Ao longo da sua carreira, Catarina Dias tem desenvolvido um trabalho centrado na prática do desenho e da pintura, bem como nas suas derivações plásticas e conceptuais. Nascida em Londres, a artista tem atualmente obra exposta na Sala do Cinzeiro, no MAAT, numa mostra onde explora encontros e desencontros entre imagens e palavras. Inverted on Us, patente até março de 2025, reúne peças trabalhadas digitalmente, impressas em papel e posteriormente pintadas à mão. Ali, Catarina Dias propõe um confronto entre o aparente e o imperceptível, o legível e o indecifrável, num apelo à atenção do olhar do espectador, revelando campos e dimensões sobre os quais este não está treinado a reparar.

©Vera Marmelo

Alexandre Estrela – A Natureza Aborrece o Monstro

Até 2 de fevereiro de 2025
Culturgest

José Loureiro – Beco das Flores, Canedo do Mato

Até 11 de janeiro de 2025
Galeria Cristina Guerra

Jumana Mann – Broken, Taken, Erased, Tallied

Até 24 de janeiro de 2025
Rialto6

Stefan Vogel – Cenas

Até 18 de janeiro de 2025
Galeria Jahn und Jahn

António Neves Nobre – Laboratório de Próteses

De 17 de janeiro a 8 de março de 2025
3+1 Arte Contemporânea

Como artista, Catarina Dias não poderia deixar de sugerir a visita a exposições. As escolhas recaem sobre as mostras de Alexandre Estrela, na Culturgest; José Loureiro, na Galeria Cristina Guerra; Jumana Mann, na Rialto6, e Stefan Vogel, na Galeria Jahn und Jahn, porque “todos os artistas destas exposições possuem uma elegância rara no contexto atual”. A artista sugere ainda Laboratório de Próteses, exposição de António Neves Nobre que tem inauguração marcada para dia 17 de janeiro, na galeria 3+1 Arte Contemporânea.

O Crepúsculo do Mundo

de Werner Herzog
Editora: Zigurate (junho, 2023)

O Fogo e o Relato

de Giorgio Agamben
Editora: Boitempo (Brasil)

A saga de Hiroo Onoda, o soldado japonês que, durante décadas, se manteve no seu posto sem acreditar que a segunda guerra mundial tinha acabado, é uma das sugestões de leitura de Catarina Dias, até porque a artista considera que “ler um livro de Herzog é sempre uma experiência profunda e intensa”. Outra das escolhas é O Fogo e o Relato, de Agamben, um livro de ensaios sobre a criação, a escrita, a arte e os livros. “O ato de ler, toda a sua potência transformadora, a relação vida/obra fazem parte de um mistério que nos anima”, diz Catarina.

Passeio de bicicleta junto ao Tejo

Catarina Dias é uma entusiasta dos passeios de bicicleta, por isso, esta sugestão era incontornável. “Embora haja vários obstáculos desagradáveis, como o excesso de turismo e zonas francamente difíceis de circular tanto a pé como de bicicleta, não deixa de haver uma relação muito direta com o rio que é bastante revigorante”.

©François Guenet

Waed Bouhassoun – O Canto da Montanha

18 de janeiro de 2025, às 21h
Fundação Calouste Gulbenkian

Apesar deste concerto não acontecer esta semana, Catarina Dias não podia deixar de o sugerir. “Waed Bouhassoun tem-nos trazido uma profunda investigação das raízes da música síria, da poesia mística e profana, árabe e pré-islâmica, sempre acompanhada pelo seu oud. Profundo e encantador”. O espetáculo que Waed leva à Gulbenkian resulta dessa investigação em torno dos cantos presentes nos rituais funerários da montanha Jabal al-Druze, onde a intérprete síria cresceu.

Catherine Deneuve em “Les Parapluies de Cherbourg”

Ciclo Jacques Demy

Cinema Medeia Nimas

Até 26 de fevereiro

Quem já viveu um grande amor não poderá negar a comoção despertada na cena da despedida de Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo debaixo de um nevão, ao som da música de Michel Legrand, no final de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo. Por ocasião dos 60 anos do filme que o realizador Damien Chazelle considerou “o melhor de todos os tempos” (e tanto que ele o citou em La La Land), meticulosamente restaurado numa versão 4K estreada no festival Il Cinema Ritrovato, em Bolonha, a Leopardo Filmes apresenta um exaustivo ciclo dedicado a Jacques Demy. Durante os próximos dois meses, pela sala do Nimas, são exibidas obras-primas, como Lola e As Donzelas de Rochefort, pérolas incontornáveis, como A  Baía dos Anjos e A Princesa com Pele de Burro, títulos menos conhecidos, alguns deles até inéditos no circuito de exibição português, como as curtas-metragens O Belo Indiferente (escrita por Jean Cocteau) e A Lúxuria, os musicais Um Quarto na Cidade e Parking, e até a única aventura americana do cineasta francês, Model Shop, filme em que Anouk Aimée volta a vestir o papel de Lola. Demy é considerado um dos cineastas que melhor combinou o musical e o melodrama, o escapismo e artificialismo da tradição do musical de Hollywood com um estilo próprio, simultaneamente fantasista e realista, estilisticamente muito marcado pela cor e pelas formas. Por tudo isso, parte considerável da sua obra permanece intemporal, continuando a conquistar gerações e a influenciar não apenas a sétima arte, mas também outras áreas artísticas, a moda e o design. FB

Banzo

de Margarida Cardoso

Estreia nos cinema a 23 de janeiro

Margarida Cardoso, realizadora que aborda frequentemente nos seus filmes questões pós-coloniais da história recente de Portugal, está de regresso ao continente africano para contar uma história ambientada no início do século passado. A narrativa, filmada em São Tomé e Príncipe e Portugal, relata a luta de Afonso, um médico português que parte do Congo para uma plantação de cacau numa ilha tropical africana, com o propósito de curar um grupo de serviçais “infetados” pelo Banzo, a nostalgia dos escravos, que os leva à morte por inanição ou suicídio. Consciente do horror e das condições de vida a que são submetidos, Afonso, tenta uma solução para a dor que os mata, mas com o tempo percebe que esta é impossível de concretizar. Nestas circunstâncias de desesperança e violência é revelado o lado cruel daqueles que mandam e a impotência daqueles que, embora não concordem com a realidade, pouco podem fazer. O elenco conta com Carloto Cotta, Hoji Fortuna, João Pedro Bénard, Gonçalo Waddington e Sara Carinhas. AF

Fausto e Mephistopheles, Eugène Delacroix, 1827–28, The Wallace Collection

Cenas do Fausto de Goethe

de Robert Schumann

Teatro Camões, a 25 de janeiro

Robert Schumann, grande compositor romântico alemão, viveu entra a genialidade e a loucura, assombrado por um longo historial de desequilíbrio emocional que culminaria numa doença mental incurável. Depois de uma tentativa de suicídio por afogamento no rio Reno, morre num asilo psiquiátrico em 1856, onde passa os dois derradeiros anos de vida. É compreensível o fascínio que Schumann sentia pelos debates internos de Fausto, pela luta entre o bem e o mal e pela redenção final. Em 1844, inicia a composição das suas Szenen aus Goethes Faust que combinam, com mestria inigualável, o intimismo do Lied, a solenidade da música sacra, a coloquialidade da conversa entre Fausto e Margarida, a grandiosidade e o dramatismo da ópera e o sublime da escrita coral ao serviço de um dos textos maiores da língua alemã, iluminando-o mesmo nas suas passagens mais sombrias. Ana Quintans, Leonel Pinheiro e André Baleiro interpretam o trio de protagonistas. A Orquestra Sinfónica Portuguesa é dirigida pelo maestro titular Giampaolo Vessella. LAE

