entrevista
Victor Hugo Pontes
"Se quero ter uma dança com humanidade, tenho de perceber que humanidade é esta que me rodeia"
Uma semana após a estreia nacional marcada para Aveiro, Capital Portuguesa da Cultura, Victor Hugo Pontes leva ao Centro Cultural de Belém, a 13 e 14 de dezembro, Há qualquer coisa prestes a acontecer. Esta nova criação propõe-se celebrar os 50 anos do Portugal livre olhando para o futuro, com o intuito de preservar essa liberdade de tudo quanto possa colocá-la em risco. O coreógrafo fala sobre o novo projeto, a sua forma de trabalhar, e afirma que todos os dias sente o privilégio de poder fazer o que gosta.
Muitas pessoas defendem que a liberdade é o valor supremo da vida humana. De que forma a dança pode ser um exercício de liberdade, e em concreto nesta sua nova coreografia?
O que sinto é que esta coreografia surge num contexto de liberdade, mas é sobretudo uma dança de libertação. Uma celebração da libertação. A nossa liberdade está sempre condicionada numa relação espaço-tempo. O que pretendo com estes 17 intérpretes é que eles se sintam livres enquanto decorre o espetáculo. Gosto muito de falar da palavra “jogo” quando crio uma coreografia. Acho que tem a ver com o meu percurso no teatro. O que pretendo, além de todas as coisas fixas, é que exista um espaço onde eles possam jogar. Não no sentido de liberdade total: hoje fazem uma coisa, amanhã outra. Na realidade, existe uma estrutura, e dentro dessa estrutura podem ir jogando de forma diferente. Foi muito importante para mim perceber com os bailarinos que estávamos a fazer uma peça cujo tema era a liberdade e que eles tinham de ter esse espaço.
O título desta nova criação glosa um verso de José Mário Branco no tema Inquietação. Este sentimento de desassossego não será uma condição intrínseca às nossas vidas com os outros?
É sempre, mas há contextos mais propícios a isso que outros. Sinto que vivemos um momento politicamente difícil. Essa inquietação está hoje muito mais presente, porque vivemos sob uma forma de ameaça, o mundo todo. Acabámos de ter eleições, e Trump volta à Casa Branca.
Um leigo dirá que coreografar uma massa de corpos representa um maior desafio do que fazê-lo para um grupo mais restrito. Qual é para si o grau de verdade desta generalização?
É mais difícil coreografar para mais gente, porque acima de tudo trabalho com pessoas, com bailarinos, que não são máquinas. Aqui, são 17 pessoas com especificidades muito distintas; com egos muito distintos; gerir uma equipa de 17 pessoas ou gerir três é muito diferente. É um grande desafio gerir este grupo de bailarinos, também pela condição em que estão: uma peça que tem por ponto de partida trabalharmos através da nudez como ponto máximo de libertação, em que existe uma enorme generosidade de todos eles: tem sido incrível todo o processo de criação, o pulsar deste coro em cena, essa presença e a sua expressão.
O corpo nu é uma figura de estilo há muito empregue pela dança. Em Há qualquer coisa prestes a acontecer surge “um corpo de baile” despido em palco. Esta opção também se liga ao conceito de liberdade que pretende explorar nesta coreografia? Um corpo nu é uma figura mais livre porque despida de signos que aprisionam a sua identidade específica?
Acho que é isso. A opção foi a de tirar tudo o que é acessório; tudo o que pudesse dar indicações de classe social, de estatuto, de tudo. Pormo-nos num plano igualitário: somos todos feitos de carne, ossos, veias, sangue, cabelos. Criar esta massa humana sem que houvesse outra camada por cima, outras informações. A nudez é usada na dança há muitos anos, mas nas artes plásticas existe desde sempre. Isso tem sido também uma fonte de inspiração para mim, pois sou licenciado em pintura. A nudez faz parte da pintura e da escultura há séculos e séculos, e apeteceu-me voltar a esse lugar.
De trabalho em trabalho procura coisas diferentes nos bailarinos que traz para as suas criações, ou passaram a existir componentes específicas que se repetem?
Em cada projeto tento encontrar os intérpretes ideais para ele. Tenho feito projetos muito distintos, desde ter trabalhado com adolescentes (Margem, 2018) porque deviam ser eles a ter voz sobre o tema; ou recentemente no Corpo Clandestino (2022), em que trabalhei com corpos não-normativos, ou seja, que não correspondiam ao meu lugar de fala, e em que encontrei pessoas para quem aquele era, justamente, o seu. O que não quer dizer que não existam intérpretes frequentes nas minhas peças. No caso específico de Há qualquer coisa prestes a acontecer foi o momento de trabalhar com cúmplices com quem não colaborava há muito tempo. Para além de ter feito uma audição, em que escolhi grande parte do elenco, tenho esses intérpretes com os quais já havia trabalhado.
O que explica a centralidade de cidades como o Porto e Guimarães na produção e apresentação de dança contemporânea no nosso país?
