A reposição de Blackface deve-se ao êxito das anteriores apresentações. Introduziu alterações ou respeitou a máxima que diz em espetáculo de sucesso não se mexe?

Fiquei surpreendido com o bom feedback que o espetáculo teve, o que me fez deixar de lado todas as possíveis inseguranças sobre se estaria ou não finalizado. As pequenas alterações que introduzo decorrem do sítio aonde eu estiver a fazer o espetáculo. Em Guimarães houve imagens que alterei para que se adequasse mais ao contexto da cidade (no caso associado a uma claque de futebol).

Quem são os substitutos na atualidade da prática do “blackface” e do que esta representa?

Qualquer representação caricatural de uma cultura, ou de uma etnia, corre o risco de ser ofensiva. Às vezes não é por existir “blackface” (a pessoa pintar o rosto de preto) que passa a ser mais ofensivo. É ofensivo quando alguém veste uma roupa e faz um sotaque. Ou veste uma peruca e diz ser uma mãe africana que se dirige à escola para bater nos filhos. Estes estereótipos existem na cabeça de muitas pessoas. Mesmo que nessas representações não se note nada muito grave, é possível perceber na intenção das pessoas que existe o gozo da caricatura.

As fotos de promoção, em que surge pintado de azul e coberto de purpurinas, que significado têm para si?

Se essas imagens podem lembrar a algumas pessoas os seres do Avatar (2009) de James Cameron, a mim remetem-me para o génio da lâmpada interpretado pelo Will Smith no Alladin, que tem quatro ou cinco anos. Mas sobretudo para aquela mítica frase que as pessoas usam para se defenderem no seu antirracismo, dizendo que têm amigos de várias cores: amigos brancos, negros, amarelos, azuis… Na mesma frase elencam tons de pele que existem e não existem. São amigas de pessoas reais e imaginárias. A ideia original era estar pintado de várias cores, mas optei somente pelo azul pelo poder de gerar curiosidade. Isto serve igualmente um momento de redenção no espetáculo, em que se assiste em vídeo a essa tinta ser removida da pele com água.

Existe um estereótipo promovido pelo cinema de Hollywood que é a figura do “negro mágico”, o coadjuvante que vem em auxílio do protagonista branco. Este tema interessa-o ao ponto de poder pegar nele numa futura criação?

Uma coisa em que reparo muito quando estou a ver filmes, não só americanos, mas também portugueses, é a forma como aparecem as pessoas negras. Tenho sempre esta espécie de radar ligado e embora atualmente seja maior a probabilidade de vermos atores negros em papéis de relevo ou mesmo papéis principais, isto acontece mais fora de Portugal do que cá. Nós nem tivemos sequer abertura para que surgisse a figura do “negro mágico” ou mesmo não mágico, não havendo espaço para a crítica, dado que personagens negras no audiovisual português são inexistentes. Existem atores cheios de talento e vontade de trabalhar, mas não os vemos surgir.

As ferramentas a usar no combate ao humor alarve podem ser igualmente eficazes contra os discursos de ódio?

Acho que é mais ou menos isso que tento fazer neste espetáculo, servindo-me da questão do humor étnico ou humor racial e do quão perigoso pode ser no perpetuar de estereótipos, de ideias únicas sobre uma determinada comunidade, cultura ou etnia. Tento inverter o objeto dessas piadas. Colocando as pessoas brancas nesse lugar. Tento brincar com isso e explorar os níveis de perigo que existem, o mais longe que posso ir, ao colocar pessoas brancas numa gaveta única. Como se todas elas fossem iguais, algo que é bastante comum no humor de pessoas brancas sobre pessoas negras, asiáticas, etc. Acredito que o humor pode servir para combater os lugares-comuns que se formam numa sociedade tendencialmente racista, conservadora e luso-tropicalista. Mas o humor não resolve. Os problemas estruturais continuam.

A questão da discriminação positiva também está presente neste espetáculo? Nomeadamente a hipocrisia de quem se cola à representação de causas e minorias com o intuito de obter subsídios ou outros apoios?

Essa nova alínea nos concursos da DGARTES, um convite a que as pessoas contemplassem ou considerassem ter afrodescendentes nas equipas, preocupou muitas pessoas. E não de uma forma preconceituosa. Era mais numa lógica de “espera aí, eu não conheço ninguém”, e o meu pensamento nessa altura foi que a iniciativa da DGARTES funcionava para que se procurassem estas pessoas que estão dispostas e prontas a trabalhar. Muitas pessoas não conhecendo profissionais negros da área, procuraram obter referências ou recomendações apenas e só para o efeito da candidatura; não para que estas pessoas entrassem nos projetos ou que estes fossem sobre questões raciais ou de discriminação. Isto levanta algumas questões.

Já teve espectadores a saírem a meio do espetáculo? Lida bem com a situação?

Este espetáculo teve cinco apresentações, contando com a antestreia em Montemor. Não me lembro de que alguém tenha saído. Caso venha a acontecer lido bastante bem com isso porque não parto do princípio de que a pessoa possa sair por não estar a gostar. Os espectadores são livres de sair, sejam essas saídas mais discretas ou notórias. Respeito muito a liberdade dos espectadores. Tenho tido a oportunidade de fazer outros espetáculos fora de Portugal, em França, Bélgica, Itália, onde não existe qualquer pudor em sair da sala quando aquilo a que assistimos não nos enche as medidas.

É importante terminar cada atuação com uma nota mais positiva, ou prefere que o público saia a processar os estímulos a que esteve sujeito?

Interessa-me que as pessoas saiam estimuladas e com a sensação de que assistiram a um objeto que também pretende ser entretenimento. Acredito muito na qualidade do teatro enquanto puro entretenimento, embora as coisas que eu faço, que escrevo e penso para a cena nunca sirvam exclusivamente esse propósito. Não sou ninguém para ter a pretensão de que vou ensinar às pessoas o que é o “blackface”, onde começou e tudo mais, e a última coisa que quero é que elas saiam do espetáculo sentindo-se culpadas. Eu próprio aprendi muito no processo de pesquisa do espetáculo; sou de certa forma eu ali a rir-me da minha ignorância sobre o tema, enquanto estou a abrir espaço a que as pessoas se riam de uma falta de conhecimento que é coletiva.

Com que tipo de manifestações de racismo mais se confronta no quotidiano?

Pensa-se muitas vezes que os episódios de racismo que as pessoas sofrem passam por frases como “ó preto vai para a tua terra”. Nunca testemunhei esta frase a ser dita. Sei que existe e que aparece quando a discussão já escalou do sítio que conheço melhor que é o das microagressões. As que provêm de um sítio benevolente, até carinhoso, de uma ingenuidade que as pessoas manifestam quando falam, acerca do tom de pele ou do cabelo de alguém, ou do sotaque. Perguntam-me muitas vezes de onde sou, e respondo por que sentem necessidade de saber de onde sou. Ou de onde virá a necessidade de alguém de tocar no meu cabelo. É fácil sentir-me observado nessas situações. É este o racismo mais importante de desconstruir no nosso território, o racismo sem maldade.

No filme Não Dês Bronca (1989), de Spike Lee, durante uma discussão entre afro e italo-americanos, um dos irmãos brancos reconhece que entre os seus ídolos estão Prince e Michael Jordan. O Marco tem ídolos de raça branca?

Tenho muitos ídolos de raça branca. Uma das grandes referências para a criação deste espetáculo foi o Bo Burnham, um humorista de stand-up da minha idade que começou como youtuber aos 16 anos, que mostra um pensamento progressista e autocrítico relativamente às questões de estereotipar as pessoas de etnia diferente; e que a partir de um lugar de privilégio, assume e desconstrói essa condição com humor. Na música tenho o Eminem, um dos meus ídolos na adolescência. E atores, como o Daniel Day-Lewis e o Joaquin Phoenix.

Os seus primeiros trabalhos como profissional aconteceram ainda durante a licenciatura na ESTC ou depois? Que circunstâncias levaram a essa passagem?

Tive a sorte de conhecer pessoas na Escola com quem me dei muito bem; com quem criei antes de uma relação profissional uma relação de amizade, alunos que estavam mais avançados na licenciatura e que já trabalhavam. Casos do João Pedro Mamede e do Nuno Gonçalo Rodrigues que na altura estavam a formar a companhia Os Possessos, e que me convidaram para o primeiro grande espetáculo deles, a Rapsódia Batman. O espetáculo fez-me pensar que era realmente aquilo o que queria fazer o resto da vida; e marcou também a minha entrada no meio profissional, tendo sido apresentado na Politécnica, que neste momento passará a ser somente um teatro na memória das pessoas. Infelizmente.

O Queer celebra 28 anos e muito mudou desde então, nomeadamente as questões queer estarem presentes em quase todos os festivais de cinema. Qual o impacto desta nova realidade na produção e programação do festival?

Acima de tudo, limita as opções. Há muitos distribuidores que não querem que um filme, mesmo sendo queer, seja exibido num festival queer. Acham que isso marca o filme e acreditam que de alguma forma pode prejudicar o seu percurso. A importância de haver um festival queer prende-se com a forma como nós olhamos para este cinema, o único a que estamos totalmente dedicados. Há por isso, obviamente, uma componente política e social, um olhar que é completamente diferente. É verdade que a questão queer e os objetos culturais que a ela estão ligados e que são disseminados, não só noutros festivais mas também na televisão, têm uma qualidade e um cuidado cada vez maior, mas isso, para mim, reforça ainda mais a nossa importância enquanto festival. Porque, muitas vezes, o que acontece nos outros festivais e nas plataformas que programam também estes objetos culturais é que o fazem mais por uma questão de moda, para não ficarem de fora das questões de que se fala atualmente. No festival Queer há um pensamento mais profundo e um engajamento diferente.

Considera que faz sentido dizer-se que existe cinema/género queer?