No Yogurt for the Dead

de Tiago Rodrigues

Culturgest, de 19 a 23 fevereiro

Tiago Rodrigues, que desde 2021 dirige o Festival de Avignon, vem este ano a Lisboa apresentar dois espetáculos. Já em janeiro, de 10 a 12, estará no Centro Cultural de Belém com Hécuba, Não Hécuba, a sua primeira colaboração com a Comédie-Française, em que entrelaça a história da viúva de Príamo com a de uma atriz que, nos dias de hoje, interpreta essa personagem. Mas é em fevereiro que, logo depois da estreia em Ghent, na Bélgica, traz à Culturgest a sua nova criação, No Yogurt for the Dead. A ideia para este espetáculo surgiu quando Tiago se demorou a olhar para o caderno que o pai, o jornalista Rogério Rodrigues, preencheu nas últimas semanas de vida, quando esteve hospitalizado. Era suposto ter deixado ali as suas experiências no hospital e memórias de vida, mas havia apenas rabiscos. “Suponho que tenha tentado escrever, mas a sua mão estava demasiado frágil. Talvez pensasse que estava a escrever, numa espécie de estado de sono, mas nada saiu para o papel”, diz o encenador, “os gatafunhos eram o retrato da impotência, desenhos do fim”. Apenas o título desse último artigo estava anunciado pelo pai: No Yogurt for the Dead. Tiago decidiu criar uma peça sobre uma voluntária que ouve as histórias de um homem prestes a morrer e sobre o livro que ele nunca chegou a escrever. Chamou a esse homem “Longbeard, o correspondente no Hospital Amadora-Sintra”. Em palco, junta as atrizes Lisah Adeaga e Beatriz Brás, Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves. GL

Parthenope

de Paolo Sorrentino

Estreia nos cinemas a 27 de fevereiro

Sorrentino filmou Parthenope para responder à questão do que seria para si o sagrado. O cineasta, onde a cada nova realização se procura sempre “a grande beleza” (título da sua obra mais celebrada, La grande bellezza de 2013), recorre a duas atrizes (a jovem Celeste Dalla Porta e a histórica Stefania Sandrelli) para filmar as memórias de uma mulher de 73 anos, cujas ressonâncias míticas do seu nome são como um passe de sedução para a tomarmos pela personificação de uma cidade: Nápoles, a cidade de Paolo Sorrentino. Uma mulher faz o balanço da sua vida, dos seus amores, das suas ilusões e desilusões, tal como o havia feito Jep Gambardella no outro filme citado de 2013. Sorrentino diz que, para ele, o sagrado é o que permanece na memória de cada um, mas os seguidores do seu cinema podem muito bem confundir sagrado e beleza, que estarão na mesma linha de raciocínio do autor napolitano. RG

António Dacosta, “Diálogo”, 1939

Museu de Arte Contemporânea Armando Martins

Rua da Junqueira, 66

Inaugura a 22 de março

Sob o mote The House of Private Collections (A Casa das Coleções Privadas), o MACAM não mostrará apenas a coleção pessoal de arte do seu fundador, o empresário português Armando Martins, que inclui mais de 600 obras, desde o final do século XIX até aos dias de hoje, mas convidará também outros colecionadores privados a mostrar as suas coleções, reforçando a missão de as tornar visíveis ao público. Instalado no edifício histórico do Palácio Condes da Ribeira Grande, que remonta ao início do século XVIII, o projeto reunirá um museu e um hotel. A reabilitação do espaço, a cargo do estúdio de arquitetura português MetroUrbe, procurou uma relação harmoniosa entre o palácio e a extensão contemporânea que alberga o programa de exposições temporárias do museu. A fachada desta nova ala – premiada na edição deste ano dos Surface Design Awards, em Londres – é revestida por uma série de azulejos tridimensionais da autoria da artista e ceramista Maria Ana Vasco Costa. LAE

Tattoos and Shadows, 2000 ©Jeff Wall. Courtesy White Cube

Jeff Wall

Curadoria de Sérgio Mah

No MAAT, a partir de abril

A primeira exposição individual em solo lisboeta do artista canadiano Jeff Wall (Vancouver, Canadá, 1946) chega ao MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em abril. São 60 fotografias, produzidas ao longo de mais de quarenta anos, que ocuparão todo o espaço expositivo do MAAT Gallery, naquela que será uma das mostras mais vastas realizadas até hoje sobre o trabalho do consagrado fotógrafo e artista visual. A obra de Wall articula o essencial da fotografia com elementos de outras formas de arte – incluindo pintura, cinema, teatro e literatura – numa forma complexa que ele chama de “cinematografia”. As suas imagens vão desde reportagens clássicas até construções e montagens elaboradas, geralmente produzidas numa escala maior, tradicionalmente identificada com a pintura. Em 2002, o artista foi galardoado com o Prémio Hasselblad e várias revistas especializadas têm-no colocado na lista dos dez artistas mais importantes da atualidade. ARV

©Ciries Gallery

O Salvado

de Olga Roriz

São Luiz Teatro Municipal, de 9 a 12 julho

Em 2013, Olga Roriz estreou A Sagração da Primavera – foi o seu último solo, que dançou nesse ano e no seguinte, antes de uma doença a ter impedido de continuar a dançar. Quase 11 anos depois, voltará a pisar o palco sozinha. Há muito que o queria fazer e, durante esta década, nunca deixou de pensar no que poderia fazer como intérprete, enquanto foi criando cenografias para os seus bailarinos. Imaginou um solo que fosse uma “autópsia de uma bailarina após a morte” ou um “espetáculo sobre a impossibilidade de uma bailarina se mexer”. “É inesgotável, o olharmos para nós próprios”, acredita. Será em julho de 2025, no Teatro São Luiz, que dará finalmente (o seu) corpo a esta ideia de se pôr, de novo, no centro da criação. Chamou-lhe O Salvado, prometendo “um novo impacto consigo mesma” e predispondo-se a procurar respostas para uma imensidão de perguntas: “Agarrando na vida como um naufrágio, o que se consegue salvar desta catástrofe? Que objetos, que coisas se livraram do perigo? O que consegue uma vida de sete décadas, ainda preservar? O que traz agarrado que se consiga ainda desprender e tornar matéria? O que não morreu ainda nela? Do que se conseguiu libertar? A sua coleção de sapatos… Os seus vestidos… O seu humor… Que corpo é agora o seu? Que histórias terá ainda para contar? Tudo suspenso tudo no ar…. Tudo suspenso tudo na memória… Na nuvem… in the cloud. Ouve-se a abertura das suas músicas preferidas. Será que se ouve a sua voz?” Uma pesquisa interior, que é sempre uma luta partilhada, como diz. GL

Audição

Teatro Praga

Sala Estúdio Valentim de Barros/ Jardins do Bombarda, de 11 a 20 julho

Pedro Penim, diretor do Teatro Nacional D. Maria II e fundador e ex-diretor do Teatro Praga, fez a piada na apresentação da programação: sim, estava a programar a sua antiga companhia de teatro; e, sim, não tinha como não o fazer nestes redondos e importantes 30 anos da Praga. A estreia do novo espetáculo faz-se na também novíssima (a inaugurar em março) Sala Estúdio Valentim de Barros, nos Jardins do Bombarda, que o Nacional se prepara para ocupar durante 2025 – um armazém que serviu de sala de ensaios aos Praga durante anos, até terem sido obrigados a sair. Audição apresenta-se como aquilo que o nome indica: “um casting onde só pode haver engano, porque o que se procura não existe”. O coletivo, dirigido hoje por Cláudia Jardim, André e. Teodósio, Diogo Bento e José Maria Vieira Mendes, sabe que o espaço que encontrará não é o mesmo que deixou há quase duas décadas, sabe que nem tempos nem contextos são também os mesmos, que tudo hoje já não é como era – nem mesmo o Teatro Praga. “Este regresso sem retorno é o mote”, escrevem, garantindo que entrarão sempre no espetáculo errado. “Nesta criação, o Teatro Praga faz-se ouvir pelo que foi e pelo que é: um coletivo simultaneamente dentro e fora de uma ideia de teatro, procurando uma relação de resistência específica com os lugares, os corpos e as disciplinas”, sublinha-se na apresentação da peça, “sem limite de idade, exigências físicas ou profissão, esta audição tem tudo para correr mal, uma vez que é isso mesmo que se quer. É no desencontro entre a expectativa e o presente, entre passado e futuro que se constrói esta Audição. E porque audição é também fazer-se ouvir, nesta criação encontra-se o eco das vozes como fantasmas. É que em 30 anos também se esculpem os tímpanos.” GL

