Carmen Dolores

"Se, por vezes, o teatro não me satisfazia, era precisamente porque não possibilitava que desse conta dos meus defeitos"

Carmen Dolores

Como escreveu Luís d’ Oliveira Nunes, Carmen é a “Deusa da Palavra”. E, como lamentou um dia Carlos Porto, até podemos tê-la visto muitas vezes, mas não foram decerto as suficientes. Grande senhora do teatro, da rádio e do cinema português, Carmen Dolores não está, para nossa infelicidade, de volta aos palcos. Ou melhor, está, mas no corpo e na voz de Natália Luiza, em Carmen, espetáculo inserido no Festival de Almada, que estreia a 11 de julho no Teatro da Trindade. Para assinalar este declarado “ato de amor” prestado por Diogo Infante a Carmen Dolores, falámos com a enorme atriz, agora personagem sobre as tábuas do palco onde há mais de 70 anos se estreou.

Deve ser um pouco estranho ver-se como personagem numa peça de teatro.

Garanto que nunca me passou pela cabeça [riso]. A ideia foi do Diogo [Infante] e surgiu a partir do meu último livro [Vozes dentro de mim, Sextante Editora, 2017]. Durante o lançamento, no Teatro Aberto, fiz uma leitura de trechos com outras atrizes e, nesse mesmo dia, ele veio ter comigo e diz “Carmen, quero falar consigo”. Uns dias mais tarde apresenta-me a ideia e eu apanho um susto… “que responsabilidade!”, pensei. Depois, refleti: o livro está escrito, são as minhas palavras, e é ele que faz a adaptação e vai buscar alguns apontamentos aos livros anteriores, portanto, o meu contributo limita-se a isso. Mas, não deixa de ser estranho, de repente, eu que fiz tantas personagens e nunca me interpretei a mim mesma, tornar-me agora figura de uma peça…

Com a Natália Luiza a interpretar a Carmen…

Fiquei muito contente por ser a Natália. Temos muitas afinidades, já trabalhámos juntas – no Espectros, do Ibsen, no Teatro Experimental de Cascais [em 1992, dirigida por Carlos Avillez, também com Diogo Infante no elenco] – e devo dizer que lamento que ela seja hoje mais encenadora do que atriz. Não porque não lhe reconheça mérito, bem pelo contrário, mas a Natália é daquelas atrizes que, pela entrega total às coisas, gosto muito de ver em palco. Por tudo isso, penso que foi extraordinariamente bem escolhida.

Não acompanhou nenhum ensaio?

Ensaio, não. Tivemos aqui em minha casa uma reunião, conversámos, e tudo isso. Mas só. Para mim irá ser uma surpresa. Porém, deixe-me dizer que a Carmen dela poderá não ser bem como eu. Será mesmo muito natural que ela ponha alguma coisa dela…

Aliás, é esse mesmo o trabalho do ator.

Exato. Enquanto representei tentei sempre não ser eu, mas sim a personagem. Embora houvesse uma coisa que me transcendia: quando interpretava não uma personagem fictícia, daquelas que o autor inventou, mas uma figura real, entregava-me de tal modo e assumia uma tal responsabilidade que acabava por emprestar muito de mim. Isso sucedeu com a Virginia Woolf [Virginia, de Edna O’Brien, 1985], que tanto gostei de interpretar, que estudei a fundo, desde os romances aos diários, e que me esmagou. Foi uma experiência fora de série.

Como é que compôs as personagens que interpretou?

Tentei sempre imaginar os sentimentos delas, o que as levaria à ação, àquele momento das suas vidas. Mas, sempre evitando usar os meus próprios sentimentos. Talvez por isso sempre me tenha interessado interpretar figuras tão diferentes daquilo que sou.

Mas isso nem sempre foi possível, pois não?

No princípio da minha carreira, no cinema, fazia personagens muito parecidas comigo. Era sempre a sentimental! [sorriso] Cheguei a receber a carta de uma admiradora que dizia: “você que morreu de amor deve compreender o meu problema”. Era muito curiosa a relação com o público nessa época em que o cinema português estava no auge e toda a gente ia ver os filmes.

Mas, no teatro, a sua relação com as personagens já era diferente…

Sabe que raramente escolhi os meus papéis? Quando me começaram a distribuir papeis que nada tinham a ver comigo ficava intimamente presa a eles. Faziam-me experimentar sentimentos que nunca vivera, como a raiva, o ódio… E gostava de os experienciar através daquilo que as personagens sentiam.

Alguma vez temeu que uma personagem tomasse conta de si?

Não, porque tentei sempre defender-me. Lutei muitas vezes para que tal não sucedesse. Mesmo na Virginia de que falámos há pouco… Por sinal, precisamente após a ter interpretado, aconteceu ir a passar no corredor, o meu marido ter o rádio ligado, e ouvir: “a Virginia Woolf…” qualquer coisa. Parei e pensei: “estão a falar de mim?” Mas foi caso único. Em tantos anos, procurei nunca trazer a personagem para casa.