O que o cinema queer tem de particular é o facto de se cruzar com todos os géneros cinematográficos, e isso é uma enorme riqueza. Quando olhamos para a história do cinema, desde a sua origem, conseguimos apontar estas questões. Nessa altura, não podemos falar num cinema queer em termos políticos, porque a motivação e também a liberdade que existiam eram muito diferentes. Mas faz sentido perceber a intenção com que se parte para fazer um filme e essa intenção, quando lá está, faz desse filme, um filme queer. Aí podemos falar do cinema queer enquanto género. Depois há também, obviamente, todo um trabalho de leitura, principalmente quando olhamos para a história do cinema e para os grandes clássicos, que é um trabalho que também temos vindo a fazer ao longo destes quase 30 anos: olhar e ver como é que estas questões estavam ali representadas. Questões que, muitas vezes, para o público da altura não eram óbvias, ou só o eram para um público queer que compreendia aqueles sinais. Esse cinema acabou por ser uma forma de resistência.

A temática deste ano é, precisamente, a Resistência Queer, com a apresentação de filmes e produções de partes do globo em conflito ou onde os direitos LGBTQI+ são ameaçados. Podemos afirmar que o Festival de Cinema Queer  tem sido, ao longo de todos estes anos, uma forma de resistência?

Arrisco dizer que qualquer evento cultural deste país é sempre um ato de resistência. E, quando ligado às questões queer ainda mais. Há uma coisa muito curiosa no nosso festival, é que somos o primeiro festival de cinema em Lisboa. E isto é muito raro acontecer, uma capital ter como primeiro festival de cinema, um de cinema Gay e Lésbico. No início houve um acolhimento grande das instituições porque havia uma enorme curiosidade. Que festival é este? Que cinema é este? Quem são estas pessoas? Havia essa curiosidade, até mediática, de descobrir quem é vai ao festival. Depois obviamente atravessámos também uma série de questões políticas, de cortes de subsídios, quer da parte de governos ou da Câmara de Lisboa, e nesse aspeto há sempre um trabalho de resistência. Atravessámos também uma série de lutas políticas da comunidade LGBTQI+, vivemos isso tudo e foram sempre momentos de luta que tentámos  incorporar no festival. Quisemos que o festival fosse uma voz para essas lutas, refletindo isso no próprio cinema que escolhíamos exibir.

“Homecoming Queenz” de Elias Wakeem (Palestina, 2023, 11’)

Dentro deste eixo temático é exibido o programa Foggy: Palestine Solidarity, Cinema & The Archive, uma iniciativa das plataformas Cinema Política e Queer Cinema for Palestine. De que forma a solidariedade para com a situação dramática na Palestina se relaciona com a temática queer?

Há pouco falava da questão do olhar queer. O olhar queer tem uma componente comunitária e uma componente, muito forte, ligada aos direitos humanos. Nesse aspeto, o programa Resistência Queer que apresentamos é muito importante porque oferece uma visão não só sobre a questão da Palestina, mas também sobre outros países e zonas de conflito. Procuramos perceber como é que é possível viver e criar neste ambiente. Vamos falar, obviamente, sobre a Ucrânia e sobre a extrema-direita, mais precisamente no caso da Hungria. Também sobre outros casos de países divididos, como o Kosovo e a questão com a Sérvia. O objetivo é tentar compreender, em primeiro lugar, como é que os artistas, preferencialmente destes países, olham para os conflitos e como é que isso se reflete na sua vivência pessoal e também na criação artística.

Há ainda um programa de curtas dedicadas à realidade queer na Ucrânia e a exibição de longas-metragens de Chipre e Hungria. Quais os desafios de trazer ao festival obras que têm origem em países onde há conflito e discriminação de pessoas LGBTQI+?

Na Ucrânia, é relativamente fácil chegar aos filmes, a comunicação é fácil, são realizadores e realizadoras que circulam e que vão aos festivais, que apesar de tudo, conseguem ter essa visibilidade. Os filmes que vamos apresentar são, na maioria, feitos debaixo do conflito, focam o que se está a passar lá neste momento. Se falarmos de países como a Hungria, também se fazem filmes queer, o problema muitas vezes é a visibilidade. São filmes que precisam dos outros países, que precisam de circular para terem visibilidade. Porque, obviamente, há uma enorme censura no país e há um problema de financiamento que impede a produção. Este programa que o festival apresenta é muito engraçado, porque é um programa de um cinema que podemos definir como “faça você mesmo”, ou seja, de filmes que se conseguem fazer com meios muito escassos.

“Simeiz” de Anton Shebetko (Ucrânia, 2022, 18’)

Para além deste lado político, que novidades ou momentos destaca da programação?

Esta vai ser uma das maiores edições destes últimos anos. Vamos ter, para além deste programa da Resistência Queer, uma retrospetiva muito extensa do William E. Jones, que é um realizador e artista plástico norte-americano, de Los Angeles. É um realizador muito interessante que vai buscar uma série de estéticas, que nos são até bastante familiares, do leste europeu. Trabalha essencialmente com arquivo e utiliza arquivos de vigilância policial dos anos 1950, de propaganda norte-americana, mas também de propaganda do bloco soviético europeu. Outros dos seus focos é a pornografia, a pornografia pré-SIDA nos Estados Unidos e a pornografia depois da queda do muro de Berlim. Mistura todos estes elementos e dá-lhes uma leitura queer. É um cineasta absolutamente fascinante.

Vamos ter uma programação paralela que vai dar também lugar a alguns debates sobre as questões de género, que estiveram tão em voga ultimamente por causa da publicação de um livro, de pessoas ligadas à direita e à extrema-direita. Vamos falar sobre questões muito específicas ligadas à gentrificação, problema que neste momento se vive em Lisboa e nas nossas cidades, e perceber como isso afeta e como está a destruir as próprias comunidades. Vamos ter, na abertura, um filme de Cannes [Baby, do cineasta brasileiro Marcelo Caetano]… Aliás, temos vários títulos que conseguimos do último festival de Cannes, e vamos ter um filme que vai ser uma surpresa para muita gente, um filme incrível, chamado Call Me Agnes, uma produção holandesa, cuja protagonista é uma mulher trans de origem timorense e que será um excelente fecho de programação.

All Male Mash Up” de William E. Jones (USA, 2006, 30’)

O público do festival é um público heterogéneo? Tem mudado ao longo dos anos?

Desde o início que o festival sempre teve um lado muito heterogéneo. Quando nasceu estava integrado na associação ILGA e, obviamente, havia uma componente comunitária grande e uma participação da comunidade, mas estamos a falar de 1997, uma realidade completamente diferente da que vivemos hoje, mesmo em termos associativos. Agora há dezenas de associações ligadas a diferentes expressões e que lutam pelos seus direitos, pelas suas expressões individuais e do grupo. Claro que o público foi mudando ao longo dos anos, porque o cinema também foi mudando. Neste momento temos acesso e temos um tipo de programação completamente diferente da que tínhamos há três anos. Temos muito pouca programação comercial, porque o que se faz em termos de cinema queer mais comercial são filmes que vão sobretudo para as plataformas, ou seja, que não chegam sequer ou fazem muito pouco circuito de festival. Mas temos um leque de escolha enorme e o festival, progressivamente, foi-se voltando muito mais para o cinema independente, para um cinema mais marginal, embora também trabalhemos esse outro cinema, porque há coisas de muita qualidade e pertinência. Tentamos que o festival abarque tudo isso. Mas sim, diria que o público sempre foi um público muito heterogéneo. A certa altura, talvez há uns 10 anos, começa a haver um público muito jovem. Isto tem a ver um bocadinho com a sociedade e com o público universitário, um público que começa a formar as tais associações e que começa a ter outro tipo de vida política e de ação cívica.

Não é fácil a uma mulher de origem modesta, sem lastro familiar na profissão, vingar no mundo da advocacia e destacar-se entre pares que ostentam apelidos com notoriedade na praça. Teresa Correia conseguiu-o a pulso, com uma invulgar capacidade de trabalho e especial mérito. E até com uma polémica dose de amoralidade, uma vez que, segundo ela, não cabe ao advogado lutar pela verdade, mas proporcionar a melhor defesa, mesmo que o cliente esteja a ser levado à justiça pelos piores motivos.

Imbatível nas barras de tribunal, interpretando o sistema judicial como um jogo onde só os mais astutos podem vingar, Teresa age em nome do direito universal à defesa, ostentando que a regra de ouro da sua profissão é a mesma que a de um motorista de táxi: aceitar seja qual for a “corrida” e não escolher o cliente.

Assim, nunca se deixa envolver emocionalmente e tem sempre presente a máxima de que o “bom advogado se limita a contar a melhor versão da história do seu cliente. Nem mais, nem menos”. Mesmo quando uma testemunha, mulher como ela, a olha nos olhos e lhe transmite a possibilidade de algum dia poder ser ela mesma a vítima, a mais do que promissora advogada não vacila.

Até ao dia em que um acontecimento terrível põe em causa todas as crenças e o modo como, até aí, Teresa encara o sistema. Agora, o jogo que tantas vezes jogou corre contra si.

Multipremiada, grande sucesso de público e de crítica, À primeira vista é a peça-sensação que consagrou a dramaturga (e advogada) australiana Suzie Miller. Da estreia em Sidney, em 2019, ao triunfo no West End e na Broadway nos últimos anos (que valeu à atriz Jodie Comer, da série Killing Eve, o Tony Award para melhor atriz em 2023), Margarida Vila-Nova descobriu a peça através de uma amiga, psicóloga, e, “em conversas”, achou-a tão pertinente que acabaram por ir a Londres ver o espetáculo.

Muito mais do que um thriller jurídico

“Era um texto não só desafiante, como inquietante pelo tema: o abuso sexual e a violência sobre as mulheres, a justiça que reflete a sociedade patriarcal, com uma visão machista e misógina”, sublinha a atriz após o notável tour de force que é vestir a pele de Teresa, ou Tessa Ensler, no original. “Penso sempre numa atleta de alta competição. É um papel muito intenso, que exige uma total disponibilidade e entrega física e emocional”. Para o ensaio a que assistimos, conta a atriz, “foram precisas mais de três horas de preparação”.

