Mazgani

"Leonard Cohen é o grande culpado de tudo isto"

Mazgani

Shahryar Mazgani é um verdadeiro poeta das canções. Admirador confesso de Leonard Cohen, que, aliás, lhe mudou a vida, o músico lançou agora o seu sexto álbum, ‘The Gambler Song’, que apresenta em concerto no Capitólio a 4 de março.

Vieste para Portugal com cinco anos. Que recordações tens do Irão?

Tenho recordações da minha casa, da minha família. Para a minha mãe, que é uma pessoa muito mais nostálgica do que eu, sair do Irão foi uma experiência difícil. Eu construí a minha vida aqui, a minha mãe tinha 40 anos quando saiu do Irão. Se vir um filme do Kiarostami comove-se muito… Tenho um apetite grande por todas as coisas de lá que acho bonitas, mas não tenho uma natureza nostálgica. Tendo havido aquela rutura aos 5 anos, acho que é natural que tenha ficado mais ‘desapegado’ do que eles.

Nunca mais lá voltaste?

Não. Estou muito grato aos meus pais por terem sempre falado farsi comigo em casa e por me terem mostrado todas as coisas bonitas do Irão, mas o Irão atual não corresponde às minhas recordações de infância. Mas tenho esperança.

Estudaste Direito, trabalhaste em fotografia, foste crítico de cinema e só por volta dos 30 anos te dedicaste à música. Porquê nessa altura?

Foi uma crise de meia idade [risos]. Sempre tive muito amor pela música. Os meus pais ouviam muita música em casa. Talvez pelo facto de a música ser uma coisa muito séria no Irão, o equivalente a tocar guitarra portuguesa: tens que te inserir dentro de uma certa tradição, ter grande respeito pelo instrumento. É algo que passa quase de geração em geração, de pai para filho, mestre para discípulo… Envolvi-me com a música não por achar que tinha particular vocação, mas sim como fuga às outras opções. Não queria assim tanto ser advogado. Em vez de seguir algo pré-formatado para mim, tentei encontrar um sítio onde fosse mais ‘eu’. Daí a música.

O Leonard Cohen é a tua grande inspiração…

O Cohen é provavelmente o grande culpado de tudo isto, foi quem me desviou do caminho mais óbvio. Foi uma revelação para mim. A certa altura da minha vida, sentava-me a ler as letras. Na minha cabeça aquilo era bíblico. Olhando para trás, acho que foi nessa altura que se deu o ‘click’.

Não te imaginas a fazer outra coisa, portanto…

Acho que fazer canções é um fim em si mesmo. Quando estou em casa e tenho um esboço para uma canção, o meu dia está justificado. Consigo dormir melhor porque sinto que estou quase a tornar-me um músico. Nesses momentos, sinto que o dia valeu a pena. Não me vejo a fazer outra coisa, não consigo imaginar uma atividade que me diga tanto quanto isto. Queria muito e continuo a querer muito ser músico. Há um certo ‘síndroma de impostor’ quando se começa tarde e quando não é vocacional. De quando vais para a música em fuga e não por chamamento.

Em 2005, a revista francesa Les Inrockuptibles considerou-te um dos melhores projetos musicais da Europa. Que impacto é que isso teve em ti?

Em 2005 gravei uma maquete e enviei para essa revista, que eu lia e em quem confiava. Lia as críticas, ouvia a música e tendencialmente gostava. A revista elogiou a minha música e eu sempre tinha acreditado na curadoria deles. Pensei que, então, se calhar a minha música tinha valor… Deu-me confiança no início. Às tantas deixas de olhar para fora à procura de aprovação, começas a procurar os teus próprios filões e a persegui-los. Abres uma porta que achas que pode ser uma canção e se alguém disser que não é por ali, tu dizes que sim, é por ali.

Escrever canções é um processo catártico e demasiado pessoal?

Às vezes estou a escrever e penso que estou a contar a minha história toda. Tenho algumas reticências quando estou nesse processo, mas estou a tentar tirar coisas cá para fora, a tentar ser honesto, porque a canção tem de sobreviver à experiência que a leva a ser escrita, tem de ganhar novos significados. Idealmente, quero escrever canções que possa cantar daqui a muito tempo, quero que tenham vitalidade. Isso obriga a algum despojamento. Depois de estar cá fora já não há nada a fazer. Se for útil a alguém, magnífico!