Mesmo em jovem, conseguia ter esse controlo?

Sim, porque eu fui atriz por acaso. Comecei a dizer poesia na rádio e, de um momento para o outro, surge o António Lopes Ribeiro. Os meus dois primeiros filmes [Amor de Perdição e A Vizinha do Lado], tem graça, estrearam no Teatro da Trindade, numa altura em que durante seis meses passava cinema e nos outros seis, teatro. O Lopes Ribeiro leva-me entretanto para o teatro, para os Comediantes de Lisboa. E depois, mesmo sem Conservatório, vou parar ao Nacional. Acho que fui uma mulher com sorte.

Alguma vez sentiu que atraiçoou uma personagem?

Fiz sempre o possível por não as atraiçoar, mas houve algumas que julgo não ter ido até ao fim na sua composição. Sabe, eu sou uma insatisfeita. Nunca fico inteiramente contente com aquilo que faço.

”Passo os dias, sobretudo, a escrever. Estou a preparar, com o Vitor Pavão dos Santos, um livro sobre os Comediantes de Lisboa.”

 

Já que mencionou o cinema, a Carmen teve sempre uma relação notável com a câmara, e lembro a importância que atribui ao teatro televisivo…

Reconheço-lhe, de facto, uma grande importância na carreira, até porque me permitiu corrigir posturas ou entoações vendo-me na televisão. Costumo dizer aos meus colegas que aprendemos muito a ver-nos. E se o teatro por vezes não me satisfazia, era precisamente porque não possibilitava que eu desse conta dos meus defeitos.

Para lá desse lado de autoavaliação, gostava de fazer teatro num estúdio?

Dava-me imenso gozo. Vivia a personagem, não havia público, mas havia… estavam lá o realizador e os técnicos. E, por falar em técnicos, tive sempre uma relação muito boa com eles. No início de carreira, no cinema, eu era muito jovem e tímida e, simpaticamente, chamavam-me Teresinha por causa da personagem que interpretei no Amor de Perdição.

Porque é que fez tão pouco cinema?

Porque não tive convites. A seguir ao 25 de Abril ainda fiz um filme com o António de Macedo e, um pouco mais tarde, filmei com o José Fonseca e Costa [Balada da Praia dos Cães e A Mulher do Próximo]. O Zé ainda me convidou há uns anos para entrar naquele que foi o seu último filme, mas eu já estava retirada e recusei.

O José Fonseca e Costa sempre referiu a enorme admiração que tinha por si…

Ele dizia que se tinha apaixonado por mim aos dez anos, quando me viu no Amor de Perdição. [risos] Recordo-me dele me ter ligado a dizer: “Ó Carmen, venha fazer o filme comigo.” [pausa] Filme que ele já não acabou…

Ainda sai para ir ao teatro?

Há muito tempo que não vou. Desabituei-me de sair… mas vou-me mantendo a par. Vou falando com colegas…

Como é que olha para o estado do teatro em Portugal?

Primeiro, acho que as temporadas são muito curtas. Depois, preocupa-me que haja tanta gente a sair das escolas quando parece não haver mercado. Quanto ao resto, e ao contrário do que pensam algumas pessoas da minha geração, não acho que tudo seja mau ou um disparate. As coisas são diferentes, e tento compreender. Qual é o mal de não haver grandes cenários ou de os atores representarem de jeans? Aquilo que me parece negativo é não haver continuidade e faltarem companhias fixas. Sem a televisão, hoje, os atores não viviam. E isso aflige-me.

Já deixou de ir à Gulbenkian, aos recitais de piano?

Já deixei de ter a “assinatura”. O meu filho é que continua a ir. Sabe, eu sou muito comodista, gosto de estar em casa, no meu cantinho, a viver a minha solidão, da qual gosto muito. Mas sinto que deveria sair mais…

Imagino então que passa os dias envolvida com os seus livros, com os poetas que tão bem declamou…

Os meus dias passam-se, sobretudo, a escrever. Estou atualmente, com o Vitor Pavão dos Santos, a preparar um livro sobre os Comediantes de Lisboa. É bom recordar aqueles grandes atores, essas vedetas que trabalharam comigo, como o João Villaret, a Maria Lalande, o António Silva, a Josefina Silva… E nós, eu, o Ruy de Carvalho, o Igrejas Caeiro e outros, éramos os jovens da companhia.

A atriz, em 1975, numa cena do filme ‘O Princípio da Incerteza’, de António de Macedo

 

A escrita é uma paixão antiga?

Uma paixão de sempre, mas nunca por encomenda. Tem de ser por inspiração. Comecei, sem querer, a redigir memórias, ou melhor, comecei a usar a escrita para partir à procura de mim numa altura em que, por ter decidido acompanhar o meu marido, fui viver para Paris. Como estava afastada dos palcos, começaram a surgir episódios de que me ia recordando, e tive a sorte de um jornalista português, o Daniel Ribeiro, me ter entrevistado e de eu lhe ter confidenciado que andava a escrever umas “memórias”. O José Carlos Vasconcelos, que estava nessa altura n’ O Jornal [semanário surgido após o 25 de Abril], mostrou-se interessado e, como havia paralelamente ao jornal uma editora, surgiu o meu primeiro livro, Retrato Inacabado [Edições O Jornal, 1984].