Embora a vontade de fazer a peça tenha ficado “em banho maria” depois da ida a Londres, por coincidência, Sandra Faria, da Força de Produção, já havia sinalizado o texto, pelo que, quando Margarida Vila-Nova lhe falou nele, conjugou-se com alguma celeridade a vontade de o estrear em palcos portugueses. Imediatamente a atriz pensou em Tiago Guedes, encenador e realizador, para o dirigir, seguindo-se a conciliação de agendas para levar avante a versão portuguesa de Prima Facie – título original em latim, que significa, literalmente, “à primeira vista”.

“Antes de aceitar o convite, pedi à Margarida para me deixar ler o texto, de modo a perceber se encontrava pontos que me interessassem. E encontrei, precisamente, um assunto que me interessa bastante, demasiadas vezes tratado de forma muito leviana, que é esta questão das linhas ténues do abuso dentro das relações”, lembra Tiago Guedes. “À questão do consentimento, e da falta dele”, a peça junta pistas para debater como a mulher continua a perder, “no confronto com os homens, no que diz respeito à lei e à justiça.”

Enquanto encenador, À primeira vista teve para Guedes dois particulares atrativos: “foi a primeira vez que encenei um monólogo”, logo, “quando estamos habituados a distribuir o jogo por mais do que uma pessoa, é aliciante perceber como fazê-lo só com uma”; e “depois, há o desafio de fazer um monólogo numa sala como o Teatro Maria Matos, com 400 lugares, sem grande proximidade ao ator. Foi necessário construir todo um dispositivo que ocupasse o espaço e que ajudasse à possibilidade do jogo” entre a atriz e a audiência.

Outra inquietação imediata que o encenador teve com o texto foi sentir que, muito provavelmente, seria mais interessante ter uma mulher a encená-lo. “Mas, logo percebi que isso não era importante”, por ser fundamental “convocar os homens para assuntos que geralmente se diz serem lutas das mulheres. Não, não são. São lutas da sociedade, lutas por uma noção de humanidade, e eu quero viver num mundo em que todas as pessoas, independentemente do sexo, sejam iguais.”

Entre o drama social e o thriller jurídico, é fácil perceber o sucesso de À primeira vista que, para além dos países anglo-saxónicos, tem marcado temporadas teatrais por toda a Europa e Brasil. A peça é um convite ao debate sobre assuntos que nos interessam a todos enquanto cidadãos. Sem estabelecer veredictos, mas abrindo caminhos para o debate, a versão portuguesa do texto de Suzie Miller convida a uma reflexão profunda a propósito da violência sobre as mulheres (e Portugal, como se sabe, é um país com números muito pouco abonatórios nesta matéria), sobre o abuso sexual e, claro, sobre a justiça. Como lembra Tiago Guedes, “sabemos que é impossível haver uma justiça imaculada, mas estamos todos de acordo que devemos ter uma justiça melhor.”

À primeira vista estreia a 24 de julho, no Teatro Maria Matos, mantendo-se em cena até 10 de agosto. A partir de 18 de setembro, e até novembro, o espetáculo terá récitas semanais todas as quartas-feiras.

[artigo atualizado, em 30 de julho, quanto às datas da temporada]

Todas as “folhas” expostas contam com fotografias instantâneas, quase sempre acompanhadas de frases manuscritas nas línguas em que se sente mais confortável, como o inglês, o alemão, o português ou o francês; recortes de jornais e revistas; panfletos publicitários; ou carimbos. Para Daniel Blaufuks, a elaboração do diário passou a ser “o trabalho de uma vida”.

O artista tem dúvidas sobre se estes volumes deveriam ser chamados de diários. Prefere a denominação “não-diários”, já que “não é íntimo”, não se fica a saber muito sobre si ou sobre a sua vida naquelas páginas.

“No diário clássico, escreve-se ‘acordei às 10 da manhã’, ‘fui tomar o pequeno-almoço’ ou ‘fui ao cinema’. Ali não há disso. De vez em quando destapo um bocadinho a tampa da minha vida, mas volto a fechá-la imediatamente”, diz. É, antes, um trabalho diarístico, “porque é um exercício diário, que me ajuda a pensar a fotografia. Faço uma folha por dia”, acrescenta, lembrando que tudo começou no dia em que Philip Roth, o autor de Pastoral Americana ou A Mancha Humana, morreu.

“Um acaso, feliz para mim, não para ele”, explica, recusando que tivesse sido um acontecimento catalisador. No entanto, foi nesse dia que tudo começou, e a primeira “folha” da exposição é, precisamente, aquela onde se pode ler “philip roth is now forever dead”. “Acho até que talvez ele até tivesse gostado!”

Pela galeria

As paredes de uma das salas do MAAT Gallery estão preenchidas com molduras. Se lá está exposto todo o diário de 2023, há, também, algumas páginas de 2018 a 2022 e outras tantas do corrente ano. Todas, sem exceção, apresentam fragmentos: fragmentos da sua vida pessoal, fragmentos de coisas que lê, de coisas que ouve. Há, ainda, fragmentos de conversas e de sentimentos. “Essa é a palavra certa: fragmentos. Cada página deste diário é um fragmento do meu dia”, sublinha.

Neste trabalho que se mostra “instintivo e instantâneo”, os apontamentos textuais não são meras legendas das fotografias. “Por vezes, imagem e texto podem colidir; outras vezes podem acompanhar-se. E há ainda outras vezes que o texto levanta mais questões do que àquelas que responde. Isto para dizer que, quando tiro a fotografia, não estou a pensar no que vou escrever. Também acontece saber o que vou escrever ainda antes de tirar a fotografia. Mas, na verdade, penso que o ambiente é sempre o mesmo, isto é, num dia mais triste, eu estou mais triste e sente-se isso na fotografia, como se sente, provavelmente, no texto que a acompanha. E o mesmo acontece num dia mais alegre, como num dia de praia no verão, onde tudo talvez seja mais luminoso.”

João Pinharanda, curador da exposição, diz que o trabalho de Blaufuks se baseou sempre “em torno do tempo e da memória, seja ela familiar, histórica ou pessoal. Expondo a sua memória, cruzam-se os seus dias e os dias do mundo”. O fotógrafo que, segundo o curador, “reage ao que o rodeia lutando contra a voraz corrida do tempo sobre as coisas”, admite que “um diário é também um ato de resistência”. “O dia faz sentido porque eu tenho uma folha para fazer, o que me permite ter sempre este momento de alineação de tudo o que se passa em volta”, conclui.

A exposição Os Dias Estão Numerados, de Daniel Blaufuks, pode ser visitada no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia de quarta a segunda, até 7 de outubro. Dia 5 de setembro, entre as 15 e as 18h30, tem lugar uma masterclass com o fotógrafo, seguida de uma conversa com João Pinharanda. Por ocasião da exposição, é publicado o livro Os Dias Estão Numerados (ed. Tinta-da-China), à venda na loja do museu.

Lenda viva do teatro contemporâneo, o mestre norte-americano Robert Wilson volta a Lisboa, no próximo ano, com PESSOA – Since I’ve Been Me, uma evocação das diversas atmosferas das obras e das heteronímias do poeta português Fernando Pessoa, precisamente nascido a dois passos do Teatro São Luiz, no Largo de São Carlos.

Coprodução entre o teatro municipal lisboeta, o florentino Teatro della Pergola e o parisiense Théâtre de la Ville, esta “última rêverie” de Bob Wilson, como lhe chama o diretor artístico Miguel Loureiro, tem dramaturgia de Darryl Pinckney – colaborador habitual de Wilson, autor do magnífico Mary said what she said, espetáculo que marcou a edição de 2019 do Festival de Almada – e conta com um elenco internacional onde se destaca a atriz Maria de Medeiros. Estes ingredientes fazem de PESSOA – Since I’ve Been Me um dos espetáculos mais aguardados da próxima temporada e, uma vez que são apenas duas récitas (a 7 e 8 de março), a julgar pelas anteriores passagens do teatro de Wilson por Portugal os bilhetes tendem a esgotar depressa.

A atriz Maria de Medeiros como Fernando Pessoa na “última rêverie” de Bob Wilson. ©DR

Mas, a temporada do São Luiz está longe de se resumir  a este “acontecimento”. Muitas são as propostas de teatro que a temporada 2024/2025 elenca, a começar já em setembro, quando Ivo Alexandre apresentar a sua visão de Amedée ou Como Desembaraçar-se (de 20 a 29), marco no teatro do absurdo da autoria do dramaturgo franco-romeno Eugène Ionesco.

Os grandes autores estão, aliás, em destaque, com Arthur Miller e As Bruxas de Salém, encenado por Nuno Cardoso (13 a 15 de dezembro); Shakespeare por Miguel Moreira e Útero, com Hamlet – L’ Ange du Bizarre (19 a 22 de dezembro); Nathalie Sarraute e as peças Por tudo e por nada e Aqui está ela encenadas por Carla Bolito, num espetáculo intitulado Tudo A Que Se Chama Nada (11 a 26 de janeiro); Heiner Müller e Macbeth, segundo Paulo Castro, encenador português residente na Austrália de regresso a Lisboa (14 a 23 de fevereiro); ou Heinrich Von Kleist por Maria Duarte, numa criação ainda sem título definitivo (22 a 30 de março). A fechar a temporada, Jean Paul Bucchieri leva ao palco o Livro XI das Confissões de Santo Agostinho, com Bárbara Branco, Cláudio da Silva, Maria Arriaga e Pedro Lacerda no elenco (28 de junho a 5 de julho); e Renata Portas encena a versão de Séneca de As Troianas (10 a 13 de julho).

