande entrega. Conheci a Marisa porque os Amor Electro convidaram-me a cantar num concerto que deram no Campo Pequeno, e a Sara sigo-a há muitos anos com grande interesse. A música dela tem-me feito muita companhia. Convidei as duas e achei maravilhoso.

Foi difícil deixar de ser apenas intérprete para ser também compositora?

Foi uma alegria enorme perceber que tinha essa capacidade. Para gravar o primeiro disco quisémos ir para um sítio onde estivéssemos completamente dedicados à música, sem distrações. Ficámos no Convento da Arrábida (pertencente à Fundação Oriente, que generosamente nos cedeu o espaço durante um mês). Tinha muitos temas que não tinham ainda as letras escritas e as coisas fluíram e correram muito bem. As coisas estavam cá para sair, de certa forma sabia o que queria dizer. As palavras vieram, foram encaixando na métrica. O segundo disco já foi mais complicado, mas também porque foi mais difícil arranjar tempo para estar completamente disponível. Ainda pensei que podia correr da mesma forma mas enganei-me completamente, porque as coisas nunca se repetem. Tentei repetir o processo mas não resultou, até porque tive algumas distrações.

O que lhe dá mais prazer: cantar as suas letras ou interpretar as dos outros?

São coisas muito distintas. Quando canto alguma coisa, as palavras dizem-me muito, mesmo que não sejam minhas. Encarno o personagem. No caso das minhas letras já não é bem assim. Embora as letras não sejam autobiográficas, elas refletem o meu pensamento, a minha forma de estar. Com as minhas letras estou mais à vontade, tenho outra liberdade. São coisas distintas mas igualmente cativantes.

A Teresa será sempre associada aos Madredeus. Encara isso como um fardo ou como um motivo de orgulho?

Não diria um fardo, mas às vezes pode ser um pouco limitador. A ideia que as pessoas têm dos Madredeus é muito distante. Embora déssemos muitos concertos e enchêssemos salas pelo mundo inteiro, não era uma música que passasse muito na rádio, não era massiva. A ideia que as pessoas têm é de um certo personagem que é mais pequeno do que na verdade os Madredeus foram. Não posso encarar como um fardo porque é algo que faz parte de mim, é aquilo que sou. É indissociável da minha pessoa, é a minha genética musical. Foram 20 anos. É uma grande parte da minha estrutura emocional. À medida que o tempo vai passando ganho distância e outra perspetiva, ao ponto de agora fazer sentido dar um concerto em que a música do grupo está mais em foco.

25 anos depois, recorda a estreia de Lisbon Story de Wim Wenders com um espetáculo único. Que memórias guarda dessa experiência?

Foi uma belíssima coincidência. A editora tinha acabado de decidir que o disco que fizéssemos a seguir seria editado em 32 países. Nessa altura (1994), Lisboa, que era Capital Europeia da Cultura, encomendou um documentário sobre a cidade ao Wim Wenders, e ele perguntou-nos se podia usar a nossa música como banda sonora. Estávamos há três anos sem gravar e tínhamos muito repertório, por isso propusemos-lhe que usasse o novo repertório. Numa sessão de estúdio, em vez de gravarmos um disco gravámos dois. A música tornou-se no storyboard do filme e deu origem ao guião que trazia a visão do Wim Wenders sobre Lisboa, que acabou por nos convidar a entrar no filme. Foi uma experiência muito enriquecedora. Para o grupo foi extraordinário, porque acabámos por editar os nossos discos pelo mundo inteiro e porque fizémos parte de um filme que nos deu a conhecer a um público a que se calhar não chegaríamos de outra forma. Ainda hoje muitas pessoas me dizem que foi através do filme que nos conheceram.

O que se segue?

Tenho várias coisas escritas, soltas. Tenho um tema que fiz com um poema do José Saramago que se chama Alegria. Essa alegria vinca o início de um novo ciclo.