António Pires

Uma conversa sobre "Cimbelino" de Shakespeare

António Pires

Imogénia, filha do rei Cimbelino da Britânia, casa com Leonato, apesar do pai pretender uni-la ao seu enteado, Cloten. Algo que, esclareça-se, interessa à viperina Rainha, mulher desejosa de poder absoluto. Entretanto, Leonato é proscrito e parte para Roma. No caminho, cruza-se com o italiano Joaquim que coloca em dúvida o amor e a fidelidade de Imogénia, prontificando-se a provar que no mundo não há mulheres capazes de votar tamanha virtude a um homem. Está assim lançada a teia para muitos enganos e desenganos que preenchem esta comédia de William Shakespeare que António Pires decidiu levar à cena, a partir de 3 de agosto, nas Ruínas do Carmo. Alguns dias depois da estreia, no Festival de Almada, estivemos à conversa com o encenador.

Este é um regresso a um velho conhecido, Shakespeare…

Verdade. É um daqueles autores de sempre. Comecei por fazer um Romeu e Julieta na Cornucópia e, ao longo dos anos, tenho voltado inúmeras vezes a essa peça em exercícios com alunos… Adoro-a! Mais tarde, fiz o Sonho de uma Noite de Verão e uma espécie de sequela escrita pela Luísa Costa Gomes [Comédia de Desenganos]. E até já fiz os Sonetos. Agora, eis-me chegado ao Cimbelino.

Precisamente uma peça que parece ser um pout pourri de todas as outras peças de Shakespeare. Aliás, na folha de sala do espetáculo falas de “um jogo de memória” que não se limita apenas ao universo shakesperiano…

Isso é muito, muito interessante nesta peça. Parece que Shakespeare vai buscar às outras os elementos deste enredo e, ao mesmo tempo, à tradição popular, a Boccaccio e a Holinshed. Para intensificar esse jogo de memória com o público recorremos ainda à música, à pintura, à escultura clássica. Citamos Picasso, Velázquez, Caravaggio… A peça presta-se especialmente a esse jogo.

Falavas de Romeu e Julieta, e essa é uma das peças que parece mais evidentemente citada em Cimbelino e que, inevitavelmente, todos vão reconhecer…

Essa salta à vista! [risos] Mas, uma das razões porque escolhi esta peça não foi só por causa desse jogo de memória, de parecer quase um compêndio de todas as peças de Shakespeare. Aquilo que é particularmente interessante é o formato das cenas: são curtas, nada reflexivas, contrariamente àquilo que é mais comum em Shakespeare…

Até os monólogos rareiam…

Tem alguns, mas são muito mais de ação, ou seja, são mais condutores das incidências do enredo do que de caráter reflexivo.

E há também um modo quase vertiginoso na gestão do espaço e do tempo, não é?

Sem dúvida. Em Cimbelino, parece que as cenas começam com o conflito já instalado e apetece-me dizer que a escrita é quase cinematográfica, cheia de elipses. Repara na panóplia de espaços: numa cena estamos na Britânia, noutra já estamos em Roma, e quando damos conta, a cena seguinte já se passa num porto em Gales ou no campo… há no fundo uma destruição do tempo real e a invenção de um tempo teatral. É, de facto, um texto revelador de uma liberdade imensa.

Se pensarmos que Cimbelino é uma das últimas peças de Shakespeare [terá sido escrita entre 1608 e 1610], pensas que o autor se sentia absolutamente livre para poder brincar com as convenções?

Uma coisa parece certa: a julgar por alguns personagens, especialmente Belário, Shakespeare estava zangado com a Corte. A rutura com as convenções do teatro talvez seja reflexo da idade. Há coisas curiosíssimas: a Rainha, por exemplo, chega a dada altura e desaparece [risos]. Quando estávamos a trabalhar o texto, a Luísa Costa Gomes pergunta-me: “mas o que é que lhe aconteceu?”. Até que percebemos que, simplesmente, morreu.

Outra das curiosidades nesta peça é que, de certo modo, nenhum dos personagens é, propriamente, uma boa pessoa

Por isso, nota-se um imenso pessimismo nesta comédia. Diria que é uma peça sobre gente horrível numa Corte corrompida, esquecida de quaisquer valores, agarrada aos vícios e ao dinheiro. E, talvez por isso mesmo, aquilo que é trágico torna-se divertido. Em Cimbelino há todo um conjunto de cenas dramáticas que, imprevisivelmente, são desmontadas pela comédia.

Como, a exemplo, a última cena da peça…

Toda ela muito rápida, tal qual o último episódio de uma novela [risos]. Ou seja, Shakespeare desfaz todos os enredos numa cena curta, tão hilariante que mesmo as personagens de maior pendor trágico se tornam engraçadas. É genial! Como gosto muito de fazer comédia, gosto muito de rir e divertir, quase que diria que sempre ambicionei encenar Cimbelino por causa dela.

Este espetáculo vai ser apresentado ao ar livre, nas Ruínas do Carmo, o mesmo cenário onde há uns anos encenaste o Romancero Gitano de Lorca. É estimulante para ti fazer teatro num local como este?

Fazer teatro nas Ruínas do Carmo é um prazer. Pelo sítio, pela acústica, pela organicidade daquela pedra, pelo céu enorme de Lisboa. Depois do Romancero Gitano prometi repetir a experiência e vi nesta peça o texto ideal para este regresso. Felizmente, o diretor do Museu Arqueológico do Carmo concordou e pensamos que o espetáculo é uma excelente maneira de assinalar os 400 anos da morte de Shakespeare.

O espetáculo junta aos alunos da ACT alguns dos teus atores habituais, nomeadamente o Adriano Luz, o Ricardo Aibéo e a Rita Loureiro, para além, claro está, dos atores da companhia. Foi um casamento feliz?

Penso que sim. Por um lado, os alunos permitem que possa fazer uma peça como esta, com um elenco numeroso. E para eles, como acredito que o objetivo destes miúdos não deve ser sair da escola, arranjarem um agente e meter-se a fazer castings, creio que é importante lembrá-los que, acima de tudo, têm de ser artistas. Ao lado dos atores da companhia e dos meus cúmplices de sempre – o Adriano, o Aibéo e a Rita – é possível transmitir-lhes isso mesmo. E eles só têm a ganhar.

No fundo, quando falas em lembrá-los de ser “artistas” é dar-lhes algo mais do que um papel numa produção profissional…

Isso mesmo. Ao partilharem esta cumplicidade entre encenador, atores e técnicos, os miúdos percebem que o trabalho de ator passa muito por viver em comunidade, uma comunidade artística que partilhou experiências, ligações, referências. E que, muito importante, discute as coisas.

E para os teus “cúmplices”. Como é a experiência de estar a trabalhar com atores em formação?

É muito interessante e curioso, porque muitas vezes ia percebendo que, tanto o Adriano como a Rita, olhavam para as fragilidades dos mais novos e viam-se obrigados a dar ainda mais, como se eles próprios saíssem de um modo de conforto. Isso permitiu momentos de uma enorme frescura, muitas vezes só possíveis quando se dá a junção com gente mais nova e sem experiência.

A seguir a Cimbelino, podes avançar qual será o teu próximo projeto?

Será no Teatro do Bairro, com a companhia, e terei ao lado outra grande cúmplice: a Maria João Luís. E será um espetáculo a partir de Mário Cesariny.