Ainda no teatro, Teresa Sobral dirige Class Enemy, peça do final da década de 1970 do britânico Nigel Williams (12 a 27 de outubro); Cucha Carvalheiro celebra os 30 anos da Escola de Mulheres com a encenação de um inédito de Ana Lázaro intitulado Deseja-se Fernanda!, dedicado, precisamente, à fundadora daquela companhia, Fernanda Lapa (15 a 23 de março); e a Assédio, companhia do Porto, apresenta uma reflexão sobre a guerra colonial, com A Tragédia de Aristides Inhassoro, de Pedro Galiza (24 a 27 de abril). A programação inclui ainda criações de Hotel Europa (Urgência Climática), Raquel André (Belonging / E di / Pertenencia / Zugehörigkeit / Pertença / 絆), Os Possessos (Last Call), Lígia Soares (Romance), Marco Paiva (A Tempo) e Miguel Graça (Killer Joe). Pelos palcos do São Luiz passam ainda, como é habitual, os festivais Alkantara e FIMFA Lx.

Segundo Miguel Loureiro, a heterogeneidade da programação é motivada por este ser um teatro “municipal, central e com história”. ©Francisco Levita/ CML-ACL

Num rápido virar de página, a dança e a performance estão também em grande destaque. Para a temporada, Miguel Loureiro começa logo, em setembro, por apostar num programa duplo com dois espetáculos do coletivo Dançando com a Diferença – Blasons, de François Chaignaud, estreado em 2022, e Doesdicon, criado por Tânia Carvalho em 2017 (de 19 a 21); e, de novo Tânia Carvalho, mas desta vez ao lado de Matthieu Ehrlacher, no projeto que a dupla vem desenvolvendo desde 2021, Papillons d’éternité, com a peça Nymphalis Antiopa, criada e interpretada por ambos.

Nos próximos meses, a marcar a agenda cultural da cidade estão Rui Horta (o coreógrafo assina Glimmer com os Micro Audio Waves, um espetáculo musical, performático e multimédia, com a participação de Gaya de Medeiros), Catarina Miranda (Atsumori), Vânia Rovisco (No Corpo: Assim se Conhece o Mundo), Filipa Francisco e Bruno Cochat (NU MEIO e NU MEIO Comvida, com participações de Félix Lozano, Sónia Batista, Margarida Mestre, Miguel Pereira e Carlota Lagido), Circolando (OU) e Olga Roriz (O Salvado). Na performance, destacam-se Ritó Natálio, com Spillovers, a partir de Lesbian peoples: material for a dictionary, de Monique Wittig e Sande Zeig; o regresso de Romain Beltrão Teule, com Dobra; e e(u)co(m)lógica de José Laginha, uma criação para jovens que cruza a crise climática com o funcionamento do cérebro humano.

O lugar da música

Desde o primeiro minuto enquanto diretor artístico do Teatro São Luiz, Miguel Loureiro assumiu uma forte aposta na programação de música. A temporada que se avizinha coloca o teatro municipal no epicentro da oferta, e a música em paridade com as artes performativas. Sinal evidente é a temporada abrir “com dois concertos em formato diverso” de Júlio Resende. O talentoso pianista apresenta, a 13 de setembro, Fado Jazz – Filhos da Revolução, e na noite seguinte, ao lado dos ALMO (o tenor Paulo Lapa e o barítono Tiago Matos), uma viagem surpreendente pelo fado e pelo cancioneiro português. Nesse fim de semana, na noite de sexta-feira 13, o músico, coreógrafo, bailarino e DJ Faizal Mostrixx, pioneiro da eletrónica tribal, é “mestre de cerimónias” da festa de abertura da temporada.

A 12 de novembro, Lena D’Água apresenta na Sala Luís Miguel Cintra o seu mais recente trabalho, Tropical Glaciar, a ser lançado em outubro. ©Francisco Levita/ CML-ACL

Até final do ano, entre outros, estão agendados concertos de MirAnda (24 de setembro), Samuel Úria (8 de outubro), Rafael Riqueni (11 de outubro), Maria João & André Mehmari (8 de novembro), Tony Ann (9 de novembro), Rocío Márquez & Bronquio (10 de novembro), Lena d’Água (12 de novembro), Sara Correia (25 de novembro), LINA_ (27 de novembro), Cara de Espelho (29 de novembro), Cristina Branco (5 de dezembro) e Kavita Shah (20 de dezembro). Para além de um grande concerto comemorativo do centenário de Amílcar Cabral (6 de novembro) e dos últimos dois momentos do ciclo Foco Maestro com Martim Sousa Tavares (em dezembro), o Dia Mundial da Música (1 de outubro) é celebrado com o espetáculo Cantexto, dedicado ao cante alentejano, que conta com a presença de oito grupos de cantadores.

Com o fecho do Teatro Nacional de São Carlos para obras de beneficiação, o São Luiz acolhe alguns dos espetáculos integrados na programação do teatro vizinho, nomeadamente na área da música de câmara e na ópera.

Em 2025, pelas três salas do São Luiz passam também Pedro Jóia, Orquestra Metropolitana de Lisboa (destaque para o concerto celebrativo do centenário de Carlos Paredes), Kolme, Nuno Vieira de Almeida (com Rita Blanco), Orquestra do Hot Clube Portugal ou Nuno Côrte-Real.

A temporada tem ainda uma alargada oferta no campo do pensamento e da ciência, salientando-se mais uma edição do ciclo O Nosso Futuro Ainda Humano, que abre a 17 de setembro com o filósofo e ensaísta basco Daniel Innerarity.

No campo da literatura, de notar a leitura encenada de O Mundo Começou às 5 e 47 para assinalar os 100 anos de Luiz Francisco Rebello. A 15 de setembro, a partir das 16 horas, com Marques d’ Arede, Ivo Alexandre, Marco Mendonça, Álvaro Correia, Cátia Nunes, Diogo Fernandes e Márcia Cardoso, sob direção de Miguel Sopas.

A concluir, em novembro, uma instalação sonora assinala o 30.º aniversário da Galeria Zé dos Bois e, já em 2025, o coletivo Filho Único propõe uma programação especial para três dias. Isto, ao pormenor, e tudo o resto, pode ser consultado no site oficial do São Luiz Teatro Municipal.

Quando, a 25 deste mês, os Artistas Unidos estrearem, numa antiga fábrica de mármores de Montemor-O-Velho, Búfalos de Pau Miró, quase todo o espólio da companhia estará empacotado num armazém nos arrabaldes de Lisboa à espera de destino certo. No final de julho termina, em definitivo, o contrato de arrendamento mantido, há já 13 anos, com a Reitoria da Universidade de Lisboa para a exploração do Teatro da Politécnica.

Enquanto se aguardam novidades sobre a solução a que a Câmara Municipal de Lisboa se comprometeu para que a companhia continue o seu trabalho enquanto estrutura sediada na capital, parte dos artistas e técnicos ultima a derradeira peça da Trilogia das fábulas, que os Artistas Unidos ainda acalentaram, até há pouco tempo, ser apresentada na sala da rua da Escola Politécnica, em conjunto com a reposição dos dois anteriores espetáculos: Girafas e Leões.

Pedro Carraca, que assumiu a encenação de Búfalos, parece relativamente calmo na tarde em que recebe a imprensa para aquela que será, certamente, a última vez que visitamos o Teatro da Politécnica para assistir a um ensaio. “Infelizmente, não é a primeira vez que estamos a passar por isto. Depois de sairmos d’A Capital andámos anos com a casa às costas”, lembra. Embora lamente que se tivesse chegado a este ponto, e que “quem de direito só tenha acordado verdadeiramente para o problema no último mês e meio”, Carraca acredita que tanto “a Câmara como a companhia vão encontrar muito em breve uma solução viável, o que até aqui não se verificou.”

Para já, os Artistas Unidos esperam, no próximo dia 16 a partir de meio da tarde, receber público e amigos para uma simbólica desmontagem do Teatro da Politécnica. Nessa despedida, será certamente prematuro anunciar a nova morada da companhia que Jorge Silva Melo fundou há 28 anos. No entanto, Carraca está otimista quanto ao anúncio da sala onde se estreará, em Lisboa, Búfalos, a primeira peça escrita por Miró para a Trilogia, mas aquela que se decidiu estrear por último.

“A questão de começarmos a Trilogia por Girafas foi colocada ao autor, que não se opôs. A única exigência feita passou por colocar Leões entre as outras duas”, conta o encenador. Miró terá mesmo reconhecido que “a linha temporal [escolhida pela companhia lisboeta] era até mais lógica”, já que Girafas se desenrola em plena Espanha franquista, Leões algures entre as décadas de 80 e 90 do século passado, e este Búfalos, muito provavelmente, nos dias de hoje, “com os filhos, os descendentes das Girafas e dos Leões.”

Só os fortes sobrevivem

Assumindo mais literalmente a fábula, Búfalos tem como protagonistas cinco irmãos marcados pela misteriosa morte de um sexto irmão, ainda criança. Perante a tragédia, e todo um conjunto de respostas que ficaram por dar, estes três rapazes e duas raparigas (interpretados por Joana Calado, Rita Rocha Silva, Gonçalo Norton, João Estima e Nuno Gonçalo Rodrigues) são obrigados a sobreviver na selva, unidos como uma manada, ante uma mãe que vai desaparecendo, até sucumbir de vez, e um pai quase sempre fechado numa oficina inacessível, ao fundo da decadente lavandaria (outra vez as máquinas de lavar roupa e a lavandaria, tal como nas peças anteriores) explorada pela família.

“Provavelmente, das três, Girafas até é a minha preferida, mas esta é aquela que me parece mais interessante trabalhar”, confessa Pedro Carraca que já havia dirigido Búfalos para a rádio e “em exercícios com alunos”. Esse interesse parte do desafio de Miró ter situado “estas personagens num não-tempo, ou num tempo em que já sabem tudo”. Objetivamente, eles não dialogam entre si, mas narram a ação, de tal modo que o texto original “nem sequer tem a distribuição das personagens. Esse foi um trabalho que nos competiu fazer.”

E Búfalos é toda ela uma peça de ação, embora pudesse ter sido feita “com os cinco atores sentados, como numa leitura encenada”. Ao invés, apelando ao vigor da juventude, Carraca optou por um registo bem enérgico, quase no limite do teatro físico, que, descobriu recentemente, foi também a opção que o próprio Pau Miró adotou quando estreou a peça em 2008.