©José Frade/ EGEAC

Percorrer Lisboa

Museu de Lisboa (Palácio Pimenta, Casa dos Bicos, Santo António, Teatro Romano, Torreão Poente)

De janeiro a dezembro

Ao longo de todo o ano, o Museu de Lisboa promove um conjunto de percursos orientados e temáticos que dão a conhecer a cidade. Memórias, histórias, épocas, arquitetura, arte e urbanismo são os temas que ajudam a compreender e a descobrir diferentes locais e vivências da capital. Em 2025, o programa começa, a 12 de janeiro, com o percurso A Cidade Romana, e prolonga-se até 13 de dezembro. No primeiro mês do ano realizam-se ainda os percursos Lisboa Africana (25 de janeiro), que revela um território marcado pela invisibilidade da presença africana, e A Cidade de São Vicente (26 de janeiro), onde se descobrem as vicissitudes por que passaram as sepulturas e as relíquias do Santo. AF

Quando, há mais de uma década, os dramaturgos Robert Icke (autor de A Médica, em cena no Teatro da Trindade) e Duncan Macmillan (conhecido do público português pela peça de sucesso Pulmões) tomaram a decisão de adaptar ao palco Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, procuraram puxar o tapete a leitores cujo clássico de George Orwell não fosse propriamente desconhecido. A premissa passou por tornar o futuro que o escritor escreveu em 1948 sobre factos ocorridos em 1984, um passado longínquo num vindouro ano para lá de 2050. Será por essa altura que um grupo de pessoas se junta para ler o diário de um tal de Winston Smith.

Surpreendentemente ou não, sobretudo para os mais familiarizados, Icke e Macmillan não subverteram nada do que seriam as intenções de Orwell ao escrever o livro. A dupla decidiu, isso sim, colocar o ponto de partida da sua adaptação do romance no “apêndice” do livro (note-se que algumas edições nem sequer o trazem), denominado Os Princípios da Novilíngua. Aí, de um modo mais académico do que romanesco, são operacionalizadas as regras impostas pelo governo totalitário da Oceânia (onde se desenrolam os factos narrados) para substituir a “velha língua” (no caso, o inglês padrão) pela dita Novilíngua, meio de expressão compatível com a mundivisão do partido único no poder, capaz de impossibilitar qualquer forma de pensamento divergente, e que passaria pela supressão de um conjunto de vocábulos, palavras, significados e termos considerados “indesejáveis”. Curiosamente, a referência ao ano de 2050 não é de todo inocente, já que é aquele em que se estimava ter a Novilíngua substituído por completo a Velhilíngua.

A partir desta perspetiva, nota Pedro Carraca que agora encena 1984 de George Orwell, Icke e Macmillan transferem o protagonismo do personagem de Winston Smith para “o romance em si mesmo”. Ou seja, segundo o encenador, “quando pensamos que estamos a ver esta peça no futuro, futuro esse que é moldado também pela existência do próprio livro em 1984, tiramos o personagem do centro e o protagonista passa a ser o livro em si”. Portanto, “aquilo a que assistimos é à história, que não sabemos se verdadeira ou não, de Winston Smith”. Mas, simultaneamente, também é “a história do próprio romance ao longo do tempo decorrido desde que foi escrito, e de como é que esse livro contribuiu ou não para alterar o futuro”.

“O Grande Irmão está sempre a ver-te”

No imaginário de muitos leitores, o romance de Orwell projeta invariavelmente a imagem do “Big Brother/Grande Irmão” nos chamados “tele-ecrãs” presentes em todas as dimensões da vida pública e privada de cada cidadão. Na Oceânia, um dos três super-Estados beligerantes em que o mundo se organizou, é essa entidade não necessariamente humana (o livro é bastante ambíguo nesse aspeto, embora refira a figura de um homem de meia-idade com um farto bigode) que simboliza a liderança omnipresente e omnisciente do partido único num Estado totalitário que tudo vê e tudo escuta.

Ao pensarmos em nós, neste século XXI, “parece que George Orwell previu bem o que iria suceder”, observa Carraca ao constatar ser praticamente impossível estar hoje numa sala sem que estejam presentes “uma câmara de gravação e um microfone, algo que qualquer dos nossos telemóveis tem”. No fundo, “conseguimos ir mais além,  e até de uma forma muito mais subtil”, já que cada um de nós, passivamente, se encarrega de ser hipoteticamente vigiado, escutado e localizado.

Na realidade imposta pelo Estado totalitário, se a vigilância é a arma mais imediata, o domínio do pensamento é absolutamente estratégico para o exercício do poder absoluto. Logo na primeira cena da peça de Icke e Macmillan encontramos Winston Smith a iniciar o diário, e uma voz vaticinando: “se o descobrissem, condenavam-no à morte”. Este comum funcionário do Ministério da Verdade, onde tem como tarefa primária manter a coerência entre os “factos” e o discurso oficial, sabe que está prestes a cometer um “crimepensar” a partir do momento em que fizer correr a caneta no papel. Atenta, estará a Polícia do Pensamento e, quando o apanhar, como anuncia a voz, “os registos de tudo o que tinhas feito eram apagados, a tua existência passada era interditada e depois votada ao esquecimento. Eras eliminado, aniquilado: ‘despessoalizado’ era o termo utilizado.”

Provavelmente, nada disto aconteceu

Embora o futuro para lá de 2050 pareça muito pouco radioso, ao avançar pelas páginas do diário de Winston Smith, os membros do clube de leitura deparam-se com um passado absolutamente tenebroso e uma violência inaudita. Em 1984, ano a que remonta a narrativa, a Oceânia é governada por um partido único que professa o SOCING (abreviatura de “socialismo inglês”). O partido encontra-se dividido no “partido interno”, uma elite que se assume como o cérebro do Estado; e o “partido externo”, a grande mole que faz funcionar o regime, e no qual milita Winston Smith. O resto da população, esmagadora maioria, é definida como a “prole”, sendo encarada pelo partido como uma classe sub-humana.

O Estado está estruturado em quatro grandes ministérios: o da Verdade, onde trabalha Winston, cuida dos assuntos relacionados com a informação, a história e o ensino; o da Paz trata os assuntos da guerra (que é permanente); o do Amor impõe a lei e a ordem moral e social; e o da Riqueza dedica-se às questões da economia. Do ponto de vista ideológico, o partido patrocina três slogans essenciais, baseados no princípio fundamental do “duplopensar”: “Guerra é paz”, “Liberdade é escravidão”; “Ignorância é força”. Ou seja, até à implementação integral da Novilíngua, é necessário dar às palavras um sentido duplo, ou até inverter o seu significado original (a exemplo, o Ministério do Amor é responsável pela tortura, o da Paz faz a guerra ininterruptamente, etc.).

