Danças Ocultas

Uma conversa com Filipe Cal

Danças Ocultas

Os Danças Ocultas são Artur Fernandes, Filipe Cal, Filipe Ricardo e Francisco Miguel. Este invulgar quarteto de concertinas é um caso único na história moderna da música portuguesa. Dentro Desse Mar, o mais recente disco, é o seu mais ambicioso projeto artístico, e conta com produção de Jaques Morelenbaum. O trajeto do grupo, o amor pela concertina e a participação no Misty Fest foram alguns dos temas abordados na nossa conversa com Filipe Cal.

Começava por perguntar a origem do vosso nome, Danças Ocultas…

A nossa música vive de um instrumento que está muito ligado à dança e ao folclore, a concertina, mas tomámos algumas opções que não estão diretamente ligadas à dança. Diria que a nossa música é mais melancólica, introspetiva. Nesse sentido, a dança está ‘oculta’. Ou seja, o instrumento está associado à dança, mas a música que fazemos não é propriamente ‘dançável’.

Em que altura decidiram começar este projeto?

Começámos muito novos. Aliás, acho que o segredo para a longevidade do grupo é o facto de termos começado tão novos. Acho que as relações mais sólidas que temos são as mais antigas. Começámos a tocar cedo, estávamos ligados a grupos folclóricos e éramos amigos, andávamos na mesma escola. Tocávamos o mesmo instrumento e começámos a juntar-nos para ensaiar. A certa altura o Artur (Fernandes) (que é mais velho do que eu, do que o Filipe (Ricardo) e do que o Francisco (Miguel)) fez a tropa com o Rodrigo Leão. Os dois ficaram amigos e começaram a partilhar gostos e influências musicais. Entretanto o Rodrigo passou uma cassete nossa ao Gabriel Gomes, que era o acordeonista dos Madredeus, e ele achou muita piada e começámos a trabalhar juntos. Foi ele que gravou os nossos três primeiros discos. Tivemos esse empurrãozinho do Gabriel Gomes, que foi muito importante, porque ele tinha acesso aos meios, morava em Lisboa. Nessa altura morávamos no Norte, nem sabíamos o que era um estúdio a sério…

Usar a concertina para criar música que não seja folclórica é um grande desafio?

A música que ouvíamos não era folclore, mas a concertina era o instrumento que sabíamos tocar, era a ferramenta que tínhamos. Lembro-me que nessa altura ouvia música muito alternativa: Joy Division, Bauhaus; o Artur ouvia muito Astor Piazzolla… Esses outros tipos de música começaram a influenciar as nopssas composições. É curioso porque, nessa altura, afastámo-nos um bocadinho da tradição. Às vezes temos algum preconceito em relação às nossas próprias tradições e às dos outros não temos, porque achamos exótico. Foi interessante termos ido ao Brasil fazer o último disco e termo-nos deixado influenciar, de forma tão permeável e tão aberta, pela música popular brasileira. A tradição faz parte de qualquer cultura, e neste disco assumimo-la de uma forma muito descomplexada.

O grupo é constituído por quatro elementos. Têm as vossas funções bem definidas?

Do ponto de vista pessoal sim. Conhecemo-nos muito bem, crescemos juntos, por isso respeitamos muito as nossas diferenças. Relativamente às questões estéticas, no início cada um fazia um bocadinho de tudo, mas fomo-nos especializando cada vez mais. Grosso modo, cada um tem a sua função dentro do grupo.

©Alípio Padilha

O facto de grande parte das vossas músicas não ter acompanhamento vocal faz com que cheguem ao público de forma mais imediata?

A nossa música, por ser instrumental, tem um lado mais permeável, porque a linguagem dos sons é mais universal do que a língua, embora a língua também o seja. O Fado é o estilo musical português que mais exporta, e não é instrumental. Tem depois outras densidades, tanto da guitarra portuguesa, como da interpretação dos cantores, que faz com que passe uma mensagem mesmo quando quem ouve não percebe a letra. Ou seja, nem sempre a língua é uma barreira.

Certamente que é diferente compor uma melodia meramente instrumental e compor para voz…

Sim, é muito diferente. Os contornos melódicos são diferentes, as preocupações são outras. Começámos esse processo com a Dom La Nena, uma artista brasileira fantástica. Foi com ela que trabalhámos o formato canção a sério e aí debatemo-nos com alguns desafios. A amplitude da voz, as repetições, determinados contornos melódicos que num instrumento, por serem repetitivos ficam menos interessantes mas na voz não; determinados pormenores que ficam bem no instrumento, mas na voz não… É um desafio muito diferente.

Trabalharam com Jacques Morelenbaum no álbum Dentro desse Mar, que saiu recentemente. Como foi a experiência de gravar no Brasil?

Lembrámo-nos que seria interessante ter alguém de fora, com outras influências. A primeira escolha foi o Jacques Morelenbaum, que não conhecíamos pessoalmente. Escrevemos-lhe, ele já tinha trabalhado com a Carminho e com a Mariza, portanto havia uma ligação a Portugal. Ele aceitou, e então decidimos ir gravar ao Brasil, com músicos que ele conhecia bem. A Dora, a filha dele, canta no disco, bem como a Zélia Duncan. De Portugal levámos as concertinas e a Carminho [risos].

Este ano voltam a atuar no Misty Fest. Como vai ser este concerto?

Vamos ter connosco o Jacques e a Dora Morelenbaum. O Jacques não é um mero convidado. Para além de produzir o disco ele toca em quase todos os temas, ele é que convidou os músicos. O disco é muito dele.

Da restante programação do Misty o que não gostariam de perder?

Tenho grande curiosidade em ouvir o Scott Matthew e a Anna von Hauswolff, sem menosprezo por nenhum outro.

Para além de atuarem em Coimbra, Lisboa, Aveiro e Porto no âmbito do festival, têm mais concertos agendados?

Entre o concerto de Aveiro e o de Lisboa vamos à Filarmónica do Luxemburgo, que é uma sala fantástica. Depois faremos uma tournée pela Alemanha e terminamos em Viena.

Estão juntos há praticamente 30 anos. Que balanço fazem do vosso percurso musical?

O balanço é o de termos feito coisas muito diferentes. Gostaria de salientar o Ballet Gulbenkian, com quem fizemos uma colaboração muito bonita. Inclusive participámos no último espetáculo deles, é algo que nos está no coração, foi muito emotivo. Fizemos coisas muito bonitas, não nos podemos queixar.