Como curiosidade, conta o encenador, “quando, há uns anos, propus ao Jorge Silva Melo fazer esta peça, ele disse-me que só faria sentido encenando toda a trilogia. E, ao mesmo tempo, confessou que não sabia encenar Búfalos porque, em seu entender, era peça já com uma linguagem de outra geração.”

O certo é que, anos depois, os Artistas Unidos levam a cena a Trilogia das fábulas e Pedro Carraca encontrou a linguagem certa para encenar Búfalos, a peça que desencadeou a vontade desta incursão na obra do tão singular dramaturgo catalão. Falta agora vermos respondida a interrogação que, à porta do quase encerrado Teatro da Politécnica, cruzando um cartaz anunciando as três peças, salta à vista da cidade: “Onde?”

[A 30 de julho, os Artistas Unidos anunciaram que o espetáculo faz carreira em Lisboa, de 18 a 29 de setembro, no Centro Cultural de Belém]

Entre a estreia no Centro Cultural de Belém (CCB), no mês passado, a passagem pelo Festival de Almada (a 17 e 18 de julho) e a temporada nas Ruínas do Carmo (entre 24 de julho e 17 de agosto), a atriz falou-nos dos desafios de ser a Mãe Coragem, da tenebrosa atualidade da peça e da urgência de um teatro que intervenha na sociedade.

Olhando aos primeiros seis meses do ano, e para todos os projetos em que tens estado envolvida (duas encenações com o “teu” Teatro da Terra), fazer uma Mãe Coragem é, no mínimo, um desafio de uma exigência acrescida…

De uma exigência tremenda. Cheguei mesmo a pensar que não ia conseguir, mas, quando nos entregamos com amor e paixão e uma imensa dedicação, percebemos que conseguimos realmente fazer tudo.

Porquê esta simultaneidade, com Os Caranguejos de Istambul [de António Cabrita] estreado no Seixal no mesmo fim-de-semana em que subia ao palco do CCB a Mãe Coragem?

Deveu-se a uma antecipação de datas do CCB [coprodutor com a Ar de Filmes/Teatro do Bairro de Mãe Coragem]. Há bastante tempo que estava previsto fazer este espetáculo com o [António] Pires. De súbito, vi-me a ensaiar de manhã e de tarde a Mãe Coragem, e à noite a dirigir Os Caranguejos.

Como é que surgiu a oportunidade de interpretar a Anna Fierling?

Digamos que foi uma conjugação de vontades, minha e do Pires, pessoa pela qual tenho uma admiração profunda, tanto como ser humano como encenador. Muitas atrizes amigas perguntavam-me recorrentemente: “mas como é que ainda não fizeste a Mãe Coragem? Tens de fazer… Só te falta a Mãe Coragem…” A Lia Gama passava a vida a dizer-me isto [risos].

Mas, como é que as vontades se conjugaram…

Em 2022, fiz com o Pires A Última Refeição [de António Cabrita, estreado no Teatro São Luiz], um espetáculo muito bonito em que interpretava a Helen Weigel, atriz, diretora do Berliner Ensemble, mulher de Brecht, e que também escreveu textos com ele. Era um monólogo em que a atriz cozinha um frango na púcara na esperança de ressuscitar o marido, fazendo ao mesmo tempo um balanço da vida deles. Esse espetáculo correspondia ao meu desejo de falar da Weigel, que fez todas as grandes personagens que o Brecht escreveu, como a Mãe Coragem. Para além disso, tal como a Weigel, eu já tinha feito uma “mãe coragem” na peça do Brecht que antecedeu a Mãe Coragem, propriamente. Fiz a Leocádia Begbick, de Um Homem é um Homem, na Cornucópia [2005, encenação de Luís Miguel Cintra], uma vivandeira que andava, tal como a Anna Fierling, com os regimentos e que é um embrião da personagem da Mãe Coragem. E é neste contexto que eu e o Pires decidimos fazer a peça.

Quem é, para ti, a Anna Fierling?

Não é uma heroína clássica, longe disso. Ela é extremamente humana e isso é um reflexo da genialidade do Brecht. É uma mulher que tem muitos defeitos, que procura sobreviver a qualquer custo. No fim, mesmo sem os filhos, ela continua a arrastar a carroça como quem arrasta a sua própria sobrevivência, no encalço de voltar a encontrar o filho que todos nós já sabemos estar morto. É uma mulher dura, embora, como se diz a dado momento, dentro dessa dureza exista um coração. Só que isso jamais poderia ser mostrado naquele cenário de guerra e de terror. Portanto, ela revela a ternura nos pequenos passos de intimidade. E isso é tão bonito, aqueles pequenos gestos…

©Jaime Freitas

Que referências convocaste para construir a personagem?

Estão lá as mulheres duras da minha família. As minhas tias, a minha mãe, até as tias do lado do meu pai, todas elas mulheres com alguma dureza. Na Anna Fierling estão lá muitas das suas expressões porque todas fazem parte das mulheres duras universais. No entanto, essa dureza era uma forma de manifestar muitas vezes o amor, o cuidado e a proteção.

E a Anna é uma protetora incansável dos filhos…

Ele é mãe. Ela pretende evitar a todo o custo que a mesma guerra que a sustenta atinja os seus filhos. Só que, como lhe diz o Sargento, não se pode viver da guerra e manter os filhos fora dela. Isso é impossível.

Consta que Brecht se irritava com a empatia que Anna Fierling causou desde sempre no público, tendo mesmo reescrito muitas das suas falas para que se enfatizasse o seu egoísmo e a inversão de valores que a guerra causa e que ela preconiza. Mas, isso nunca aconteceu efetivamente…

Ela é uma mulher numa situação limite e, provavelmente, parte de nós, hoje, tal como noutros tempos, estamos numa situação limite. De algum modo, esperamos que uma Anna Fierling nos mostre aquilo que também nós somos. Ela é uma mulher rude e egoísta, verdade, mas é também uma mulher sábia, dona dessa sabedoria que vem da dureza da vida. A peça é uma observação da guerra, com um enredo muito fácil de compreender, quase didático. Olha para o modo como as pessoas estão na guerra, sobretudo os pobres. E os pobres precisam de coragem, ou como ela diz, até para se levantarem cedo precisam de coragem. E, sim, muitas vezes têm mesmo de ser carrascos uns dos outros. É terrível, é a guerra. E é tão assustador porque é demasiado atual…

E perturbador, porque na maior parte do tempo da peça esquecemos que a ação se passa no século XVII ou que o texto foi escrito no dealbar da Segunda Guerra Mundial. Podia ser agora.

Todos os dias temos a confirmação de que cada palavra desta peça faz sentido hoje. É realmente assustador. Podíamos estar a fazer a Mãe Coragem agora e pensar “ah, como isto era; que terror viveu esta gente!” Infelizmente, isto entra-nos todos os dias casa dentro nas imagens terríveis de um mundo em completo caos e nas histórias trágicas de tantas “mães coragem”.

Sendo esta uma peça anti-guerra, e quando todos os dias testemunhamos que a guerra tende a substituir a paz, se pudesses, que líderes mundiais convidarias para assistir a esta Mãe Coragem?

Convidaria muitos, certamente, mas consciente de que o que vissem em palco não os incomodaria nada. E é isso é que é frustrante, não é? É tão triste sentir isso, saber que os grandes líderes mundiais estão alheados dos reais problemas das pessoas. Não tenho qualquer esperança que a peça lhes pudesse ensinar alguma coisa, até porque tudo o que está nela, eles sabem. Sabem, e têm consciência disso. O que é ainda mais grave.

O elenco de atrizes que já fez a Mãe Coragem é impressionante, desde a Helen Weigel, de quem já falámos, à Hanna Schygulla, passando por nomes como Simone Signoret, Maria Casarès ou Liv Ullmann, entre tantas outras estrelas. Em Portugal, esta personagem deu a Eunice Muñoz uma interpretação que ainda hoje é muito falada. Viste?

Vi, sim. A encenação do Joaquim Benite com a Teresa Gafeira não vi, mas a da Eunice pelo João Lourenço, sim. Aquilo que recordo é que não tem a ver com o que faço. Era também um espetáculo muito diferente. Contudo, há algo que tanto eu como a Eunice temos em comum: a entrega ao texto e a verdade que pomos em cena. Porque não dá para ir a um papel destes com rodriguinhos, tem de ser exatamente aquilo que é, ou seja, tem de se sentir crueza em cada palavra. Recordo isso na interpretação da Eunice. E, também, a cena final, pungente, em que ela pegava na carroça sozinha e vai por ali fora. Era de uma beleza…

Como é que a atriz gere toda essa emoção e entrega empregue na interpretação de uma personagem como esta?

Devo dizer que, no final, se sinto que me correu bem, fico prostrada. Todas as personagens que exigem mais de mim me deixam assim. Acontece algo curioso que é irem ter comigo, falarem-me, eu responder, parecer normal, e a seguir nunca mais me lembrar. Há ali um tempo a seguir ao espetáculo que é da minha própria responsabilidade. Não sei se é uma reflexão enquanto artista, uma introspeção sobre o que fiz, sobre o que experimentei, sobre as coisas que resultaram ou não resultaram. Mas só acontece com determinados textos…

Para além deste, recordas outro?

Sim. Por exemplo o Stabat Mater, do Antonio Tarantino [encenação de Jorge Silva Melo, estreado em 2008, no Teatro São Luiz].

E nas mulheres burguesas do Tennessee Williams, do Ibsen ou do Albee?

Já fiz muitos bons papéis, pá! [risos] Foram experiências ótimas, com pessoas extraordinárias, mas a entrega a uma coisa como esta é diferente. Quando interpreto mulheres de uma certa burguesia, como nas peças do Tennessee Williams ou do Albee, faço-o com prazer, mas é outro teatro. Fazer o Stabat Mater ou um Brecht tem importância política, porque sentes que é um teatro que intervém na sociedade. Intervém mesmo.

Achas que é um teatro capaz de agitar, de perturbar?

