entrevista
Tiago Cadete
Um "Gulliver" entre Portugal e o Brasil
No final deste mês, Tiago Cadete leva ao Pequeno Auditório da Culturgest a peça de teatro Gulliver, inspirada num dos viajantes mais conhecidos da história do romance do século XVIII. Mas, aqui, este navegador é uma espécie de VJ, uma inteligência artificial que vem do futuro e que conta a sua história através do grande arquivo de documentos, imagens e sons encontrados na internet sobre as interpretações do livro de Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver.
Completaste dez anos de atividade artística em 2018. Qual é o balanço que fazes desta década como criador?
Estes dez anos marcam-se pela minha saída da Escola Superior de Teatro e Cinema, apesar de, antes disso, já ter trabalhado profissionalmente como estagiário e enquanto ator. Esta década como criador começa comigo a trabalhar com o Francisco Camacho, que tinha sido meu professor. Depois trabalhei como cocriador com a Raquel André durante algum tempo, até ir para o Brasil, há cerca de cinco anos. Esta minha viagem mudou bastante aquilo que eu queria trabalhar e a pesquisa que queria fazer, que acabou por se tornar um pouco académica, já que estou a estudar lá. Apesar da minha carreira ter passado por vários momentos e de ter havido uma viragem há cinco anos, para já o balanço é bastante positivo e penso que é indicador do que podem vir a ser os próximos anos.
Vives entre Portugal e o Brasil. Para ti, quais são as principais diferenças entre os dois países a nível artístico?
A parte social define muito aquilo que podem ser os pressupostos artísticos, técnicos e formativos. No caso do Brasil, a experiência que tive foi a trabalhar como intérprete para outros criadores brasileiros ou já a apresentar no contexto brasileiro. Na verdade, a minha forma de trabalhar não muda assim tanto. No Rio de Janeiro, onde estou, no que respeita às artes performativas, como o teatro, há uma ligação muito grande ao registo televisivo. Parece que já nasces numa cidade que é uma Hollywood do Brasil, onde a meta que pretendes atingir enquanto ator se prende com uma visibilidade muito televisiva. Na minha opinião, isto faz com que, nos objetos teatrais, tu sintas que há sempre uma câmara no espaço. Por exemplo, a nível do teatro de pesquisa, que em Portugal é muito forte, há uma questão autoral muito significativa que parece não se sentir tanto no Brasil. A maior diferença que sinto é que, no Brasil, os temas sociais estão a passar para a cena, já que lá existe uma permeabilidade maior do que é a realidade. Em Portugal não sinto tanto isso. Parece que existe uma distância entre o que é e o que se pode ver representado. Claro que isto é uma generalização, já que há companhias como a Mala Voadora, o Teatro Praga ou o trabalho do Tiago Rodrigues onde tu sentes que eles estão, não a espelhar a realidade, mas muito atentos ao que se passa. Acho que a diferença passa mais por aqui: pensar que socialmente isso altera o que tu queres que seja uma cena, o que tu queres que seja o teatro.
Este mês levas à Culturgest Gulliver, um espetáculo destinado ao público mais jovem. Como surgiu a ideia para este projeto?
A ideia surgiu logo no dia a seguir à estreia do Pangeia, há dois anos, precisamente na Culturgest. Lembro-me que tinha um livro do Gulliver em casa, porque sempre me fascinou esta questão do que é que o meu corpo ainda não consegue atingir ou ao que eu, enquanto criança, ainda não consigo chegar no mundo dos adultos. A ideia mais generalizada sobre o livro é existir um Gulliver numa posição de gigante em relação a um lugar de Liliputianos, onde são todos muito pequenos, e isso sempre foi corroborado pelos desenhos animados e pela literatura paralela. Mas, na verdade, quando te debruças mais atentamente sobre o livro, apercebes-te de que se trata de um viajante que se vai alterando; na segunda viagem, ele já é mais pequeno. Esta história aborda muito a capacidade de te colocares no lugar do outro, o perspetivismo, onde a tua identidade não é só onde tu estás, é também como vês esse lugar assim que te deslocas. Isso foi o que mais me interessou. Além de que, depois, fala do tema do colonialismo recorrendo à sátira, brincando muito com o lugar do viajante da época.
Uma vez que a tua obra é um cruzamento de teatro, dança e artes visuais, o que se pode esperar deste espetáculo?
Neste espetáculo estamos a utilizar muito o vídeo, mas um vídeo que parece ser mais operativo, ou seja, que responde mais aos pressupostos da ideia dramatúrgica do que às preocupações estetizantes. Quando faço essas travessias tento sempre pensar ao que é que vou dar prioridade. Neste caso, pensei logo que Gulliver tinha que ser uma peça de teatro, onde há muito texto, mas poderia ser só um gigante em palco. Mas que este vai ser um espetáculo visual, lá isso vai.
O que te levou, numa primeira fase, a criar espetáculos para crianças?
Este é o quarto espetáculo que faço para um público mais jovem. Fui desafiado pela Leonor Cabral e pelo João de Brito, há uns sete ou oito anos, a fazer um primeiro trabalho na Culturgest. Era dirigido a crianças mesmo muito pequenas e acho que foi um enorme desafio. A minha exigência quando pego num objeto dirigido a famílias é quase a mesma, a única coisa que tem de se ter em atenção é o tipo de linguagem. Todos os criadores deveriam experimentar criar alguma coisa para ser vista por um olhar ainda sem muitas regras sobre o que é uma peça de teatro. É um desafio, acima de tudo porque há um cuidado a ter com esse público que é muito novo, mas que será o futuro público adulto. Porque ninguém nasce espectador, e pensar que aquele primeiro estímulo que uma criança pode ter com oito ou nove anos pode levá-la a querer ser ator, como aconteceu comigo, ou simplesmente espectador, é muito gratificante. E Lisboa está a fazer um ótimo trabalho nesse sentido. Muitos teatros têm serviço educativo. O Lu.Ca [Teatro Luís de Camões] abriu com essa missão, então há uma consciência, principalmente nesta cidade, de que a formação e a captação desse tipo de público é importante.
Já nos podes falar um pouco dos teus próximos projetos?
No Brasil, no final do ano, vou ter um projeto que tem mais a ver com dança, que se chama A Fresco. E estou na fase de pré-produção de um trabalho para 2021, que consiste numa viagem de barco que vou fazer entre Lisboa e Porto Seguro, no Brasil. Vou tentar replicar a viagem dos nossos “autoproclamados” descobridores e tentar perceber como é o Atlântico – esse território que conecta Portugal e o Brasil – e como é que posso retirar desse mar histórias do passado, como é que eu consigo trazer, à luz da contemporaneidade, algumas questões ali submersas.