teatro
Mónica Calle
'A Boa Alma' na Zona J
Mais de 20 anos passados sobre a chegada ao Cais do Sodré, Mónica Calle prossegue o seu percurso de atriz e encenadora no Bairro do Condado, situado na Zona J de Chelas. À Casa Conveniente acresce o nome Zona Não Vigiada. Na nova “Casa”, uma das criadoras mais estimulantes do teatro português “recomeça” e abre portas com o “companheiro de viagem” dos últimos anos: Bertolt Brecht. Em A Boa Alma [de Sesuão] surge a solo, com o texto reescrito por Luís Mário Lopes e letras e música original de JP Simões.
Do centro para a margem. Ou do Cais do Sodré para a Zona J de Chelas. Como foi esta migração?
O objetivo de ir para a Zona J remonta a 2009 ou 2010, consequência do impacto a nível artístico, profissional, e até pessoal, de um trabalho que desenvolvi com reclusos do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus. Simultaneamente, o Cais do Sodré mudou, transformou-se, e começou a deixar de fazer sentido continuar por lá. Quando me apercebi disso, por mais doloroso que tenha sido, procurei a Câmara Municipal de Lisboa no sentido de conseguir um espaço num bairro social da Zona J. Enquanto o processo se ia desenvolvendo, senti a necessidade de parar e de repensar o meu caminho. Foi um par de anos muito duro e difícil, mas absolutamente necessário. Em dezembro do ano passado, fiz um ciclo de espetáculos em vários locais da cidade a partir de Os Sete Pecados Mortais de Brecht. Esses espetáculos traçaram uma cartografia – que me foi necessária para me libertar do Caís do Sodré – e conduziram à Boa Alma que agora inaugura o espaço na Zona J.
Trazer um projeto cultural para uma zona limítrofe, e tão estigmatizada como um bairro social em Chelas, é mais um risco que assume no seu percurso?
O encontro com uma série de pessoas, com quem trabalhei em Vale de Judeus, ligou-me ao bairro. Ali, estabeleci relações de família e amizade. Aos poucos percebi, à semelhança do sucedido no Cais do Sodré há 20 anos, que estava num sítio onde poderia desenvolver um trabalho com consequências. Para mim e para as pessoas em redor. Sinto isso desde que a Casa Conveniente ali chegou; sinto isso no modo como me penso ao nível pessoal e artístico. Se a Casa Conveniente sempre se deixou influenciar pelo Cais do Sodré, esta Casa Conveniente/Zona Não Vigiada está a ser influenciada pela Zona J. É claro que tenho a noção do risco. Sei que nos espera um longo e moroso caminho até conseguirmos inscrever este novo espaço na cidade. Mas quero muito contribuir para dar centralidade à margem, perceber como é que se consegue colocar um ‘bairro-ilha’ nessa centralidade através de um projeto artístico. Vai levar tempo, há que quebrar estigmas, superar medos, e sei que vai ser necessário muita insistência. Mas, vamos conseguir.
A Casa Conveniente/Zona Não Vigiada será, necessariamente, um projeto diferente da Casa Conveniente?
É a Casa Conveniente, é o nosso projeto, mas com novas pessoas e num novo sítio. É recomeçar tudo de novo. A memória e o lastro da Casa Conveniente foram, no fundo, trazidos nesta viagem que fizemos em dezembro passado, e que quebrou um tempo de inatividade. Na Zona J estou a trabalhar em circunstâncias completamente diferentes, logo, sei que o meu trabalho também se vai alterar, se vai transformar, mas olho para esse desafio – e risco – como algo bom.
Entre o Cais do Sodré de 1991, ano em que surgiu a Casa Conveniente, e a Zona J de Chelas, hoje, que diferenças e semelhanças encontra?
Há semelhanças, apesar das muitas diferenças. O Cais do Sodré naquele início dos anos 90 era completamente diferente daquilo que é hoje. Era, também, uma zona marginal. Houve desconfianças ao início, mas depressa se esbateram quando as pessoas da zona se aperceberam que a natureza do meu trabalho era desenvolver um projeto artístico. Sei que valorizei e dignifiquei a vida de muitas pessoas. O trabalho que vou desenvolver na Zona J vai, por um lado, destruir um rol de preconceitos e estigmas que existem no bairro. É curioso, mas às vezes sinto-me como se estivesse numa aldeia, numa comunidade que cultiva os afetos e a entreajuda. As pessoas estão felizes por estarmos ali, por estarmos a erguer um projeto que pode transformar a ideia que a cidade tem do bairro, e o inverso. Quero, e desejo, criar movimentos que vão de fora para dentro e de dentro para fora, por isso, esta Casa Conveniente/Zona Não Vigiada é, acima de tudo, um espaço de comunhão entre pessoas.
Qual a importância do programa municipal BIP / ZIP no nascer do projeto?
A Câmara apoia-nos de duas formas. Pelo arrendamento por valor simbólico do espaço e através do programa BIP/ZIP, tendo em consideração o envolvimento em diversas atividades desenvolvidas da comunidade local em todas as suas diferentes valências. A reconstrução do espaço, que é uma loja, tem sido feita por pessoas que vivem no bairro, por exemplo. O objetivo é que essas pessoas sejam parte do projeto.
Este novo espaço estreia-se com A Boa Alma que, citando-a, vem na sequência de um percurso inverso de Heiner Müller, a quem dedicou um ciclo, para Bertold Brecht…
Durante o tempo em que tive que fazer esta migração do Cais do Sodré para Chelas, Brecht foi o autor que me acompanhou. Ele é o autor do teatro absolutamente total. Através dele, e com ele, estou a conseguir recomeçar. O Müller conduziu-me ao Brecht, porque foi o dramaturgo a quem dediquei um ciclo, que me acompanhou durante o trabalho em Vale de Judeus e, consequentemente, me conduziu até Chelas. Simultaneamente, foi o Müller que me fez descobrir, Brecht. Müller continuou-o, transformando-o.
Porquê fazer esta peça a solo?
Como é um recomeço, preciso de me recolocar enquanto intérprete. A Boa Alma permite-me falar do passado, do futuro, do sítio onde estou. Estreei-me no Cais do Sodré com A Virgem Doida, um solo, e quero estrear-me na Zona J também com um solo.
Optou por uma versão reescrita (por Luís Mário Lopes) e por novos temas musicais (de JP Simões)…
Mas, seja como for, é um Brecht. Com “a boa alma” da Mónica, do JP Simões e do Luís.