Quanto mais bem feito é, mais perturba.

Há algum outro autor a quem, de repente, reconheças essa capacidade?

O Shakespeare, claro. Adorei fazer o Tito Andrónico, com o Luis Miguel [Cintra], na Cornucópia [2003]. É incisivo, perturbador, ressoa em nós.

Que personagem te falta fazer?

Estamos a falar em Shakespeare… A Lady Macbeth. Se houver por ai um encenador que o queira fazer… [risos]

De forma a inspirar o pensamento inovador e oferecer uma contribuição positiva, útil à nossa experiência de vida enquanto comunidade e à interação com o mundo natural, o City Cortex convidou seis arquitetos e estúdios de design internacionalmente reconhecidos – Diller Scofidio + Renfro, Eduardo Souto de Moura, Gabriel Calatrava, Leong Leong, Sagmeister & Walsh e Yves Béhar – a criar oito projetos originais em cortiça para espaços públicos e semi-públicos das duas margens do Tejo.

Produzido pela Corticeira Amorim, com apoio à produção da Artworks, curadoria de Guta Moura Guedes e desenvolvimento da experimentadesign, o City Cortex tomou como pontos de partida as freguesias de Belém, em Lisboa, e da Trafaria, em Almada. Os estúdios convidados reinventaram e testaram as possibilidades da cortiça portuguesa e da sua indústria de transformação. Para além de explorar o potencial da própria matéria, esta iniciativa procura também que a experiência do utilizador possa ser lúdica, oferecendo ao espaço urbano de uso comum a possibilidade de ser um espaço de interação multidisciplinar e multicultural.

Para visitar este museu a céu aberto, sugerimos o seguinte percurso:

Comece em Belém, na Praça do Império. Ao atravessar a passagem pedonal para o Padrão dos Descobrimentos, olhe para cima e conheça a primeira instalação de Sagmeister & Walsh (1). Dirija-se ao rio e vire à direita, até ao Espelho d’Água, onde encontra mais uma intervenção desta dupla, flutuando na água (2). Ao seu lado está o Museu de Arte Popular. Aí encontra a terceira instalação de Sagmeister & Walsh (3). Regresse até perto do túnel e, mantendo-se do lado do rio, caminhe até aos jardins do MAAT, onde estão as instalações de Yves Béhar (4), de Leong Leong (5) e, um pouco mais à frente, a peça de Souto de Moura (6).

Siga pela ponte pedonal na cobertura do MAAT e vire na primeira saída à esquerda. Desça a pequena rua e encontre o jardim com as intervenções de Diller Scofidio + Renfro (7). Continue pela Rua da Junqueira, atravesse o Museu dos Coches e utilize a sua ponte pedonal para chegar de novo à margem do Tejo. Em frente está o Terminal Fluvial de Belém: aí apanhe o barco que leva à Trafaria e à intervenção de Gabriel Calatrava (8).

1 – Life Expectancy | Sagmeister & Walsh

Tirando partido das propriedades de isolamento sonoro e térmico da cortiça, os designers de comunicação Sagmeister & Walsh desenharam painéis neste material para o teto do túnel, transformando o espaço e proporcionando uma melhor atmosfera sonora e experiência estética. Mas há também uma vertente comunicacional e inspiradora nesta instalação: a frase que se lê em cortiça, “se um jornal saísse apenas a cada cinquenta anos, reportaria sobre o aumento da esperança média de vida em vinte anos”, refere-se a uma das conquistas positivas da espécie humana.

2 – Humpacks | Sagmeister & Walsh

Uma vez que as zonas citadinas têm frequentemente locais de convívio com água, a dupla de designers nova-iorquina criou um colchão flutuante ecológico produzido a partir de esferas de cortiça e que é apresentado como uma alternativa aos colchões de plástico. A cor vermelha nesta peça representa os dados estatísticos sobre o crescimento da população mundial de baleias-jubarte em três anos, 2006, 2014 e 2022, no Oeste do Pacífico Sul.

[peça temporariamente indisponível devido a obras no lago onde se encontra]

3 – Cork Bottles | Sagmeister & Walsh

A poluição sonora em espaços públicos ou semi-públicos continua a ser um dos problemas nas cidades contemporâneas. Abordando, com sentido de humor, a questão do ruído dentro de um  restaurante, os designers idealizaram uma série de objetos em forma de garrafa, mas invertendo os materiais – o vidro é agora cortiça e vice-versa. Estas criações permitem absorver o som e criar um controlo acústico nestes espaços interiores.

[a peça é visitável com entrada paga no Museu de Arte Popular]

4 – Port_All | Yves Béhar

Inspirada na Torre de Belém, a instalação de Yves Béhar “assenta na ideia de uma receção acolhedora e de um espaço protetor. E a cortiça é o material perfeito para expressar estas qualidades”, avança o designer suíço. É que este material natural permite um isolamento dos sons envolventes, criando uma espacialidade interiorizada, tranquila, na qual materiais e forma se combinam para concretizar um acolhedor portal de entrada para a cidade.

5 – Lily Pad | Leong Leong

“O nosso projeto reflete sobre a hipótese dos equipamentos urbanos serem produzidos em cortiça. É uma forma de amenizar a dureza da paisagem da cidade, tendo em conta as diferentes exigências de cada corpo para se sentir confortável nos espaços urbanos”, diz Dominic Leong, do estúdio de arquitetura e design nova-iorquino Leong Leong. Inspirado pela ideia da cidade como espaço lúdico e de recreio, Lily Pad utiliza um aglomerado natural de cortiça para criar elementos esculturais que definem uma nova paisagem sensorial e micro-urbana para um público de todas as idades.

6 – Conversadeira II | Eduardo Souto de Moura

Conversadeira II é uma cadeira dupla, lugar para uma conversa ou para a partilha de um silêncio. O arquiteto português utiliza a cortiça para criar um ambiente de calma e refúgio,  possibilitando o encontro entre dois indivíduos e originando um espaço quase privado num local onde passam centenas de pessoas. Para Souto de Moura, “este protótipo vai funcionar como um teste para vermos o seu comportamento, que já sabemos que é altamente resistente e isolante, contra o tempo e o uso.”

7 – Second Skin | Diller Scofidio + Renfro

Focando-se na importância da leitura e da literacia, bem como na relevância dos espaços verdes nas cidades, o estúdio de Nova Iorque utilizou a cortiça para a construção de uma pequena biblioteca comunitária ao ar livre. A instalação, que “explora o potencial natural de sustentabilidade da cortiça num contexto urbano”, cria uma segunda pele de cortiça que envolve o tronco das árvores,  desenhando estantes e bancos, surpreendendo e convidando o público a sentar-se, a ler e a aprender.

8 – Onda | Gabriel Calatrava

São muitas as cidades que têm espaços urbanos vazios, abandonados ou subutilizados, que potencialmente têm grande valor para a comunidade. O arquiteto e engenheiro Gabriel Calatrava e o coletivo CAL criaram Onda, “com o objetivo de reforçar a identidade emergente da localidade como comunidade que valoriza os seus espaços públicos e a promoção da vida cívica”. Utilizando a cortiça como componente central de um sistema de ocupação, temporário ou permanente, Onda pretende ativar o encontro e o convívio da comunidade local e dos visitantes da Trafaria.

 

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Entre 12 e 21 de julho, a capital recebe a semana gastronómica Lisboa Romana, À Mesa com os Romanos, mas o evento decorre, simultaneamente, em Mafra, Sesimbra, Setúbal, Palmela, Vila Franca de Xira e Torres Vedras. Fomos conhecer (e provar) os pratos dos restaurantes que, em Lisboa, vão recriar os sabores da Roma Antiga. A elaboração ficou ao critério de cada chef, mas podemos adiantar que estão todos mais do que aprovados.

Chef Bertílio Gomes – Taberna Albricoque

Rua dos Caminhos de Ferro, 98A
Prato: Atum patudo perfumado com garum e tártaro de tomate biológico

No espaço do chef Bertílio Gomes o foco são as especialidades algarvias. A Taberna Albricoque abriu sete meses antes da pandemia e atualmente sofre com os efeitos das obras do plano de drenagem de Lisboa. Apesar destas dificuldades, a casa está sempre cheia.

A gastronomia romana é um tema familiar para o chef que, em tempos, teve uma gelataria em Tróia, no distrito de Setúbal: “cheguei a participar em vários eventos de dinamização das ruínas romanas [de Tróia]. Uma das coisas que fiz foi gelado de ostras”. A experiência deu-lhe traquejo: “não foi preciso fazer muita pesquisa porque já levo muitos anos a servir romanos, já os conheço de ginjeira”, diz em tom de brincadeira.

Sobre o prato, “a inspiração teve muito a ver com os produtos da época, mas também houve a preocupação de escolher ingredientes de que toda a gente gosta. O garum, só por si, não é uma coisa muito apetecível, nem toda a gente conhece. Daí a importância de o associar ao atum, que é um peixe muito consensual”.

Uma das premissas da Taberna Albricoque é a rotatividade dos pratos, pelo que a ideia não será manter o prato muito tempo no menu, portanto, o melhor é apressar-se e experimentar.

Chef Marlene Vieira – Marlene

Av. Infante D. Henrique, Doca do Jardim do Tabaco. Terminal de Cruzeiros de Lisboa
Prato: Atum com escabeche e garum de sardinha

Quando recebeu o convite para participar neste festival gastronómico, a chef Marlene Vieira soube logo que o garum teria de estar presente. Neste prato, o importante era “equilibrar a profundidade de sabores. É baseado no escabeche, que foi um método de conservação do peixe usado pelos marinheiros em alto mar. Quis juntar estes dois universos – do escabeche e do garum – e o resultado é incrível”.

Familiarizada com este produto de origem romana, que usa noutros pratos, diz que, quando as pessoas provam, “sentem algo muito especial, tem muita portugalidade. Estou um bocadinho viciada no uso do garum pela profundidade que confere aos sabores”, confessa. A chef não teve de pensar muito sobre a escolha do prato, já que este faz parte do menu do restaurante: “de vez em quando varia-se a proteína. Em vez do atum, usamos cavala”.