Como é comum numa ditadura (ou em regimes que, nunca se sabe, caminharão para o ser), o “inimigo externo” nunca é suficiente, por isso, é essencial um “interno”: em Oceânia, o merecedor de uns obrigatórios “dois minutos de ódio” diários dá pelo nome de Goldstein, personalidade que outrora esteve quase ao nível do “Grande Irmão” na hierarquia do partido, mas que por ligações a atividades ditas “contra-revolucionárias” acabou condenado à morte. Supostamente em fuga, Goldstein lidera uma frente de resistência e é o suposto autor de um livro onde expõe todas as mentiras do regime e aponta as suas fraquezas, sendo considerado a “bíblia” da fraternidade oposicionista ao partido.

Ora, tudo isto chegará aos membros do clube de leitura como parte do diário de Winston Smith, tal como a história da sua tórrida e proibida relação amorosa com Júlia e da cumplicidade conspirativa com O’Brien, um enigmático e dúplice membro do “partido interno”, que lhe fornecerá o secretíssimo livro de Goldstein. Para infelicidade de Winston Smith, a leitura do livro nunca será concluída, pois a traição reserva-lhe um tortuoso e vil caminho para aprender a amar o “Grande Irmão”.

Quando concluem a leitura do diário de Winston Smith, a generalidade dos membros do clube de leitura é dominado pelo sobressalto causado por tantas respostas estarem ainda por revelar. Certo que, ao contrário do que previa o partido (derrubado ainda antes de 2050, segundo reza a história), não se expressam na Novilíngua. Por isso, será que, em 1984, tudo era mesmo assim? E porque se diz que Winston Smith nunca existiu quando pode ter sido “despessoalizado”, termo usado pelo partido para apagar alguém da história? O que é então este livro que estiveram a ler? Será ele o verdadeiro livro de Goldstein? Ou uma obra colaborativa escrita a várias mãos?

“E se o livro não for mais do que uma manipulação do partido”, pergunta, no final de um ensaio, Pedro Carraca, acompanhando o sobressalto das personagens. Talvez o melhor seja cada um de nós procurar respostas após ver 1984 de George Orwell. Depois de Aveiro e Seixal, esta criação dos Artistas Unidos passa por Guarda (25 de janeiro), Póvoa do Varzim (1 de fevereiro), Penafiel (7 e 8 de fevereiro) e Estarreja (15 de fevereiro), antes de chegar a Lisboa, mais precisamente pelo Centro Cultural de Belém, de 21 a 23 de fevereiro de 2025. Os bilhetes estão já à venda.

Natural de Viana do Castelo, a atriz e criadora Sara Inês Gigante é um dos valores mais seguros da nova geração do teatro português. Formada na ACE- Teatro do Bolhão, no Porto, e na Escola Superior de Teatro e Cinema, soma no currículo colaborações com Jorge Silva Melo e Artistas Unidos, Bruno Bravo, Nuno Nunes, Raquel Castro ou Pedro Frias, com quem se estreou há pouco mais de uma década a representar Tchékhov. Em 2021, a atriz assinou a sua primeira criação, YOLO, e apenas um ano depois Massa-Mãe, onde esfarelava sem rodeios as suas raízes e identidade minhotas. Logo a seguir, Sara venceu a Bolsa Amélia Rey Colaço com um novo projeto: Popular. O espetáculo estreou em 2024 em Guimarães, fez temporada no Teatro Meridional, em Lisboa, e correu o país, sempre com salas cheias. Contudo, como o público pode confirmar a 4 de janeiro, no Teatro Variedades, numa récita única que será gravada para a RTP, Sara Inês Gigante continua muito longe de se sentir uma artista Popular.

Metade dos Minutos

Instalação de Ângela Rocha

Até 5 de janeiro na Culturgest

Sugiro vivamente a instalação Metade dos Minutos da Ângela Rocha. Trata-se de um desafio olharmos para um objeto artístico de uma forma que não estamos acostumados: através do tato, do toque. A Ângela é uma artista incrível e muito completa com quem já tive o prazer de trabalhar, e oferece-nos aqui um mergulho muito especial e sensorial em que não basta ver e ouvir, é preciso tocar, mexer, entrar num espaço e ocupá-lo, investigá-lo também com as mãos. É preciso estar presente, e acho que isso traz em si uma mensagem provocadora, mas pertinente.

Dores Crónicas

de Bruno Nogueira

Dom Quixote, 2024

Sugiro o livro que estou a ler, Dores Crónicas do Bruno Nogueira. Já tinha lido o anterior, Aqui Dentro Faz Muito Barulho, e encontro sempre uma inquietação nas crónicas do Bruno que me agrada. Sinto-lhe uma rara inconformidade e uma constante procura pela reflexão, seja nas coisas mais mundanas ou nas mais difíceis de olhar de frente. Numa primeira instância, a crónica é um estilo de escrita e de leitura que aprecio bastante. E depois, porque efetivamente o Bruno é um artista que me inspira. Nas suas crónicas ora traz uma lufada de ar fresco leve e irónica sobre determinado tema, ora me incita a um pensamento ou a um novo ponto de vista sobre algo. Não ter medo do questionamento contínuo ou de não fechar uma ideia ou uma opinião é um exercício que aprecio, por acreditar que seja esse o caminho evolutivo, e é uma característica que encontro neste livro, e que por isso também me ajuda a pensar ou a repensar, o que é sempre bom, a meu ver.

Inside

de Bo Burnham

disponível na plataforma Netflix

Num contexto mais caseiro, sugiro Inside do Bo Burnham, que está disponível na Netflix, e é talvez a coisa que mais vezes vi repetidamente. Este Especial foi feito durante a pandemia e, para mim, a destreza com que o Bo Burnham alinha a música, o humor, e também a sátira e a crítica a muitas das coisas trágicas do mundo, da atualidade e da humanidade é uma característica que me move, e acho inovadora e muito única a forma como o faz. Armadilha-nos através do humor e do entretenimento, e logo a seguir tira-nos o tapete, e esse vaivém é desarmante. Sempre que estou em processos criativos da minha autoria, vou a muitos materiais do Bo Burnham tentar buscar inspiração.

O Americano

de Ivo M. Ferreira

disponível na RTP Play

Outra sugestão: O Americano, série realizada pelo Ivo M. Ferreira. É inspirada numa das maiores fugas prisionais que tivemos em Portugal, nos anos 80, no Algarve, e foi criada a partir do livro autobiográfico Vida e Mortes de Faustino Cavaco. É protagonizada por um grande amigo meu, o João Estima, que brilhantemente dá vida a Faustino Cavaco na série. Obras inspiradas em factos verídicos, ou que tenham materiais biográficos, atraem-me particularmente, há qualquer coisa na tensão entre a realidade e a ficção que acho avassaladora, e esta série, para além de ter esse carácter, está muito bem conseguida, sobretudo no que toca às interpretações dos atores.

©Pedro Ivan

Malva

Álbum vens ou ficas

disponível nas plataformas digitais

Uma sugestão musical, de uma artista e amiga com quem já tive o privilégio de trabalhar, a Carolina Viana com nome artístico Malva. Fez a música do meu espetáculo anterior, Massa Mãe, e é uma artista musical maravilhosa. Tem lançado músicas da sua autoria, e é sem dúvida uma forte recomendação. As músicas de Malva são especiais, não só pela voz incrível que tem, mas porque todas elas têm mesmo a capacidade de nos tocar. São tristes, melancólicas, e ao mesmo tempo belas e inquietantes. Malva está disponível nas plataformas habituais (Spotify, YouTube, etc) e tem feito vários concertos, é uma questão de estarem atentos que o concerto vale muito a pena.