A Carmen é quase uma pioneira no panorama português, já que é muito raro, por cá, um ator escrever memórias…

O que é uma pena! Ao contrário do que sucede em França, onde isso é muito comum. Talvez influenciada por esse período em que por lá vivi, habituei-me a escrevê-las, até porque penso serem documentos de época que ficam para o futuro. Aliás, passo a vida a desafiar os meus colegas a escreverem memórias porque acredito que seria importante.

Por falar em “pioneira”, está intimamente ligada a um dos primeiros e mais influentes grupos de teatro independente em Portugal, o Teatro Moderno de Lisboa, que cofundou em 1961…

A importância do Teatro Moderno de Lisboa, e não é por ter feito parte dele, foi imensa. Mas tivemos muitas dificuldades. Atuávamos no Cinema Império, nos períodos de tempo em que não havia cinema… às vezes, entre sessões dos filmes do [Ingmar] Bergman, o que era extraordinário! [risos] Depois, como não tínhamos qualquer subsídio, era muito complicado, sobretudo para os atores que dependiam exclusivamente do trabalho para subsistir, como o Rogério Paulo ou o Ruy de Carvalho. Eu, como já era casada, e o meu marido tinha uma situação confortável, podia até não receber, mas para os meus colegas a situação era dramática.

E ainda havia a censura.

É verdade! Tenho aqui em casa muitos documentos da censura a proibir peças. Nós acabámos, precisamente, porque íamos fazer os Porquinhos da India, do Yves Jamiaque, com o Rogério Paulo, imagine-se, a interpretar um operário. Claro que a peça não passou na censura prévia, mas, tem piada, o Ribeirinho conseguiu fazê-la antes do 25 de Abril e, ao que sei, não houve problemas com a censura.

Incoerências?

O Teatro Moderno de Lisboa surge comigo, com o Rogério, o Armando Cortez, o Morais e Castro, e outros tantos, e houve sempre uma relação tensa com a censura, até porque alguns dos membros eram comunistas. Dai, talvez não seja propriamente por incoerência. Mas, repare, a censura atuava em todo o lado e nem sempre por razões políticas. Na televisão, por exemplo, lembro-me de estar a fazer uma peça russa em que eu  interpretava uma mulher casada, mas o marido nunca aparecia em cena. Por isso, os censores obrigaram-nos a dizer que ela era viúva. Tudo por causa dos costumes!

“Sempre fui uma insatisfeita. Nunca fico inteiramente contente com aquilo que faço.”

 

Ainda antes do 25 de Abril vive um período que lhe é muito caro, na Casa da Comédia, onde palco e plateia quase se fundiam…

Adorei essa relação de proximidade da cena com o público. Depois da Casa da Comédia, deixei de gostar de representar em teatros grandes. Quando o público está próximo, sinto que me dou mais. Vivi tempos muito felizes nesse período.

E, logo a seguir à queda da ditadura, vai experienciar essa relação de proximidade com o público por esse país fora…

Apesar do [Luís Miguel] Cintra também ter feito um, segundo garante o João Lourenço, foi com o primeiro Brecht que por cá se encenou: As Espingardas da Mãe Carrar. Fizemos primeiro na Casa da Comédia, depois no Trindade ao longo de umas semanas e, logo a seguir, uma tournée. E foi muito divertido, apesar de algumas noites complicadas para a concentração dos atores [riso].

Porquê?

Porque as pessoas iam para o teatro como se fosse para um comício, levavam as crianças, traziam laranjadas… O que era natural, pois, para a maioria, era a primeira vez que viam teatro. É importante que hoje se saiba que isso se passava não assim há tantos anos. A maioria das pessoas não tinha acesso à cultura!

Ao lermos os seus livros de memórias sentimos que tem sempre um olhar otimista sobre a sua relação com a vida e com os outros. Nunca há espaço para acertos de contas com o passado, com os outros…

Mesmo os poucos com quem poderia fazê-los, não me interessa. Não vale a pena. Eu gosto do ser humano, tanto no bom como no mau. Como sempre fui muito reservada, sobretudo quando era jovem, dediquei-me a observar e a procurar compreender. Nenhum de nós é perfeito, todos temos qualidades e defeitos. Hoje sou uma otimista, ao contrário da criança melancólica que fui.

Fez rádio, cinema, teatro, televisão. Escreve… Para que lado pende o seu coração?

Gostava de ter sido escritora, mas tenho uma enorme ternura pela rádio. Sempre fiz rádio, sempre vivi com a rádio. E nunca tive, na rádio, aquele nervoso que sentia no teatro, antes da cortina subir (quando ainda havia cortina!) e, até mesmo, no cinema ou na televisão. Estar na rádio foi sempre como estar em casa.