Quando questionada sobre que outro prato gostaria de provar, não hesita: “estou convicta de que vão ser todos bons pratos”, afirma. Sobre o seu atum com escabeche e garum de sardinha garante que, quem o provar, “nunca mais se irá esquecer da experiência”. Nós confirmamos!

Chef Pedro Almeida – Can the Can

Terreiro do Paço, 82/83
Prato: Lula dos Açores, manteiga, coentros, molho de pimento assado com garum de cavala

O Can the Can abriu portas em 2012, com o objetivo de promover a indústria conserveira nacional. Paralelamente, tem o projeto de investigação Selo de Mar, que estuda e recupera técnicas de conservação de pescado. Há cerca de seis anos, começou a investigar receitas antigas para desenvolver novas fórmulas de garum.

De acordo com o chef Pedro Almeida, “a Selo de Mar é uma das maiores produtoras mundiais e a única em Portugal”. A paixão por este molho precioso é notória quando entramos no restaurante. É impossível não reparar na variedade disponível de frascos: sardinha, cavala, atum, ostra, lírio, espadarte, polvo, cherne, cherne e atum, choco, peixe agulha e salmonete.

No prato que o chef concebeu para esta semana romana, o garum brilha “no molho de pimentos assados, na manteiga, mas também serve para pincelar a lula”. Recentemente, a Selo de Mar criou uma versão para sobremesas feita à base de pólen de abelha.

Quando for ao Can the Can, não se esqueça de experimentar o Pudim Abade Priscos do Mar, uma versão feita com muxama (presunto do mar), que leva caramelo salgado finalizado com garum.

Chef Miguel Castro e Silva – Miguel Castro e Silva

Mercado da Ribeira – Av. 24 de Julho
Prato: Atum com citrinos e garum 

Situado no Mercado da Ribeira desde 2014, ano em que ali se instalaram diversos restaurantes, o espaço do chef Miguel Castro e Silva aposta em comida tradicional portuguesa.

Quando foi convidado a participar nesta semana gastronómica, decidiu logo que o ponto de partida na elaboração do prato só podia ser o garum. Produzido pela Selo de Mar, o “produto é de uma qualidade extraordinária”, garante.

Até chegar à última versão deste prato experimentou várias abordagens: “fazia sentido associar o atum aos citrinos, que são sabores que têm tudo a ver com a Roma Antiga. Sirvo com puré de abacate e alface romana ligeiramente tostada com molho feito com caldo de legumes e garum”. O chef fez alguma pesquisa – nomeadamente através do livro de Apicius, um gastrónomo romano do séc. I, mas já tinha feito um intenso trabalho de investigação, anos antes, quando foi convidado pelo canal História a recriar a última ceia de Cristo.

Castro e Silva gosta tanto desta criação que pretende que se mantenha na ementa por algum tempo. Nós também estamos a torcer para que isso aconteça!

Chef Gareth Storey – Antiga Camponesa

Rua Marechal Saldanha, 25
Prato: Caracóis, caldo de Aipo-dos-Cavalos de Monsanto, manteiga de Hallec

“Não me interessa o que as pessoas gostam de comer, só cozinho aquilo de que gosto” diz, sem quaisquer complexos, o chef irlandês Gareth Storey. “Seria muito estranho cozinhar algo de que não gosto. Elaboro o menu e os clientes decidem se aprovam ou não. Até hoje tem corrido bem”.

A trabalhar na Antiga Camponesa desde a sua abertura, em outubro de 2022, o chef é muito exigente: “se dermos às pessoas apenas aquilo que querem, só teremos hambúrgueres, pizzas e sushi no menu”.

Esteve dez anos em França, e foi por influência da mulher – francesa, mas com ligação a Portugal – que veio trabalhar para Lisboa. “Comparando com Paris, Lisboa é um paraíso, as pessoas são simpáticas”, garantindo, entre risos, que veio para ficar.

Em relação ao prato romano, não fez nenhuma pesquisa intensa, usou apenas “o instinto e a imaginação. Fez-me todo o sentido imaginar os romanos a comer caracóis e a beber vinho”. Uma das políticas da casa é usar produtos da época, pelo que este prato fará parte do menu enquanto houver caracóis.

Chef consultor André Magalhães – Vieira Café

Praça das Amoreiras, 56
Prato: Vieira e sardinha, garum alfacinha

No rés-do-chão da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva encontramos o Vieira Café, que reabriu recentemente com nova concessão e consultadoria do chef André Magalhães. Nesta nova fase do espaço, o chef foi desafiado a criar pratos que liguem a cultura à gastronomia. A própria decoração joga com o nome de Maria Helena Vieira da Silva e as vieiras presentes nos azulejos concebidos por Manuel Cargaleiro (a partir de originais da pintora).

Para o prato da semana romana, André Magalhães optou por usar a vieira, um “bivalve que, segundo pesquisas arqueológicas, existiria no Tejo no tempo dos romanos”. Outro elemento marcante é o garum alfacinha (este de fabrico próprio), bem como as alfaces “apreciadas desde o tempo dos romanos” e a sardinha, “muito identitária de Lisboa”. O prato leva ainda um elemento decorativo (e comestível): algas do rio Tejo.

A ideia é recriar sabores romanos mas, para isso, “há um elemento de fantasia que temos de ter presente. Estamos a revisitar sabores que podiam ser comuns há dois mil anos”, afirma. Se tudo correr como o esperado, o prato será para manter no menu.

Chef João de Sá – Sála de João de Sá

Rua dos Bacalhoeiros, 103
Prato: Cuscos, coentrada e garum de sardinha

O Sála situa-se no coração da Baixa pombalina. Desde que abriu, há cinco anos e meio, que o restaurante não tem mãos a medir. Se a procura é um sinal claro de que o serviço é bom, que dizer então da estrela Michelin que recebeu este ano? Para o chef João Sá, trata-se de “um reconhecimento que reflete o trabalho destes cinco anos”.

No Sála, encontramos sobretudo pratos ligados à gastronomia nacional e aos produtos locais. Para este prato específico, a ideia foi encontrar “um equilíbrio entre a história da cidade de Lisboa e a influência deixada pelos romanos”. O prato já existia no menu, mas, para ligar tudo, recorreu-se ao garum de sardinha produzido pela Selo de Mar.

Este é, aliás, um produto muito usado neste restaurante, com uma curiosidade: aqui é o cliente que escolhe o tipo de garum que coloca no prato: “damos a cheirar e a provar, explicamos o que é e deixamos que o cliente decida. Os que têm mais saída são os de sardinha e cavala. Há pessoas que já conhecem, outras que não conhecem e que ficam deliciadas e também pessoas que não gostam de todo. Há gostos para tudo”, diz.

Lawrence Ferlinghetti

Uma Coney Island da Mente

“Continuamos as mesmas pessoas / só que mais longe de casa / em auto-estradas de cinquenta faixas / num continente cimentado / aspergido de letreiros mansos /a ilustrar ilusões imbecis de felicidade”. O volume de poesia Uma Coney Island da Mente é uma obra fundamental da Geração Beat, a mais célebre de Lawrence Ferlinghetti, e constitui uma espantosa manifestação de vitalidade criativa. Patrono anarquista dos poetas norte-americanos, fundou em 1953 a Livraria City Lights, em São Francisco, palco da contracultura beat e de leituras acompanhadas de jazz e álcool noite dentro, onde Kerouac e Burroughs marcaram presença. Ferlinghetti esclarece que o título do livro, retirado de um conto de Henry Miller, expressa o modo como se sentia em relação a estes poemas quando os escreveu, “como se em conjunto formassem uma espécie de Coney Island da mente, uma espécie de circo da alma”. O poeta cria uma obra torrencial, estimulante, libertária e irreverente que integra, simultaneamente, fragmentos de memória, crítica a uma América transformada em grotesco parque de diversões, reflexão sobre o sentido da existência, sonho, profecia… Um testemunho notável de um autor para quem a escrita consistia na “hesitante construção das palavras entre o sono e a vigília”. Antígona

Alba de Céspedes

O Caderno Proibido

“A minha vida sempre me pareceu insignificante, sem acontecimentos notáveis, fora o meu casamento e o nascimento dos meus filhos. Pelo contrário, desde que comecei por acaso a ter um diário, parece-me descobrir que uma palavra, uma entoação, podem ser tão importantes como os factos que estamos habituados a considerar importantes, ou até mais”. Alba de Céspedes (1911-1997), escritora italiana presa e censurada pelas suas atividades antifascistas, dedica este romance notável à vida doméstica de uma mulher comum que um dia, ao comprar cigarros para o marido, sai da tabacaria com um caderno que passará a usar como diário secreto. Numa sociedade em que, “para uma mulher, ter alguma satisfação pessoal além das da casa e da cozinha é uma culpa”, e numa casa “sem um recanto que seja seu”, a escrita adquire um profundo efeito transformador e subversivo (“Queria estar sozinha para escrever; e quem quer fechar-se na própria solidão, numa família, leva sempre consigo o gérmen do pecado”.) No diário questiona os limites da moral e das convenções estabelecidas, dos deveres conjugais e familiares, dos seus valores de pequeno-burguesa “mais familiarizada com o pecado do que com a coragem e a liberdade.” Alfaguara