Pequeno Urso Gosto de ti

Benjamin Chaud

Orfeu Negro

É a terceira saga do Pequeno Urso e continuamos sem nos cansar de correr atrás dele. Desta vez, seguimos no encalço de uma guaxinim e do para-raios dourado que levou emprestado. Será que os descobrimos por entre as árvores e os animais da floresta? As ilustrações pormenorizadas de Benjamin Chaud passam-nos rasteiras e fazem-nos sorrir nesta perseguição. E, no final, temos uma surpresa pop-up à espera, mas, já se sabe, os finais não se revelam…

 

O Pai Natal Não Vive no Polo Norte

Afonso Cruz

Fábula

Ainda é possível acreditar no Pai Natal? Afonso Cruz escreve palavras bonitas, mas ilustra-as com desenhos que nos remetem para uma realidade bem diferente. Será a fábrica de brinquedos um lugar colorido ou um sítio negro e poluidor? Será que lá trabalham duendes ou crianças subnutridas? Os brinquedos vêm de trenó para as chaminés ou de avião para os centros comerciais? Porque, nesta altura do ano, talvez valha a pena despertar consciências e, mesmo entre os mais pequenos, contar histórias menos encantadas.

 

Explosão na Fábrica de Poemas

Kyle Lukoff e Mark Hoffmann

Lilliput

Pode a poesia atrair os mais novos? Esta é uma história divertida de uma fábrica onde se operam manivelas de metricómetros, se esvaziam caixotes de lugares-comuns e se limpam cântaros de ideias feitas. No dia em que a fábrica explode, fica em crise a indústria lírica, mas a poesia, essa, continua sempre imensa e livre. No final do livro, um glossário ajuda a descortinar algumas palavras que pareciam mais difíceis de entender.

 

Onde é que nós íamos?

Isabel Minhós Martins, Dina Mendonça e Madalena Matoso

Planeta Tangerina

As conversas são como um jogo de pingue-pongue ou, como se diz logo no início deste livro, “conversar é ir andando”. Onde é que nós íamos? explica-se com o subtítulo: Sobre a importância e o prazer de conversar. Ao longo destas páginas, as autoras vão conversando com o leitor sobre o assunto, falando dessa satisfação (que é como a das cerejas), sugerindo como fazê-lo cada vez melhor, imaginando as infinitas maneiras e formas que assumem e também propondo atividades e experiências para as pôr em prática. Pelo caminho, fazem várias perguntas – para nos pôr a pensar e a conversar.

 

Como criar uma biblioteca

Inês Fonseca Santos e André Letria

Pato Lógico

Não há retorno, quando se abre um livro. E depois outro e depois mais um. Livro a livro se faz uma biblioteca. E, como dizia Manuel António Pina, os livros também são para ter. Por perto, ao alcance, à mão de semear, para ler do princípio ao fim ou apenas folhear. Este presta homenagem a isso mesmo: ao prazer de construir uma biblioteca e de estar rodeado de livros que guardam inúmeras possibilidades, e dão largas à imaginação. Aqui, são muitos os que se acumulam até ocuparem quase as páginas inteiras, numa história contada com frases curtas e ilustrações simples e carregadas de afeto. Uma edição integrada nas celebrações dos 141 anos da Biblioteca de São Lázaro, a mais antiga biblioteca pública de Lisboa, que também vale a pena descobrir.

 

Irmãos

Marie Le Cuziat e Hua Ling Xu

Orfeu Negro

Um livro em que cada página é uma pintura e que nos leva pelos encantos de ter e de ser um irmão – mesmo com todas as diferenças e algumas lutas pelo meio. Uma história simples e bonita, que nos remete para os dias de verão, passados em família, no campo e junto ao mar.

 

Gaspar, com os pés bem assentes na Lua

Rita Taborda Duarte e Sebastião Peixoto

Caminho

Rita Taborda Duarte conta as aventuras de Gaspar, um menino sonhador, de cabeça na Lua e ideias cintilantes. E escreve esta história sem evitar palavras mais difíceis ou menos conhecidas. Ao longo do texto, vai assinalando esses termos mais “esquisitos”, mas que “estão só à espera” de ser descobertos – é a palavrodiversidade, como lhe chama. Um livro para descobrir os encantos da Lua e das palavras que não sabíamos que existiam.

 

Stop

Ricardo Henriques e Pierre Pratt

Orfeu Negro

Há quanto tempo não vemos um polícia sinaleiro na rua a orientar o trânsito? Neste livro, o agente Simões é o último exemplar da sua espécie, gesticulando entre carros e peões e salvando situações de vida ou morte ou orientando manifestações e choques ideológicos. O que lhe acontecerá quando, como todos os outros que deixámos de ver, for substituído por um semáforo? Com muito humor no texto e nas ilustrações, esta história talvez guarde um final feliz e a certeza de que um “stop”, bem gritado e gesticulado, pode mesmo salvar o mundo.

 

Tantos Insetos em Todo o Lado

Britta Teckentrup

Lilliput

Tão bonito quanto informativo, este é o livro que fala de todos aqueles “bichos” com que nos cruzamos por aí e em que não pensamos muitas vezes: os insetos. Com um “poder invisível que mantém o mundo a funcionar” e as cores mais incríveis da natureza, merecem ser conhecidos à lupa. Onde anda o besouro-tartaruga-dourado e como faz para sobreviver? Quais os recordes batidos pelo moscardo e pela cigarra? Onde vivem todos eles e como se alimentam? Um livro com muitas informações e muitos desafios para os mais curiosos.

 

Como Assustares um Monstro

Tânia Correia e Tiago M.

Oficina do Livro

Uma história para ajudar os mais pequenos a ultrapassar os medos característicos da idade e a enfrentar os monstros que imaginam escondidos por aí. Tudo começa quando Mimi ouve um barulho vindo do armário, mas acaba por perceber que, afinal, os monstros dentro dos armários também têm os seus medos. Com uma linguagem acessível e ilustrações simples, é um livro bom para ter na cabeceira, que pode contribuir para gerir emoções antes de apagar a luz.

 

A História Fora da Caixa

Sofia Fraga e Patrícia Figueiredo

Editora Minotauro

Apresenta-se como “uma carta de amor a uma mãe”, o novo livro de Sofia Fraga, ilustrado por Patrícia Figueiredo. Entre dragões, princesas, um ogre, sete anões, a Bruxa Má e a Branca de Neve e outras personagens dos contos infantis, narra a história de Xavier, que, um dia, desce do alto do seu castelo para procurar um remédio para a tristeza da mãe. Um conto com muitas caixas e muita imaginação, que acaba num abraço apertado.

 

Onde está o livro que estava aqui?

Telma Guimarães e Jana Glatt

Caminho

Do Brasil chega um livro que é quase uma lengalenga contada ao passar das páginas. A história desafia-nos a encontrarmos vários animais por entre as ilustrações coloridas, onde se descobrem também muitos outros seres e objetos que merecem um olhar atento. É também uma homenagem aos livros e ao que trazem dentro.

Com 21 anos de carreira, João Tordo é um dos mais profícuos escritores da atualidade. Em novembro, lançou o seu 21.º livro, Dias Contados, que volta a centrar-se na subcomissária Pilar Benamor. Uma excelente notícia para os seus leitores mais fiéis, já que este novo policial (o terceiro da série) explica a origem dos fantasmas de uma das suas personagens mais marcantes. Vencedor do Prémio José Saramago 2009 com o romance As Três Vidas, e do Prémio Literário Fernando Namora em 2021, com Felicidade, o autor também conta no currículo com a participação, enquanto guionista, em diversas séries de televisão, como o sucesso da Netflix Rabo de Peixe. Este ano, a sua ficção saltou do papel para os ecrãs com o filme Dulcineia, estreado em setembro, adaptado do romance O Ano Sabático. No próximo ano, está previsto o início das filmagens de uma série baseada num dos seus bestsellers, Águas Passadas (o primeiro sobre o universo Pilar Benamor).

