Luís Miguel Cintra apresenta “Ai Amor sem Pés nem Cabeça”

Folhetos de cordel setecentista pela Cornucópia

Luís Miguel Cintra apresenta “Ai Amor sem Pés nem Cabeça”

A partir de folhetos de cordel, Luís Miguel Cintra construiu um espetáculo sobre o amor e as mulheres, mas também sobre uma Lisboa do quotidiano. Ai Amor sem Pés nem Cabeça – destemperado jogo de entremezes lisboetas é a mais recente produção do Teatro da Cornucópia, que completa, este ano, quatro décadas de atividade.

Fazendo uso das suas palavras, nesta “espécie de arca do tesouro ou de caixa de Pandora” que é o teatro de cordel português setecentista, que surpresas encontrou?

Quanto se começam a ler estas peças avulsas, reunidas por terem sido vendidas como teatro de cordel, descobrem-se, surpreendentemente, naturezas muitos diferentes: há textos litúrgicos, satíricos e de crítica social, poéticos, filosóficos e entremezes. São precisamente os entremezes que tornam mais conhecido o teatro de cordel, porque contêm, digamos, uma forma muito volante na sua expressão dramática. Outra grande surpresa está precisamente na ideia de teatro popular. Não há dúvida que o teatro de cordel é popular, mas os seus autores eram geralmente pessoas eruditas. Dai encontrarmos textos muito bem escritos e diálogos dramáticos espantosos do ponto de vista literário. As personagens, essas sim, são populares, e correspondem a uma imagem bastante reconhecível pelas gentes de Lisboa.

Como procedeu à seleção dos textos e construiu o espetáculo?

Confesso que não houve grande critério científico na seleção. Recorri à coleção da biblioteca da Gulbenkian, que digitalizou estes folhetos de cordel e, a partir de casa, fui lendo tranquilamente os textos e tomando nota daqueles que me pareciam mais engraçados ou que me prendiam a atenção. Acabei assim por fazer uma espécie de salada, casando até cenas de textos diferentes, como uma espécie de potpourri de coisas que se associam naturalmente umas às outras.

E o resultado é…

Um espetáculo sobre “os desastres do amor” (precisamente o título de um nosso anterior trabalho) e muito sobre as mulheres… Porque são as mulheres que estão no centro da vida, porque são as mulheres que os homens amam, porque são as mulheres que impelem os amores felizes ou não são felizes no amor…

Trata-se, portanto, de um espetáculo muito feminino…

Diria que é um espetáculo muito divertido, muito variado e é um “show” de representação das quatro atrizes que o protagonizam. Refiro-me à Luísa Cruz e à Teresa Madruga, atrizes excecionais e profundamente ligadas à minha carreira, e à Rita Durão e à Sofia Marques, que trabalham habitualmente aqui na Cornucópia. Elas são brilhantes e, citando uma frase que retirei da literatura de cordel, “a mulher é como o camaleão”, afirmo tratar-se da maior das verdades pela capacidade de inconstância e transformação que se reconhece à mulher. Essa frase ainda mais se aplica às atrizes, e, porque não, a estas em particular, que se desdobram, ao longo da peça, em múltiplas personagens e registos.

Voltando aos textos. Foi difícil selecioná-los, tendo em conta o extenso acervo da Gulbenkian?

Pela qualidade do material sim, por isso, o espetáculo é longo, contrariando até, de certo modo, o espírito da literatura de cordel. Porém, o prazer que nos deu trabalhá-lo e vê-lo em palco foi mais forte e, como prefiro pecar por excesso do que por defeito – por defeito é sempre mais preguiçoso –, decidimos aproveitá-lo o mais possível.

Luísa Cruz e Luís Miguel Cintra numa cena do espetáculo ©Luís Santos

 

Um material certamente capaz de surpreender o público…

Com certeza, porque acredito ir haver muita gente a descobrir o manancial que existe na literatura de cordel setecentista. Há milhares de textos muito bons de literatura dramática portuguesa que foram desprezados, o que, aliás não surpreende, porque Portugal é assim…

Como escolheu o título?

Vem de uma peça – da qual, por sinal, não aproveitámos nenhum diálogo – que se chama Amor sem Pés nem Cabeça. É um daqueles “disparates” (que há muitos) sobre a maneira como se tecem os casamentos e como as pessoas se comportam dentro das relações amorosas numa sociedade de burguesia pequenina que se faz passar por gente fina, muito característica do final do século XVIII. Àquele título, acrescentei um “ai” que, no fundo, transmite aquilo que de pessoal coloquei ao serviço da peça. Ou seja, uma certa melancolia sobre a vida e as infelicidades de quem não consegue no meio de complicações mais ou menos ridículas fazer a vida que quer e ser feliz. Apesar de ser um espetáculo muito engraçado, tudo isso está também na peça, e acaba como que contido nessa interjeição que antecede o título.

Refere que alguns dos textos parecem estar à espera de ser transformados em “teatro de novos tempos”. Este espetáculo é o resultado dessa transformação?

Sim. Antes de mais porque não se trata de uma reconstituição histórica da vida na Lisboa do século XVIII. Há uma brincadeira constante com a atualidade, tanto que, numa coisa que me é muito grata fazer, exploro o anacronismo do ponto de vista cénico, nomeadamente através da cenografia e do guarda-roupa. O que representamos através destes textos de época acaba por ser o contemporâneo, o que demonstra quão livre é este material.

É uma relação diferente daquela que se tem com os clássicos?

No teatro de cordel, o prazer passa por descobrir ser melhor do que aquilo que pensávamos, sem nunca provocar a sensação de não estarmos à altura dos textos. A relação com os clássicos é diferente, é um bocadinho traiçoeira. Sou de um tempo em que os clássicos atemorizavam as pessoas, impunham respeito, davam medo e assustavam pela sintaxe difícil… lembro, quando traduzimos e encenámos Ricardo III, no princípio da companhia, considerarmos uma ousadia. Hoje, tudo se banalizou pois a relação com os textos é muito mais superficial. Já não se exige a intimidade com o clássico, pelo contrário, o texto ou o autor funcionam muitas vezes como um mero aval ou um selo de qualidade.

Há, então, uma imensa liberdade neste teatro de cordel…

A arte é por definição o terreno da liberdade, abre portas ao mundo e na cabeça dos outros. Este teatro também corresponde a isso, ainda mais hoje, numa altura em que, por imposição das lógicas do mercado, a arte está a deixar de ser livre.

Neste “destemperado jogo de entremezes lisboetas”, que Lisboa se reconhece na peça?

Há vários exemplos ao longo da peça, mas sublinharia um local recorrente nos textos: o Cais do Sodré. Na Lisboa setecentista aquele era um local de grande centralidade, com comércio, com barraquinhas de comes e bebes, com gente de toda a índole. Em suma, era um verdadeiro microcosmos da cidade. Hoje, é pouco mais que um local de passagem, e não serão poucos os que venham a pensar como o Cais do Sodré daqueles tempos é tão semelhante ao Centro Comercial Colombo dos nossos dias.

Porquê esta peça quando a Cornucópia completa 40 anos de teatro?

Depois de termos feito tantas obras-primas, tantos grandes textos da história do teatro, porque não fazer peças portuguesas que são secundárias neste nosso aniversário?

O teatro continua a ser um prazer?

Prescindi de muito para fazer teatro durante quase toda a vida. Tenho 60 e tal anos e o privilégio de não ter dado conta de aqui chegar. E tudo porque se faz teatro para nunca deixar de ser miúdo. Fi-lo sempre pelo prazer de brincar, mesmo quando as brincadeiras se tornaram muito complicadas intelectualmente.