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Palco aos párias da globalização
‘O Grande Dia da Batalha’ no Teatro Nacional D. Maria II
Acrescentando um conjunto de “inserções” que remetem, sobretudo, para o drama dos refugiados no Mediterrânio, Jorge Silva Melo dirige a influente peça Albergue Noturno, de Maximo Gorki. O Grande Dia da Batalha está em cena, até 25 de fevereiro, no Teatro Nacional D. Maria II.
Remonta aos tempos da estada dos Artistas Unidos n’ A Capital a vontade de Jorge Silva Melo de encenar o influente clássico Albergue Noturno de Maximo Gorki (1868-1936). Nesse já longínquo ano de 2001, o encenador trabalhava a montagem da peça, interrompida devido ao trágico desaparecimento do ator Paulo Claro. “Nesse ano preparávamos um ciclo russo que levaria à cena o Na Estrada de Tchekhov e o Albergue Noturno, do Gorki”, recorda. “Eram peças que pensávamos adaptarem-se muito bem às características do edifício d’ A Capital, sobretudo este último, que me recordo de ter visto encenado por Monteiro Meireles, em 1970, no Trindade, com uma companhia amadora, o Grupo Mérito Dramático Avintense”.
Durante um seminário que conduziu no D. Maria II, e que haveria de resultar no espetáculo Na margem de lá: um lamento, Silva Melo confessa ter recorrido à companhia desse “texto maior” de Gorki sempre que voltava a casa. Entretanto, a convite de Tiago Rodrigues [diretor do TNDM II], o encenador é desafiado “para trabalhar clássicos e mitos”. Nem a propósito, Silva Melo pensa em Dido e Eneias, “coisa que se presta mais à música e ao lamento que ao teatro”, e consequentemente “na tragédia dos que morrem no Mediterrânio em busca de refúgio, nos desempregados, nos desgraçados atirado para o lixo de Schengen e de todas as outras globalizações”. E que outro senão Gorki, com “a canalha” do seu Albergue Noturno, se poderia tão bem prestar a dar “voz aos pobres, vis e oprimidos que ninguém quer.”
Embalado pela “peça que abriu a hipótese de um realismo coral”, Silva Melo foi revendo “os filmes de Jean Renoir e de Kurosawa” que magistralmente transportaram o texto de Gorki para os seus tempos – o de Renoir, imbuído da vitória eleitoral em França da Frente Popular, que se quis crer poder travar fascismos e nazismo; o de Kurosawa, procurando vias para a esperança no arrasado Japão do pós-guerra. Simultaneamente, “e não porque o de Gorki fosse insuficiente, apercebi-me como este texto foi dos que mais textos gerou a outros, de Eugene O’Neill a Lars Noren, passando por Tennessee Williams e William Saroyan”, sem esquecer a intriga amorosa entre o ladrão honesto e a mulher mal casada “que terá inspirado O Carteiro Toca sempre Duas Vezes”. Aliás, sublinha, “a peça é dupla porque, num plano, contém essa narrativa de amantes, e noutro, “concentricamente”, estão esses personagens “sem história, sem drama e sem destino que por ali pairam.”
Acreditando que “todos somos necessários para fazer o mundo”, como se diz a dada altura na peça, o novo espetáculo de Jorge Silva Melo junta a Gorki múltiplas referências, desde a poesia de Gomes Leal – de onde provém o título – a canções e panfletos revolucionários, plasmados, sobretudo, na presença de “uma espécie de coro” que, à boca de cena, confronta diretamente o público. Estes homens que saem da turba surgem como o coletivo que amplifica o sentido trágico do mundo que os rejeita. Até porque, em O Grande Dia da Batalha de Gorki e Silva Melo, o palco a estes párias pertence.