Coro Gulbenkian

Oratória de Natal

19 de dezembro, às 20h
20 e 21 de dezembro, às 19h
Fundação Calouste Gulbenkian

Obrigatória nesta quadra festiva, a Oratória de Natal é um dos momentos altos da temporada da Gulbenkian. Escrita entre 1734 e 1735 por Johann Sebastian Bach, é uma das grandes obras-primas corais do período Barroco. O escritor já assistiu a duas oratórias, que considera serem “sempre momentos muito bonitos de celebração nesta época festiva”. A Oratória de Natal será interpretada no palco do Grande Auditório, de 19 a 21 deste mês, sob direção da nova maestrina titular do Coro Gulbenkian, Martina Batič. Para João Tordo, é “uma ocasião para ver a Orquestra Gulbenkian e o Coro Gulbenkian em palco com solistas convidados”. As sessões deste ano já estão esgotadas, mas fica a dica para comprar com muita antecedência no ano que vem.

A Origem dos Dias

romance de Miguel d’Alte
Editora: Suma de Letras (setembro, 2024)

Um livro é sempre uma excelente opção para companhia nos dias outonais, e não podia faltar nas escolhas de João Tordo. O escritor sugere a mais recente obra de Miguel d’Alte, A Origem dos Dias. “Já tinha lido o primeiro livro dele, Os Crimes do Verão de 1985, e identifiquei-me. Acho que o Miguel tem coisas muito parecidas comigo e com os meus livros, por isso gostei bastante”, confidencia. Este é o terceiro romance de Miguel d’Alte, e segue a vida de Tomás Franco, um escritor falhado que se muda para o Porto em busca do significado do passado e da literatura. “Um nome a registar para o futuro” e que o autor de Dias Contados não quis deixar de partilhar com os leitores da Agenda Cultural.

©Paulo Azevedo

Fora de portas…

Trilho da Peninha, Sintra

Às portas de Lisboa há um sítio mágico para descobrir. Trata-se do trilho da Peninha, que tem início junto do Santuário da Peninha, em Sintra, “um sítio muito bom para se caminhar, com dezenas de rotas individuais”. Esta sugestão do escritor é um apelo ao usufruto da natureza e ao exercício físico. Há passeios para vários tipos de ‘atletas’, mas as caminhadas “são longas, com uma duração mínima de uma hora”, explica. A paisagem, diz o autor, “é muito bonita, especialmente durante o inverno porque a floresta tem um ar meio transcendente, parece um cenário do Senhor dos Anéis”. Se quiser ir passear por lá ao fim-de-semana, não se admire se der de caras com João Tordo, já que este é um dos seus locais de eleição (e quem sabe se fonte de inspiração para algum dos seus livros).

 

Em cena, rodeados daquilo que o encenador Bruno Bravo define como uma “orquestra do lixo” (e não é que é mesmo, como explicaremos adiante), temos Guilherme  e Guilhermina, um casal praticamente imóvel, ele numa cadeira de rodas, ela numa de braços. Tal como aparentam, no início são “jovens namorados, velozes, sexuais e impetuosos”. Atrás deles, uma sucata de carro ganha vida e empurra-os para a vertigem do sexo e do risco. Há um acidente, mas também há um casamento e há um filho que nasce e que morre.

O tempo parece saltar dos eixos, no entanto, o local permanece o mesmo, “tão concreto como distópico”, considera Bruno Bravo. O lixo que os rodeia continua ganhando vida – é toda a “orquestra do lixo” na qual explodem lâmpadas, onde um cavalo de madeira galopa sem criança, em que música antiga se escuta através de um vetusto rádio de sala –, mas estamos já noutro ponto das suas vidas, numa espécie de velhice interminável onde ambos interpretam “um jogo de linguagem que os desloca do drama para um território mais surrealista e irónico”.

Não Vos Arrancarei A Língua/ Momentos Há Em Que As Palavras Nos Abandonam recupera o “absurdo existencialista” de Beckett, citando mais concretamente Dias Felizes (“Até nos nomes das personagens, Guilherme e Guilhermina e Willie e Winnie…”, lembra o encenador), conjugando “o trágico e o cómico, como se fossem um só verbo”. Este casal parece estar condenado à circularidade da existência, num “tempo suspenso, que não avança, preenchendo o espaço entre a juventude e a velhice em que se encontram com emoções e memórias que nunca saberemos se efetivamente viveram”.

Ao mesmo tempo, talvez a circularidade se quebre um dia e se consiga vislumbrar o futuro. Como se pode escutar na locução de um programa televisivo que, a dado momento, fixa o olhar de Guilhermina no ecrã de um velho aparelho de televisão, “belos dias são os dias de amanhã”.

Talvez, “um estranho musical”

É a primeira vez que o encenador Bruno Bravo, diretor da companhia Primeiros Sintomas, trabalha no Teatro Aberto. “Tratou-se de um convite do João Lourenço e da Vera San Payo de Lemos para encenar um texto novo, vencedor do Grande Prémio de Teatro Português, que achei, assim que o li, muito estimulante.”

Explica o encenador que, a par da “musicalidade aliciante dos diálogos”, o texto de Patrício Torres começou por conquistá-lo com as “didascálias impossíveis de materializar em palco, que incluem carros desportivos que caem do céu, incêndios descontrolados ou pernas que andam desatarraxadas do corpo, tão desafiantes para a imaginação e estimulantes para interpretações metafóricas capazes de serem exploradas dramaturgicamente”. Em parceria com Nídia Roque, Bruno Bravo iniciou esse trabalho tendo como foco “aquilo que o texto poderia sugerir”, daí afirmar que “não será a peça do autor que levamos a cena, mas a peça que o autor escreveu”, sendo isso “diferença fundamental no exercício de encenação”.

Com o cenário de Stéphane Alberto, a sonoplastia de Sérgio Delgado, o desenho de luz de Diana dos Santos e, claro, a vivacidade dos atores André Pardal e Rita Correia, esta aventura cénica vai para além das verosimilhanças da vida quotidiana, parecendo cumprir-se num sonho onde tudo parece estar imbuído de música. Ou, como escreve Bruno Bravo a concluir o texto da folha de sala, “às vezes, durante os ensaios, cheguei a pensar, é um musical. Estranho musical”.

Em 1912, Arthur Schnitzler escreveu Professor Bernhardi, um retrato impressionante e devastador do antissemitismo vigente na sociedade austríaca da época. A peça narra a história de um destacado médico judeu que nega a extrema-unção prestada por um padre católico a uma jovem paciente moribunda, após um aborto malsucedido. Professor Bernhardi acabou impedida de estrear em Viena (por isso, a estreia aconteceu em Berlim nesse mesmo ano), sendo que nenhuma explicação plausível foi dada pelos censores, embora a proibição se tenha mantido até à queda dos Habsburgos, em 1918. Pelas temáticas abordadas, é suscetível presumir o que não agradou à censura, e o certo é que a peça de Schnitzler acabou, muito pelas vicissitudes do curso da História, por se tornar um clássico da literatura dramática europeia do século XX.

Embora frequentemente representado, um interesse renovado pelo texto surgiu em 2019, quando o dramaturgo e encenador britânico Robert Icke, especialista em novas abordagens de grandes textos da literatura (os Artistas Unidos têm, atualmente em digressão pelo país, a sua visão, a meias com Duncan Macmillan, de 1984, de George Orwell), estreou em Londres, com enorme sucesso de público e de crítica, A Médica, um reboot da peça de Schnitzler. Com originalidade e agudeza, Icke impregnou o drama de alguns dos temas mais suscetíveis de gerar debate na atualidade, nomeadamente os conflitos raciais e as questões de género e de classe, e ainda apostou em introduzir um jogo dissonante entre o género e a etnia de alguns dos atores e das personagens que representam. Um exemplo dessa dissonância: o padre católico impedido pela médica de origem judaica (papel aqui interpretado por Custódia Gallego) de prestar a extrema-unção à jovem de 14 anos é negro. Ora, na versão portuguesa, respeitando as indicações de Icke, esse personagem é encarnado pelo ator Pedro Laginha.

