A pedra no deserto

“Inimigos da Liberdade” em estreia no Teatro da Trindade

A pedra no deserto

Vencedor da última edição do Prémio Miguel Rovisco – Novos Textos Teatrais, Inimigos da Liberdade – Peça para três escravos marca a estreia do realizador Manuel Pureza na escrita e direção para teatro. Alegoria sobre um estado de “ditadura sem rosto”, a peça conta com interpretações de Cristóvão Campos, João Craveiro e João Vicente. Em cena, até 29 de dezembro, na Sala Estúdio do Teatro da Trindade INATEL.

Se no mito de Sísifo, o antigo monarca é condenado eternamente a carregar uma pedra até ao cimo do monte, em Inimigos da Liberdade – Peça para três escravos a incumbência cabe a três homens agrilhoados. Aqui não há uma montanha para vencer, mas areias do deserto, e um círculo infinito que, vencendo o tempo e o espaço, os fez esquecer quem eram.

Certo dia, a pedra fica atolada e, estes homens sem recordações, experimentam o desnorte, sobretudo quando se libertam das correntes e se vêem perdidos no meio do nada. Quem são, afinal, estes personagens tão diferentes mas, ao mesmo tempo, tão iguais?

Manuel Pureza, autor e encenador, considera-os “escravos de si mesmos”, homens “que não têm passado nem futuro” inseridos numa “ditadura perfeita, sem rosto”, semelhante à que, de certo modo, “vivemos, hoje, quando carregamos a responsabilidade de fazer o sistema funcionar como quem carrega uma pedra, sem nunca questionar. Cumprindo, apenas”. “É curioso como nós próprios nos tornámos inimigos da liberdade, dispensando mesmo ser policiados”, reflete.

Quando o sistema encrava (a pedra que estaca na areia) e, como que por milagre, as correntes se soltam dos corpos, eles já não sabem viver sem elas. Desabafa um dos homens: “a corrente é parte de mim”. “Isto é um pouco como o mundo do trabalho. O objetivo é conseguir ser sempre o número um, independentemente de tudo o que nos rodeia.”

Estreia auspiciosa no teatro de Manuel Pureza – realizador conhecido por trabalhos para televisão, embora tenha dirigido a curta-metragem A Bruxa de Arroios, distinguida com o Prémio MoteLx em 2012 –, a presente peça foi a vencedora da edição 2018/2019 do Prémio Miguel Rovisco – Novos Textos Teatrais,  iniciativa anual da Fundação INATEL com o fim de promover e estimular novos autores para a escrita de textos originais para teatro em língua portuguesa.