António Borges Coelho

Crónicas e Discursos

Por ocasião dos 90 anos de António Borges Coelho, a Biblioteca Nacional de Portugal organizou uma mostra de homenagem intitulada Dar voz aos que em baixo fazem andar a História. Efetivamente, um traço unificador do conjunto da obra do ilustre historiador é o de transformar os estratos médios, os trabalhadores rurais ou os escravos, em atores sociais e coletivos. O autor, pioneiro no estudo dos vestígios da cultura árabe, dos processos da Inquisição ou das raízes da expansão portuguesa, entre nós, reúne em livro crónicas originalmente publicadas em diferentes órgãos de comunicação e discursos proferidos e, locais como a Assembleia da República, o Museu do Aljube ou o Tribunal da Boa Hora. Nestes belíssimos textos, ora expressa o seu pensamento sobre a atualidade política (magnifica série sobre a Invasão do Iraque), ora evoca lugares (Trás-os-Montes, o Alentejo, a Foz do Arade) ou figuras (Fernando Lopes Graça, Aquilino Ribeiro, Álvaro Cunhal, José Saramago, Cláudio Torres), ora exerce uma reflexão histórica e crítica sobre Portugal e o mundo. Borges Coelho, que alia sabedoria, cultura e uma profunda humanidade, está consciente, aos 95 anos, de que “as segregações explodem”, mas conserva a esperança “porque somos cada vez mais mestiços, mais humanos.” Caminho

Salman Rushdie

Faca

A 12 de agosto de 2022, Salman Rushdie dirigiu-se à Instituição de Chautauqua, no norte de Nova Iorque, para falar sobre a criação na América de espaços seguros para escritores de outros lugares e do seu envolvimento no projeto. Mal subiu ao palco do anfiteatro foi atacado por um jovem que desferiu 15 golpes com uma faca. Decididamente, nesse dia, o anfiteatro de Chautauqua não foi um lugar seguro para Rushdie. O assaltante reconheceu, posteriormente, ter “escassamente lido duas páginas do escritor” e visto apenas “um par de vídeos” seus no YouTube. Deduzindo destas declarações que Os Versículos Satânicos não estiveram na origem do ataque, Rushdie procura neste livro descobrir a que razão se deveu o ato de violência. Faca é uma obra catártica que aborda em pormenor os traumáticos acontecimentos desse dia e o lento e doloroso processo de recuperação a foi sujeito. Uma narrativa em que “o ódio – a faca como metáfora do ódio – é respondido, e finalmente derrotado, pelo amor” e que “responde à violência com a arte” (“A arte não é um luxo. Está na essência da nossa humanidade (…) Aceita a discussão a critica e até a rejeição. Não aceita a violência.”). Uma celebração da vitoria do “Anjo da Vida” sobre o “Anjo da Morte”. Dom Quixote

Willa Cather

Um dos Nossos

“Quando fico na cama a pensar, pergunto-me se a minha vida está a acontecer-me a mim ou a outra pessoa. É que não me parece que a minha vida tenha uma grande relação comigo”. Claude Wheeler, jovem criado numa grande propriedade agrícola do Nebraska, anseia completar o curso de História e conhecer o mundo, mas é contrariado pela vontade paterna. Procura então a felicidade no casamento, mas a desilusão amorosa leva-o a alistar-se como combatente na Primeira Guerra Mundial. O romance Um dos Nossos, distinguido com o Prémio Pulitzer em 1923, desenvolve os temas do idealismo da juventude e o forte contraste cultural entre a América e a Velha Europa, num mundo assolado pela epidemia da gripe e pela guerra. Alex Ross descreve-o como “uma exploração cética e perspicaz sobre a masculinidade americana”, ideia reforçada por Inês Pedrosa, sua tradutora para português, ao considerar que o livro “faz da guerra a grande metáfora da impotência do mundo da masculinidade”. A obra Willa Cather (1873-1947) revela, de forma elegíaca, a vida dos pioneiros e emigrantes no estado do Nebraska, um mundo onde as esperanças se limitam à sobrevivência e as emoções à nostalgia de fragmentos do passado ou a pressentimentos de vidas não vividas. Sibila

Margarita Cardoso de Meneses

Canábis – Maldita e Maravilhosa

As chamadas questões fraturantes são-no, justamente, porque o debate e os processos de decisão que lhes estão associados são frequentemente inquinados por desinformação, crendice e mesmo interesses económicos, sociais ou religiosos. O debate sobre o estatuto legal da canábis é um destes casos e um número crescente de setores da sociedade têm vindo a apelar à urgência da revisão do atual contexto jurídico e penal. Neste contexto, a leitura do livro de Margarita Cardoso de Menezes Canábis, Maldita e Maravilhosa, é francamente aconselhável, já que apresenta praticamente tudo o que se deve saber sobre esta surpreendente planta e a sua relação de milénios com a humanidade. Todas as facetas são apresentadas pela autora de maneira factual e informada, desde as estirpes psicotrópicas e os seus efeitos, às utilizações medicinais da planta e à miríade de usos que lhe são dados, como a produção de vestuário e a agricultura, entre outros. O mundo da Canábis tem vindo a sofrer uma grande evolução e é hoje uma indústria com um peso de milhares de milhões de euros, um facto que não deve ser alheio à crescente onda de descriminalização em todo o mundo. TCP Oficina do Livro

Toni Morrison

Love

Toni Morrison, nascida em 1931 no Estado do Ohio, foi a primeira escritora afro-americana e a oitava mulher a receber o Prémio Nobel de Literatura. A sua obra conjuga realismo, história, mito, narrativa de tradição popular e fantasia poética, e explora as relações entre negros e brancos, homens e mulheres, passado e presente. No seu livro de estreia, The Bluest Eyes (1970), sobre uma jovem negra que ambiciona ter olhos azuis, inicia uma meditação sobre os temas da raça, género e beleza, que desenvolve nos seus romances mais recentes. Love gira à volta de Bill Cosey, famoso milionário, dono do Cosey Hotel and Resort. Passados 25 anos sobre a sua morte, continua a ser uma presença real para as mulheres que partilharam a sua vida: Heed, a segunda mulher; Christine, a neta; May, a nora; Vida, a antiga empregada; Celestial, a sua amante; Júnior, a sua “secretária”; e L, a antiga cozinheira do hotel, figura insondável e misteriosa que abre e fecha a narrativa. Analisando em profundidade a emoção humana mais complicada – o amor -, Morrison reflete como o amor sexual e as outras formas de amor conduzem à traição e como aquele que ama acaba por destruir aquilo que mais quer proteger. Presença

Françoise Vérges

Decolonizar o Museu

Françoise Vergès, politóloga, historiadora, e especialista em estudos pós-coloniais, propõe nesta sua obra radical, mas profundamente interessante, uma leitura crítica do “museu universal” ocidental que “ecoa as desigualdades estruturais globais criadas pela escravatura, pela colonização, pelo capitalismo racial e pelo imperialismo”. A autora recorda a narrativa de uma história da arte centrada na Europa fundada na apropriação de riquezas, pilhagens e roubos sistemáticos (o saque do Palácio de Verão, em Pequim; os roubos dos frisos do Pártenon; e dos bronzes do reino do Benin, como exemplos mais famosos) que dotaram os museus de recursos e prestígio sem precedentes. De uma Europa guardiã do património da humanidade, acumuladora dos objetos e saberes dos povos dominados. Segundo Françoise Vergès, “nenhuma instituição pode ser decolonial enquanto a sociedade não for decolonizada” por isso defende “reanimar o legado de resistência aprendido nos processos históricos de descolonização (…) traçando um horizonte radical: decolonizar verdadeiramente o museu é pôr em prática um ‘programa de desordem absoluta’, é fazer um esforço de imaginação e criar outras formas de narrar e compreender o mundo, que nutram a criatividade coletiva e tragam justiça e dignidade às populações que delas foram desapossadas.” Orfeu Negro

Maria do Carmo Vieira

Memórias de um Felino

A presença do gato nas nossas vidas é fenómeno que em muito transcende o número de tutores no planeta e os felinos que têm em casa. A sua popularidade nas redes sociais – há quem defenda que estas foram criadas para a exibição destes seres aristocráticos e bigodudos – está diretamente ligada à atenção do mundo editorial, onde proliferam livros de todo os géneros sobre este animal. O gato vende, e quem gato compra não é lebre que procura. Memórias de um Felino é um livro singelo que surge discreto pelo meio de tudo o que se vem sendo publicando sobre gatos. Tem uma natureza de fábula, pois é pela voz de um gato que o livro de Maria do Carmo Vieira nos fala da coabitação entre sete felinos e seis humanos, com apontamentos de carácter e histórias das vidas de uns e de outros. Livro muito breve que pode facilmente ser lido do início ao fim, sugere também a possibilidade de ser lido para alguém. Um tutor sério e observador perceberá que a autora sabe do que fala, e que a vivência na companhia do animal gato fez parte do seu quotidiano. Como obra que se quer singela e feliz, é destituída de conflito, e o próprio desaparecimento de outros felinos que passaram pela mesma casa é interpretado como fazendo parte do ciclo da vida, que para uns é mais longo e para outros nem tanto. RG Minotauro

Francisca Gorjão Henriques

Mulheres Refugiadas em Portugal

A palavra “escolha” não combina com o estatuto de refugiado. Sandra do Zimbabué, Maryam do Afeganistão e Olena da Ucrânia não queriam deixar os seus países, mas não tiveram outra opção: acabaram em Portugal, por acaso. O processo de inclusão social é um desafio para todos, porém, para o grupo bastante heterogéneo das mulheres migrantes as barreiras são ainda mais difíceis de ultrapassar. A sua experiência insere-se necessariamente numa narrativa marcada por algum tipo de violência, da qual elas são muitas vezes as primeiras vítimas. Por mais de um ano, Sandra, Mayam e Olena abriram a porta de casa para este retrato. Apresentaram família e amigos, narraram circunstâncias e episódios, confessaram angústias e comemoraram sucessos pontuais. Muito do que viveram e relataram é comum não só entre si, como a esse grupo não homogéneo a que se convencionou chamar “mulheres refugiadas”. As múltiplas conversas que tiveram com a autora, ex-jornalista do Público e fundadora da Associação Pão a Pão, uma ONGD (Organizações Não-Governamentais para o Desenvolvimento) para a inclusão de pessoas refugiadas que tem desenvolvido projetos na área da empregabilidade de migrantes, ajudam-nos a perceber como se reconstrói tudo a partir de um novo lugar, que barreiras é preciso ultrapassar ou como se concilia a cultura de origem com a cultura do novo país. Fundação Francisco Manuel dos Santos

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