O encenador Ricardo Neves-Neves vê o “desencontro” como um desafio do próprio teatro enquanto arte. Afinal, “quando o ator ou a atriz está em placo é aquilo que diz ser, não aquilo que efetivamente é”. Aqui, Icke usa a dissonância do género ou da raça como “uma espécie de laboratório para perceber o que é que o público realmente vê. Enquanto vemos um ator a representar uma personagem, será que estamos a ver o ator ou a ver a personagem”, questiona.

De certo modo, neste jogo teatral, parece estabelecer-se entre A Médica e o anterior espetáculo que Neves-Neves e o seu Teatro do Eléctrico apresentaram no Teatro da Trindade, uma relação não discernível à partida. “Em Noite de Reis recorria à regra do teatro isabelino e todas as personagens, femininas ou masculinas, eram representadas por homens. Aqui, tenho um elenco definido na sua diversidade, contudo a distribuição dos papéis não obedece à regra lógica” do género ou da raça, explicita o encenador.

Vale a pena, assim, recuperar a ideia de que “a representação tem como ponto de partida a ilusão, palavra essa muito ligada ao teatro”. Isso já acontecia em Noite de Reis, com o género, mas A Médica (e esse jogo da dissonância começa, desde logo, ao colocar o protagonista no feminino quando, na peça original, o Professor Bernhardi era um homem) leva o desafio para outro nível. Este texto não se resume a mexer com o espectador pelos temas que aborda, mas também por lhe puxar o tapete ao desafiá-lo a pensar de que modo é que se deixa “iludir” quando, por exemplo, uma atriz negra como Vera Cruz interpreta uma personagem “que diz ser negra porque teve uma avó negra, mas aparenta, segundo nos dizem as outras personagens, ser uma pessoa totalmente branca.”

Doenças modernas

O incidente inicial em A Médica, aquele em que a doutora Piedade Lobbo impede o padre de entrar no quarto da jovem adolescente moribunda, acaba por despoletar uma reação que ultrapassa os corredores do hospital quando a discussão entre os protagonistas surge difundida na internet, tornando-se viral. Inúmeras questões começam por ser levantadas, como o facto de Piedade Lobbo ter negado a visita do padre devido à sua origem judaica, ato agravado não só pelo conflito entre fés professadas como por racismo.

Acossada, primeiro, pelos seus pares que duvidam das suas explicações clínicas, segundo, pelas redes sociais que aclamam por uma condenação sumária pelas mais diversas (e simplistas) razões, Piedade acaba por se ver no epicentro de um furacão mediático que alimenta petições online, debates televisivos e até decisões políticas. Com a carreira profissional ferida de morte, a abordagem tóxica em torno do incidente resvala para a dimensão identitária e pessoal da vida de uma mulher branca, judia, privilegiada e profissionalmente bem-sucedida.

À visão crítica do antissemitismo da peça de Schnitzler, Icke prolonga o olhar na direção das nefastas doenças modernas que, na sua essência, as redes sociais, “em que se fala muito de coisas que se desconhecem”, propagam. Observa Neves-Neves que, a dado momento da peça, assistimos a um programa de televisão onde Piedade decide falar, pela primeira vez publicamente, do caso. Nele, antes de passar a palavra à médica, o apresentador resume o contexto ao dizer “vocês já terão de certeza a vossa opinião formada”. Portanto, após tanta “gente a gritar na internet, diga o que disser, aquela mulher já está julgada, condenada a ser trucidada pela opinião pública. E mesmo que, daí a uns dias, já o caso esteja esquecido, tudo aquilo fica como uma constante na vida de quem o sofreu”.

Para além de Custódia Gallego, Vera Cruz e Pedro Laginha, A Médica conta com um elenco de luxo constituído por Adriano Luz, Eduarda Arriaga, Igor Regalla, Inês Castel-Branco, José Leite, Luciana Balby, Maria José Paschoal, Rita Cabaço e Sandra Faleiro. A cenografia é de Fernando Ribeiro, o desenho de luz de Cristina Piedade e os figurinos de Rafaela Mapril. O espetáculo está em cena até 16 de fevereiro, com récitas de quarta a sábado às 21 horas, e aos domingos às 16h30.

Margarida Campelo é uma das mais interessantes artistas do panorama musical atual e alguém a ter debaixo de olho. Membro dos Cassete Pirata (que, no mês passado, esgotaram o Musicbox em duas datas), é também colaboradora assídua de Bruno Pernadas, Joana Espadinha, Minta & the Brook Trout ou Julie & the Carjackers. No ano passado, estreou-se a solo com Supermarket Joy, cuja sonoridade viaja pela pop, dance music, R&B ou jazz experimental. Este mês, podemos vê-la em modo natalício no palco do Musicbox quando, no dia 21, a cantora apresentar um espetáculo inédito rodeada de convidados, como Femme Fallafel, Filipe Melo, Samuel Úria e a família Isabel, Guilherme e Joana Campelo.

Fay Victor e Sam Newsome

13 de dezembro, às 19h30
Teatro do Bairro Alto (TBA)

Sendo a música o seu habitat natural, Margarida não podia deixá-la de fora das suas escolhas. A primeira sugestão musical é um concerto que acontece no próximo dia 13, no TBA, e que junta Fay Victor (cantora e compositora americana de free jazz) a Sam Newsome (saxofonista de jazz experimental). “O TBA é um sítio onde gosto muito de ir porque tem sempre uma programação de exploração e free jazz que não desilude. Não conheço Fay Victor e Sam Newsome, vou completamente à descoberta neste concerto, mas confio que vá ser um espetáculo interessante de música exploratória”, declara.

Superbox (Blu & Exile + DJ Spot + Sam the Kid dj set)

14 de dezembro, às 00h
Musicbox

A outra sugestão musical de Margarida acontece no Cais do Sodré. “Adoro o Musicbox, tem sempre uma programação disruptiva”, diz. No próximo sábado, é aqui que decorre o encerramento da temporada Superbox, uma festa dedicada à música de dança em ambiente intimista. À meia-noite, sobe ao palco a dupla norte-americana de hip hop Blu & Exile, que se estreia no nosso país com a apresentação do terceiro disco, Love (the) Ominous World. A noite conta ainda com atuações de DJ Spot e de Sam The Kid (em formato DJ set), que Margarida não quer perder: “Sou muito analfabeta no que toca ao hip hop, por isso comprei bilhetes para assistir a estas atuações, que saem da minha zona de conforto musical”. Como nota final, será nesta mesma sala que a multi-instrumentista irá apresentar o seu concerto de Natal, a 21 de dezembro.

Janela Indiscreta (1954, de Alfred Hitchcock)

15 de dezembro, às 19h30
Cinema Nimas

Inserido no ciclo Prendas de Natal, o Cinema Nimas recebe o clássico de Alfred Hitchcock  Janela Indiscreta, uma das mais aclamadas obras do realizador britânico. A ação acompanha o fotógrafo L. B. Jeffries que, por estar imobilizado com uma perna engessada, decide passar o tempo a bisbilhotar a vida dos vizinhos através da janela das traseiras do seu apartamento. “Janela Indiscreta é um filme que adoro e que me fez muita companhia durante a pandemia, mas que nunca tive oportunidade de ver em grande tela. Gosto muito de Hitchcock e das bandas sonoras dos seus filmes, e adorava ir a esta sessão no Nimas, que é um espaço de que gosto muito”, refere.