“A canção tem de sobreviver à experiência que a leva a ser escrita, tem de ganhar novos significados”

 

O que te inspira?

A coisa mais natural para mim é cantar. Escrevo para ter o que cantar. Quando se está a cantar é se uma espécie de viúvo, ou de órfão. Não se é pai nem filho de ninguém. Está-se sozinho. O trabalho de escrita é um trabalho evocativo. Há um grande escritor de canções que dá o seguinte conselho: “escreve o título da canção e ficas com uma canção por escrever”. Eu dou o título no final. Procuro descobrir o que estou a escrever à medida que o vou fazendo, tentando revelar o que está dentro de mim. É mais terapia do que outra coisa [risos]…

Já te aconteceu olhar para uma canção mais antiga e não te reveres nela?

Quando sabemos o que as coisas querem dizer, perdemos o interesse. Enquanto houver coisas por descobrir, enquanto houver um lado obscuro, elas continuam a ser importantes, porque podem ser surpreendentes e ter um desfecho novo. Quando desvendas o que o Leonard Cohen quer dizer, deixas de o ouvir. No caso dele, por mais que se ouça, é sempre misterioso. Há uma letra dele de uma canção chamada Tower of Song, que começa assim:“Well, my friends are gone and my hair is grey, I ache in the places where I used to play”. Sempre adorei essa música. Um dia, na cidade onde cresci, em Setúbal, estava a passar na escola secundária onde andei, olhei para os miúdos e senti-me tão distante daquela realidade… Essa música fez-me todo o sentido naquele momento!

O que sentes quando alguém diz que a tua música lhe mudou a vida?

Esse é o maior sucesso que se pode ter. Há dias estava a caminhar no Jardim da Estrela e reparei num casal que olhava muito para mim. Continuei a andar até que os dois, com 20 e poucos anos, meteram conversa comigo. O rapaz disse-me que tinha mandado uma música minha à rapariga. Eu perguntei se tinha funcionado, ao que ele me respondeu que ela agora era namorada dele. Noutra situação, há uns anos fui tocar ao Porto e apareceu um rapaz com o meu primeiro disco que me disse: “as tuas letras ajudaram-me a fazer o luto pela morte do meu pai”. Isso é o maior sucesso, ser útil às pessoas. Tento fazer, na medida das minhas limitações, alguma cartografia, algum mapeamento. Se esse mapa for útil para alguém, então a missão está cumprida.

Tens cantado sempre em inglês. Há planos para um dia cantares em português?

Não excluo essa possibilidade. Em 2007, fiz uma versão de uma canção escrita pelo Zeca Afonso para o Adriano Correia de Oliveira, A Balada da Esperança, que fez parte do disco Adriano – Aqui e Agora (O Tributo), onde participou muita gente que admiro. Talvez um dia, sim.

Que histórias conta este novo disco, The Gambler Song?

Histórias de amor, desencontro, saudade, distância, e de alguma solidão, que é indispensável para compor. Não há comunidade sem solidão. Não há um concerto sem alguém ter estado em casa a procurar histórias.

Por que razão um coração partido produz melhores canções?

Porque a felicidade vive-se, é um fim em si mesmo. A dor é que tem de ser convertida. Não há nenhuma música boa sobre a alegria ou a felicidade [risos]. Se está tudo bem não há necessidade de fazer canções a dizer que está tudo bem… As pessoas gostam de se rever nas músicas, era o tal mapa de que falava há pouco. Isso é que traz conforto, e isso só se consegue com sofrimento.

És daquele tipo de músico que escreve compulsivamente ou precisas de desligar depois de lançar um álbum?

Não dá para parar totalmente porque depois parte-se de uma inércia muito grande. É importante ir fazendo alguma coisa. É mais do que uma coisa compulsiva, é a forma que arranjo de estar empregado e de justificar o meu dia. É um processo lento, mas quero continuar a dizer coisas.