Existe no Porto uma estrutura muito importante que é a Companhia Instável, que apoia muitos jovens criadores, e que antes se denominava de Núcleo de Experimentação Coreográfica, que foi de onde eu surgi. Sinto que existe uma comunidade muito forte da dança no norte do país. O festival GUIdance já tem um peso muito grande no panorama artístico nacional e o festival Dias da Dança veio trazer um fôlego gigantesco à dança, criando uma rede de espetáculos a norte.
O facto de a dança ser como a música, uma linguagem universal sem palavras, facilita a sua circulação pelo mundo?
Acho que facilita bastante e a prova disso é que a dança circula mais que o teatro. Mas também não considero que a dança seja uma linguagem universal. Entre Ocidente e Oriente os códigos são muito diferentes culturalmente. Mas sim, é mais global e chega a muito mais gente. A palavra assume um peso e uma importância determinante. A partir do momento em que não existem palavras há muito mais espaço para o espectador construir a sua própria narrativa, para se relacionar com aquilo que está a ver.
Quais são os requisitos mínimos no seu trabalho para começar a ensaiar com os bailarinos? Existe um momento do processo criativo em que se considera pronto para tal?
Toda a produção inerente a um projeto é um trabalho gigantesco e por vezes muito invisível, ao ponto de algumas pessoas que trabalham na área não terem consciência dele. Depois de conseguirmos os financiamentos, as condições logísticas, as salas de ensaios, penso que estou pronto quando chego ao estúdio, quando me encontro com os bailarinos. Estou disponível para aquelas pessoas, mas depois tem de se dar esse encontro. Para mim, é muito importante construir o coletivo. Trabalhar em cocriação com os intérpretes. Não chego com uma linguagem e começo a passar o movimento ou frases coreográficas. Lanço ideias ou temas e a partir daí começamos a construir. Inicialmente, eu com eles a trabalhar fisicamente, porque me interessa perceber a energia dos próprios bailarinos. Dançar com eles, não ser um outsider que se limita a ver de fora. Depois lentamente começo a afastar-me e começo a vê-los. Acho que nesse momento começo a estar pronto.
Consegue extravasar do circuito fechado que o trabalho artístico e intelectual determina, para retirar do mundo e do quotidiano um conhecimento empírico?
Confesso que sou um workaholic. Sou viciado no meu trabalho e vivo numa ânsia de aprender coisas. Vivo na angústia de não conseguir aprender tudo, de estar nos sítios todos, de responder a todas as solicitações. Acabo ficando circunscrito às pessoas com quem me vou relacionando. Mas tenho tido a felicidade de encontrar projetos que me vão abrindo mundos. Quando faço um projeto de três anos num contexto social em sítios de Almada, Moita, Barreiro ou Marvila, aqui em Lisboa, vou para esses territórios e confronto-me com aquelas realidades. Quando trabalho com miúdos de instituições. Quando trabalho com pessoas não-normativas que me colocam todas as questões, não só de locomoção ou do olhar do outro. De certa forma vou alargando o meu mundo. E quando estamos a trabalhar não estamos só a dançar. Trocamos ideias, discutimos conceitos, ouvimos outros pontos de vista. Tenho tido a sorte de poder decidir que projetos quero fazer, com que realidades me quero cruzar. Tenho-me forçado a alargar o meu universo, estando mais consciente do que se passa no mundo em geral. Se queremos espelhar o mundo através da dança, temos de o conhecer. Se quero ter uma dança com humanidade, tenho de perceber que humanidade é esta que me rodeia.
A leitura da sua biografia artística deixa a ideia de que aproveitou todas as oportunidades que se lhe apresentaram. Foi mesmo assim que aconteceu?
Tentei aproveitar todas, mas algumas não consegui, embora não tenha arrependimentos. Nem sempre no meu percurso tudo foi facilitado. Ouvi muitos nãos. Algumas coisas não consegui fazer, também por não ser o momento certo. Gosto muito de trabalhar porque tenho muito prazer a fazer o que faço. Estar a criar este espetáculo, Há qualquer coisa prestes a acontecer, faz com que me sinta um privilegiado. Poder estar todos os dias num estúdio com mais de 17 pessoas (19 bailarinos no total, contando com os dois estagiários), a sentir a sua entrega diária.
Que tipo de inquietações pairaram sobre a estrutura de produção que fundou, a Nome Próprio, em mais de 20 anos de existência?
Ao nível do trabalho tem sido muito regular e contínuo, com vários convites como no caso deste espetáculo que partiu de uma proposta do Centro Cultural de Belém, apesar da estreia não ser em Lisboa, mas em Aveiro [a 6 de dezembro], por se tratar da Capital Portuguesa da Cultura. Mas houve momentos em que não recebemos apoio da Direção-geral das Artes e sentimo-nos um bocadinho desamparados. Nessas alturas foi mais complicado persistir e resistir. Não por falta de trabalho, mas pelas condições em que certos trabalhos foram feitos. Este projeto com um total de 19 bailarinos é gigantesco para uma estrutura independente. A logística que implica é imensa para uma organização que tem três produtoras, sendo que uma é estagiária. Os recursos humanos são escassos para o volume de trabalho que tenho. Gostava de poder ter mais gente a colaborar, podendo dar-lhes as condições necessárias.