William Klein – O mundo inteiro é um palco

Até 3 de fevereiro de 2025

Anthony McCall – Rooms

Até 17 de março de 2025
MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia

Para Margarida, “o MAAT é um sítio lindo”, e, por isso, lamenta nunca ter “muitas oportunidades para ver exposições”. Fã confessa de fotografia, a artista sugere uma visita à exposição de William Klein (1926-2022), um dos fotógrafos mais influentes da segunda metade do século XX. A mostra inclui fotografias de rua, moda, cinema e produção editorial que transportam o público até Nova Iorque, Paris, Roma, Moscovo e Tóquio. Ainda no MAAT, Margarida aconselha a exposição do artista britânico Anthony McCall. Chama-se Rooms e inclui quatro instalações fílmicas que fluem no espaço como esculturas imateriais de luz e fumo, mas aparentemente tridimensionais. “Uma exposição de luzes é uma coisa pouco comum, e deixou-me muito curiosa”, confessa.

As mudanças começam a notar-se ainda na rua. O Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva, na Praça das Amoreiras, voltou a ganhar o amarelo original com que foi pintado há 30 anos e tem agora o nome em grandes letras na fachada. Neste aniversário redondo, já sob a direção do curador Nuno Faria, nomeado em fevereiro deste ano, o museu repensa-se e reinventa-se, seguindo a história do lugar onde nasceu, a antiga Fábrica de Tecidos de Seda, e também a história de amor que lhe deu origem.

É com o projeto expositivo 331 Amoreiras em Metamorfose, que se estende até ao final de 2025, que as salas do Arpad Szenes – Vieira da Silva ganham nova vida. O título remete para o número de árvores mandadas plantar pelo Marquês de Pombal para abastecer o processo de transformação e produção das fábricas de seda construídas na zona entre 1760 e 1770, no âmbito do plano de renovação urbanística de Lisboa, posterior ao terramoto de 1755. A ideia de “metamorfose” que inspirou Nuno Faria reflete-se tanto nas obras escolhidas, como na forma da mostra, que se vai mutando várias vezes ao longo do ano. “Será a mesma exposição, mas com cinco momentos diferentes, como se fossem uma gradação cromática”, descreve o diretor.

Depois de passada a loja do museu, agora logo à entrada e com um novo design assinado por Fernando Brízio, as escadas levam-nos àquilo a que Faria chama “uma ampla constelação de artistas, portugueses e estrangeiros, contemporâneos ou não de Maria Helena Vieira da Silva e de Arpad Szenes, cujas peças dialogam num espaço comum”. 331 Amoreiras em Metamorfose pretende propor novas leituras dos universos artísticos do casal e convocar outros autores a tecer diálogos com as obras e o lugar. “A ideia é contar histórias – não propriamente a história da arte, mas outras: sobre este edifício, onde se aprendia o ofício da tecelagem, sobre as 331 amoreiras, um número poético porque estranho, que alimentavam todo o ecossistema dos têxteis… É desse ecossistema que queremos falar, da solidariedade entre as espécies vegetal, animal e humana. Acredito que olhando para essas outras espécies, aprendemos sobre nós próprios”, explica o curador.

Sem perder o fio à meada

À entrada, no patamar das escadas, uma escultura de Frida Baranek, artista brasileira que vive em Lisboa, ocupa um espaço que, a partir de agora, terá, não pintura, mas intervenções escultóricas. É ali que há de estar, depois, uma peça de Sara e André, criada no ateliê de Vieira da Silva propositadamente para esta exposição, e, mais tarde, um trabalho de Vera Mota. Na sala principal, tiraram-se divisórias e destaparam-se as janelas, deixando entrar a luz natural, para dar outro conforto à visita. “O museu abriu-se à luz. É literal, mas acho que resume bem o que aqui quisemos fazer”, nota Nuno Faria. Nas paredes, as pinturas de Vieira e de Arpad convivem, lado a lado, como desejava a pintora, mas agora também com as de outros artistas. Nesta primeira fase, são quase três dezenas os nomes que se reúnem: Álvaro Lapa, Ana Hatherly, Ângelo de Sousa, Dominguez Alvarez, Fernando Marques Penteado, Lourdes Castro, Mário Cesariny, Sonia Delaunay, entre outros.

Logo ao início, duas crisálidas de Bruno Pacheco dialogam com Le Retour d’ Orphée, quadro que Vieira pintou depois da morte de Arpad. Mais à frente, havemos de descobrir desenhos e pinturas do artista húngaro, que teve nas borboletas um dos temas recorrentes da sua obra. Ou aquele desenho em que retrata a mulher no meio de tecidos, transformando-a quase num “bicho”, nome carinhoso pelo qual a chamava. “O tema da metamorfose é intemporal”, afirma Faria, sublinhando o interesse, nesta mostra, pelas mudanças dos corpos, de Ovídio aos dias de hoje.

O têxtil revela-se outro dos temas que vai atravessando a exposição, em obras como as de Robert Rauschenberg, Ana Jotta, Fernanda Fragateiro, Mumtazz, Tomba ou os estudos para tapetes de Vieira da Silva (uma das raras vezes em que assina com o apelido do marido, MH Szenes) ou, ainda, o vestido bordado a seda, oferecido pela pintora a Lourdes Castro (também encontramos uma serigrafia de Lourdes Castro oferecida a Vieira, em 1974). “A perceção de que as coisas têm uma textura parece-me fundamental. O material é muito importante para nos ligarmos à vida. Acredito que as realidades virtuais nos museus são desviantes e podem pôr em causa a apetência para apreciar uma pintura. O museu tem de ser político, não podemos ficar só no plano do estético”, defende o diretor.

“O museu convoca uma ideia de escuta muito forte e isso liga-nos aos outros”, continua Nuno Faria, enquanto fala, entusiasmado, de cada uma das peças expostas nas paredes. Montada “como um poema com rimas”, 331 Amoreiras em Metamorfose permite fazer cruzamentos de artistas, mostrando alguns dos seus trabalhos mais conhecidos e simultaneamente possibilitando inesperadas descobertas. Também por isso, em todos os cinco momentos da exposição, haverá visitas guiadas por alguns dos que aqui estão representados – para que, nesta trama, ninguém perca o fio à meada.

CICLOS

São cinco, os momentos da exposição 331 Amoreiras em Metamorfose

Até 9 fevereiro
[ I ] O Tecido do Mundo
Lançamento dos temas principais do projeto expositivo: “a metamorfose, a árvore, a ressonância do arcaico no contemporâneo ou o arcaico como contemporâneo, a fusão entre humano, vegetal e animal, a transmissão oral (e o papel das mulheres nessa tarefa de transmissão e de poetização da memória), a tematização do têxtil na pintura e no desenho, assim como a forma como o têxtil é cada vez mais assumido como central na produção artística contemporânea”.

13 fevereiro a 4 maio
[ II ] Uma Estreita Lacuna
A relação, por vezes metamórfica e fusional, entre a palavra e a imagem, a relevância do texto e a relação texto-têxtil: “A importância crucial do poético para as nossas vidas. O mesmo é dizer: da escuta. Estar à escuta do mundo e dos outros”.

8 maio a 13 julho
[ III ] Histórias de Bichos da Seda
Variações de metamorfoses: “a magia, os transformismos, os romantismos e o animismo”.

17 julho a 28 setembro
[ IV ] Notas sobre a Melodia das Coisas
São três, os motes: oralidade, auralidade e coralidade (de coral e de coro), ou “a cor, o silêncio dos objetos compostos em natureza-morta”.

2 outubro a 31 dezembro
[ V ] Ascensão: Vers la Lumière
“Uma montagem ao branco”, com pinturas alvas, muitas dos últimos anos de Vieira da Silva. O título, evocativo da sua última pintura, dá o tom para “um momento marcado pela litania, o lamento, mas também a beleza do reencontro para além da vida”. “A condição póstuma da arte é uma das suas mais fortes vocações e condições. Embora, muitas vezes, o esqueçamos”, aponta o diretor do museu, Nuno Faria.

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