João Salaviza

Montanha

João Salaviza

A primeira longa-metragem de João Salaviza chegou às salas de cinema a 19 de novembro. O jovem realizador, mais conhecido pelas curtas-metragens premiadas Arena e Rafa, estreou o filme Montanha no Festival de Veneza onde foi muito bem recebido pela crítica. Falámos com o cineasta a propósito deste novo projeto.

Montanha é a sua primeira longa-metragem, os prémios obtidos com as curtas Arena e Rafa e o reconhecimento da crítica foram decisivos para a realização deste filme e concretização do projeto?

O Manoel de Oliveira disse, sobre esta questão do reconhecimento e dos prémios, algo que subscrevo: a única coisa para a qual os prémios servem, para além do seu efeito simbólico, é dar ao realizador condições para poder continuar a filmar em liberdade. Há um sistema relativamente perverso de legitimação de um determinado realizador em detrimento de outro, que é bastante injusto a maior parte das vezes. Para fazer esta longa-metragem os meus produtores serviram-se destes prémios para conseguir financiamento e isso permite-me acima de tudo, tempo e meios, mas sobretudo tempo para filmar da maneira em que acredito.

A adolescência é normalmente uma etapa de socialização, onde as amizades têm muita importância. No entanto, neste filme e nos anteriores os personagens principais são jovens, mas a solidão é uma das suas principais características. Porquê?

Montanha é um filme sobre um rapaz, de 14 anos, David Mourato, não é um filme sobre a adolescência. A mim interessou-me muito filmar este lado angustiante e muito violento que é a passagem da infância à idade adulta. O momento em que os últimos vestígios da infância chocam com a chegada dura de uma maturidade precoce. O filme nasce de dois desejos, por um lado tentar materializar algumas memórias da minha infância, que não são necessariamente factos que eu reproduzo no filme, mas sim a memória de uma experiência sensorial da adolescência, de um tempo meio flutuante de deambulações e errâncias pela cidade. Desta sensação de não saber onde se pertence e para onde se quer ir. Por outro lado, um segundo desejo que eu cruzo com este, é o de filmar o David e perceber até que ponto é possível fazer um filme em que um corpo em transformação conta a sua própria história. Queria muito que o filme permitisse a relação intensa da câmara com uma personagem. Nesse sentido é um filme muito clássico, quase como o Rebel Without a Cause com o James Dean, que é uma referência para mim, e onde a câmara não consegue largar a sua personagem do princípio ao fim.

Este é um filme que fala da transição da adolescência para a idade adulta, mas também reflete a crise que se vive no país (a mãe que foi trabalhar para o estrangeiro e que deixou para trás o filho, a escola que não consegue dar resposta, o hospital velho e obsoleto…). Há um paralelismo entre estes dois tipos de crise?

Eu não queria que o contexto social se impusesse sobre uma angústia que é muito mais espiritual e que é universal a todos os adolescentes, num determinado momento. Mas, ao mesmo tempo, há imensos vestígios de um país que desaba e que estão presentes, não de uma forma evidente, mas que são exatamente esses que identificaste. O que me interessava é perceber como é que uma coisa tão violenta como esta crise se pode manifestar nas coisas mais simples. Como é que uma situação tão doméstica, tão ínfima, tão particular da vida de duas pessoas, pode refletir quase um país inteiro. Achei isso mais interessante do que filmar Portugal a partir de um helicóptero, ou refletir o país através das notícias no telejornal.

Porquê a escolha de atores não profissionais? O objetivo é criar um maior realismo?

Para mim um filme só nasce verdadeiramente no momento em que sei quem quero filmar, e quando de alguma forma me apaixono pelas pessoas com quem vou trabalhar. Não faço de todo uma separação entre trabalhar com atores ou com não atores, porque o meu trabalho enquanto realizador é transformar em matéria de cinema a natureza das pessoas que quero filmar. Mesmo quando filmo atores, como a Maria João Pinho ou Carloto Cotta, faço-o porque me interessam enquanto pessoas. Acho que os grandes atores da história do cinema, que são poucos, são aqueles que conseguiram incorporar a sua presença de vida em todas as personagens que fizeram, fossem personagens históricas ou contemporâneas. Marlon Brando é sempre arrogante, seja no Apocalypse Now, no Último Tango em Paris ou no Há Lodo no Cais. Há qualquer coisa que se manifesta na sua vida e que ele põe nas personagens.

Qual a expectativa que tem com este filme, uma vez que é o primeiro a estrear em sala sem estar associado a outros trabalhos?

Um filme visto numa sala de cinema continua a ser luz projetada numa parede, é um princípio simples. Em sala há uma componente energética, espiritual e, ao mesmo, há um reflexo. Um filme só existe verdadeiramente quando é visto. Tenho a maior felicidade de saber que o filme vai ser visto em algumas salas de Portugal, mas também tenho plena consciência, se calhar um pouco pessimista, que há um certo tipo de cinema que continua a ser uma atividade minoritária. Mas a literatura no tempo do Fernando Pessoa também era uma atividade absolutamente minoritária, até porque grande parte da população era analfabeta.

Já há sucessor para Montanha?

Sim. O próximo filme que vou fazer, em co-realização com Renée Nader, será com os Krahô, um povo indigena que habita o cerrado brasileiro no estado de Tocantins.