entrevista
Anabela Mota Ribeiro e André e. Teodósio
'Estar em Casa' no São Luiz
Ao longo do fim de semana, de 29 a 31 de janeiro, o Teatro São Luiz é, literalmente, uma casa “ocupada” para desassossegar. A liderar os “ocupas” estão a jornalista Anabela Mota Ribeiro e o ator e encenador André e. Teodósio, mentores desta grande operação que vai envolver mais de uma centena de artistas das mais variadas áreas e, espera-se, alguns milhares de visitantes. O objetivo é tornar um dos teatros mais emblemáticos da cidade numa casa aberta a todos onde tudo, mas mesmo tudo, se pode passar. Anabela e André explicam…
Como é que nasceu a vontade de promover esta ‘’okupação’’?
André e. Teodósio: O projeto partiu de uma ideia da Anabela que, na sequência do trabalho que tem desenvolvido nas entrevistas em tom intimista a algumas personalidades, idealizou um evento cujo tema fosse Estar em Casa. Entretanto, convidou-me, e em conjunto fomos elaborando um programa que conjugasse o tema numa ideia comum de programação.
Portanto, uma ideia da Anabela concretizada a dois…
Anabela Mota Ribeiro: Sim. Eu sou uma pessoa muito doméstica, mas por domesticar [risos]. E pretendo manter-me indómita tanto quanto possível. Apesar de gostar daquilo que não se deixa domesticar, preciso de reconhecer a domesticidade, logo necessito de ter um sentimento de ‘casa’…
Necessidade que transparece no seu percurso de jornalista, de entrevistadora…
AMR: Exato. O meu interesse pelas pessoas, pelo que elas são, pelo ‘interior’, levou-me a pensar neste Estar em Casa.
E o projeto estava já idealizado para o Teatro São Luiz?
AMR: Vivo em Lisboa desde 1999, e desde essa altura, sinto o São Luiz como uma ‘casa’. Aqui, neste espaço e com estas pessoas, vivo, por afinidades, com esse sentimento de ‘casa’. Por isso, decidi apresentar o projeto à Aida Tavares [diretora do São Luiz Teatro Municipal], no sentido de criar um evento que nos fizesse viver o teatro como se fosse uma casa. Teatro esse que iria ser aberto à cidade e, num cruzamento dinâmico, traria a cidade e as vidas da cidade para dentro de casa.
E como é que lhe ocorreu convidar o André para o projeto?
AMR: Foi logo na primeira reunião que tive com a Aida que pensei no André. Daí, considerar que só por acaso a ideia é minha. Sinto que o André é tão autor quanto eu.
Mas, porquê o André?
AMR: Há uns tempos fiz uma entrevista ao André para o Público a que dei o título A singularíssima cabeça de um alien barroco. Foi precisamente essa “cabeça”, o ser uma pessoa tão original e capaz de trazer o inesperado à minha vida e àquilo em que penso, que me fez convidá-lo de imediato. Pessoalmente, gosto de ser desassossegada, e o André traz a qualquer vida e a qualquer projeto esse desassossego.
Que desassossego trouxeste tu, André?
AT: Acho que desassosseguei no sentido em que este projeto é absolutamente inédito na minha vida. Digo-o porque uma coisa é trabalhar com o Teatro Praga (com quem estou há 20 anos) e outra é trabalhar com a Anabela, alguém que conheço e por quem nutro uma enorme admiração, mas com quem não tinha uma relação de tanta proximidade. Porém, este trabalho reflete uma enorme cumplicidade, uma afetividade profunda, embora tenhamos estratégias e modos diferentes de fazer as coisas. Digamos que, sou visivelmente louco, mas a Anabela, que parece muito organizada, é ainda mais louca do que eu [risos].
Estar em Casa reúne música, dança, teatro, pensamento, conversas, performances… enfim, praticamente tudo aquilo que possamos imaginar. Como é que entre os dois geriram um projeto como este, nomeadamente, quanto às escolhas da programação?
AT: É, de facto, um evento muito complexo e que só a capacidade da Anabela em montar as peças do puzzle tornou possível conceber. Como artista, tenho um lado crítico assente na distância que cultivo sobre projetos que percebo serem uma ameaça àquilo que é o meu projeto artístico; enquanto a Anabela, como jornalista, como teórica, consegue formar critérios supercomplexos e muito bem definidos, superando aquilo que possa ser entendido como um ataque à sua própria identidade e labor. Para mim, esse equilíbrio foi muito positivo e permitiu que o programa tenha toda esta diversidade.
AMR: Foi muito fácil escolher os nomes que vão participar. Digamos que nesta panóplia infindável, estão, para usar um título de Goethe, as nossas Afinidades Eletivas. Para fazer esta Casa, foi preciso desarrumar e voltar a arrumar, deixar entrar o ar, permitir até algumas correntes de ar… O resultado está nas pessoas em quem pensámos, pessoas que vão sair de suas casas para vir a esta Casa, que vão vir para desassossegar e, espero, para serem também elas desassossegadas.
A Casa instala-se, portanto, em todos, ou quase todos os espaços do Teatro…
AT: Porque a ideia do que é uma casa torna-se transversal a toda a programação. Não é só o seio familiar que está em destaque, é toda uma diversidade de universos capazes de caber no espaço doméstico. Para isso, e mediante o orçamento e algumas limitações logísticas, todos os espaços do Teatro São Luiz estão abertos. Vejo a programação como uma refeição etíope, com as várias porções e tipos de comida, em que se vai experimentando aqui e ali. Nós fornecemos os ingredientes e as pessoas são livres de provar aquilo que mais lhes apetece.
De entre os “ingredientes”, temos alguns nunca provados, como as performances, o concerto de Sérgio Godinho com Filipe Raposo…
AT: Isso é uma experiência com comida molecular [risos]…
E outros que estão devidamente experimentados, como os espetáculos de Mónica Calle, do Teatro Praga ou do Cão Solteiro…
AT: Quisemos trazer alguns espetáculos que foram falados, mas não muito vistos. No fundo, é como se estivéssemos a sublinhar a necessidade de repor e não estar constantemente a apresentar o novo. Dentro da poética de ‘casa’ que norteia o projeto, escolhemos alguns espetáculos já experimentados, porém, cerca de 80% da programação são coisas novas.
AMR: Usando a metáfora da casa, o reencontro com esses espetáculos é como olhar repetidamente pela janela e um dia, porque a luz incide de uma outra maneira, descobrimos coisas que ainda não tínhamos visto. Confesso que a apetência voraz pelo novo irrita-me, e talvez por isso defendo um teatro de reposições em Lisboa.
Para além de comissários, vão ser também espetadores? Já fizeram as vossas escolhas?
AT: Confesso que gostaria de ver tudo, até porque não sabemos de nada, demos carta branca a todos os convidados… Mas, o mais certo, é não conseguir ver nada. O que quero mesmo é ver as pessoas aqui, e ir percebendo aquilo que os espetáculos, as conversas, as aulas ou os debates vão desencadeando em quem assiste e no ambiente desta Casa…
AMR: O verdadeiro espetáculo vão ser, precisamente, as pessoas.