teatro
O teatro a tropeçar na vida
A peça “portuguesa” de Pascal Rambert
A convite de Tiago Rodrigues, diretor do Teatro Nacional D. Maria II, o consagrado autor e encenador francês Pascal Rambert escreveu uma peça que respira “as histórias” de Rui Mendes e “a energia apaixonada” de Beatriz Batarda. Construída sobre uma aparente ténue fronteira entre ficção e realidade – potenciada por personagens designadas pelo nome próprio do intérprete –, TEATRO infunde de vida a Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II, até 14 de outubro.
A génese da sua escrita começa no ato de escutar. Depois, com toda a disciplina do praticante de ioga que admite ser, Pascal Rambert escreve. “E gosto particularmente de o fazer para atrizes – atingem, geralmente, um nível de comprometimento inigualável”, sublinha, lembrando-nos Isabelle Hupert, Emanuelle Béart ou Marina Hands, atrizes para quem escreveu e que dirigiu (esta última passou por esta mesma sala, há cerca de dois meses, em Actrice, um dos melhores espetáculos da última edição do Festival de Almada).
Mas, comecemos pela importância de escutar. Quando Tiago Rodrigues o desafiou a escrever uma peça para o Teatro Nacional D. Maria II, Rambert quis estar perante “um ator com uma idade mais avançada”. Surgiu então Rui Mendes, quase a chegar aos 80 à altura em que tiveram o primeiro encontro e o ator lhe contou histórias e partilhou memórias, matéria de que o texto se viria a apropriar. Porque TEATRO está impregnado de histórias e memórias. As de Rui, mas também as do restante elenco: Beatriz Batarda, Lúcia Maria, João Grosso e Cirila Bossuet. Porém, Rambert garante: “não pretendo saber nada sobre a vida privada dos atores; quero, isso sim, olhá-los atentamente, ouvi-los e depois deixar-me levar pela intuição. Afinal, é para eles que vou escrever!”
A intuição incita a ficção de Rambert mas, ao dar às personagens os nomes próprios do atores que os interpretam, inicia-se um jogo em que a ficção se espelha na realidade, e vice-versa. Porque, de facto, não são apenas os nomes…
Vejamos. O palco despojado e sob uma luz fria como numa sala de ensaios, um linóleo que se coloca no chão, a mesa de trabalho, o encenador (Rui) e a atriz (Beatriz). Tudo começa com dois monólogos: o de Rui, a falar do avô que foi ator no D. Maria II, e a seguir o de Beatriz, da peça dentro da peça – a atriz nos limites, fazendo acreditar o público que a sua representação já ultrapassou o teatro e com a vida se fundiu. Mas, trata-se apenas um ensaio.
Entram mais dois atores (João e Lúcia) e, antes do início do trabalho, comemora-se o aniversário de Rui. Então, eles presenteiam-no com uma cena de Romeu e Julieta, precisamente a peça em que o Rui de TEATRO e o Rui Mendes da vida real os dirigiu pela primeira vez. Depois, há ainda Cirila, a empregada de limpeza que estuda Ciência Política, mas tem no sangue genes de artista (na vida real, os pais de Cirila Bossuet foram bailarinos) e até ambiciona ser encenadora.
E Beatriz, a atriz e a personagem? “Ela tem uma energia apaixonada. É irresistível”, considera o encenador. “Parece andar sempre a mil com os ensaios, os filhos, o estacionamento do carro… mas chega sempre a horas, e faz aquele monólogo violentíssimo assim, a frio, logo a começar”. Esta é Beatriz Batarda, mas é também a Beatriz de TEATRO, reflexo num espelho onde a ficção está permanentemente a tropeçar na vida.
A partir de um lugar na plateia, com o olhar a percorrer toda a Sala Garrett, Rambert conclui: “escrevo sempre histórias sobre o teatro porque, seja em cena, seja nos bastidores, aqui se reúne tudo o que nela existe: a paixão, a tristeza, a alegria, a perda, o amor, a esperança e até mesmo a morte…”