Libertinos de todos os países, uni-vos!

"Boudoir - 7 Diálogos Libertinos" leva Sade ao Teatro da Trindade

Libertinos de todos os países, uni-vos!

Num ambiente de cabaret habitado por figuras burlescas, Martim Pedroso e a Nova Companhia adaptam ao palco o célebre “manifesto” do Marquês de Sade, A Filosofia na Alcova. Como “um grito de liberdade”, e sem medo de ferir suscetibilidades, Boudoir – Sete Diálogos Libertinos está em cena, até 10 de março, na Sala Estúdio do Teatro da Trindade.

“A vós, voluptuosos de todas as idades e sexos, só a vós ofereço esta obra”, escreveu o Marquês de Sade, em tom de dedicatória, a abrir A Filosofia na Alcova. Mais do que um clássico da literatura erótica, espécie de versão mitigada, e até didática, de outros livros mais enigmáticos e radicais do autor (como Justine ou Os 120 Dias de Sodoma), a obra é, simultaneamente, uma antologia da libertinagem e um tratado filosófico de raiz republicana, anticlerical e anticristã.

Sem olhar a conceções moralizantes, assumindo a linguagem direta que caracteriza a escrita de Sade, Martim Pedroso dirige um espetáculo que pode ser entendido como “uma provocação, mas não gratuita, face a tantos temas que a nossa sociedade teima em não resolver, como o culto do patriarcado, a heteronormatividade, a descriminação daquilo que é diferente aos olhos dos princípios judaico-cristãos.”

Um espetáculo “para fazer pensar, seduzir e provocar.”

 

À semelhança de Sade, como se construísse um manifesto sobre a liberdade em tempos de “censuras subtis”, Pedroso faz corresponder a cada uma das letras de B-o-u-d-o-i-r (alcova ou quarto de senhora, especificamente destinado para receções intimas) uma visão sobre os sete diálogos do texto original. Com muito humor e irreverência, num ambiente de cabaret, e emprestando ao elenco fortes traços de burlesco, o público acompanha a viagem iniciática, sem limites nem tabus, que a ingénua Eugénia (Margarida Bakker) empreende sob condução da “voluptuosa” Senhora de Saint-Ange (Maria João Abreu) e do “cínico” Dolmancé (João Gaspar), personagens que se afiguram como representações modelares do pensamento do controverso autor francês do século XVIII.

Mais de dois séculos depois da publicação (clandestina) de A Filosofia na Alcova, poderá parecer estranho classificar Boudoir – 7 Diálogos Libertinos como um objeto de enorme coragem artística. O certo, é que o é, sobretudo quando se desenha crescentemente a perceção de que o sonho presente de “um mundo plural e diverso vai sendo cada vez mais ameaçado”.

Enquanto espetáculo que pretende celebrar “a liberdade do corpo e do pensamento”, haverá certamente quem leve a mal a crueza da linguagem, quem se sinta vilipendiado ou até ofendido na sua suscetibilidade quando vir e ouvir aquilo que durante duas horas os “libertinos” têm para contar… e mostrar. Mas, como nos diz Martim Pedroso, “a arte serve para pensar, para seduzir e provocar”. E, ainda pior andará o mundo, se assim deixar de o ser.