Beckett a tropeçar na slapstick comedy

Jorge Silva Melo dirige “Ballyturk” de Enda Walsh

Beckett a tropeçar na slapstick comedy

Dois homens, uma sala fechada e uma avalanche de adereços. Há histórias absurdamente loucas, um relógio de cuco e um despertador a marcar o tempo, um visitante misterioso e até um microondas que explode. “Não imaginava no que me estava a meter”, confessa Jorge Silva Melo sobre Ballyturk, a peça que marca o regresso dos Artistas Unidos ao teatro do dramaturgo irlandês Enda Walsh.

De que melhor maneira poderíamos definir este objeto enigmático e caricato, grotesco e absurdo, tão excessivamente divertido, mas até trágico, chamado Ballyturk? Jorge Silva Melo, que assume ter sido a peça mais difícil que dirigiu até hoje, considera-a “uma slapstick comedy [em português a referência será o chamado “pastelão”] que faz Beckett sair da academia e entrar numa taberna irlandesa, com Guiness a rodos e serradura no chão.”

Aliás, o teatro de Enda Walsh (n. 1967) desde Acamarrados explora “esse lado voluntariamente rasca” e impregna-o de referências eruditas. Em Ballyturk, uma comédia bem irlandesa, descortinam-se marcas de James Joyce (as paredes que falam sugerem ser conversas de vizinhos num qualquer bairro de Dublin), do galês Dylan Thomas “e do seu belíssimo Sob o Bosque de Leite”, mas, principalmente, de Samuel Beckett e do seu incontornável À Espera de Godot. “Descobri Godot himself naquele misterioso visitante que surge na sala, vindo de algures numa paisagem irlandesa”, sublinha Silva Melo.

O ator António Simão numa cena da peça.

 

A essas referências, Walsh junta o tal universo slaptick das populares comédias britânicas da série Carry On ou dos célebres Três Estarolas. Como se metesse todos os ingredientes numa centrifugadora – tal o ritmo frenético a que, em palco, os atores (no caso, Américo Silva e Pedro Carraca) são sujeitos –, o autor constrói uma “espécie de ritual a dois, aplicando excesso aos gestos quotidianos que, à Beckett, retira às rotinas das vidas normais.”

A peça é “uma loucura” não só pela exigência física das interpretações, como pelos efeitos especiais em cena. “Não imaginava no que me estava a meter quando decidi fazê-la”, confessa o encenador, lembrando que o cuco do relógio se incendeia e até o microondas explode a dada altura.

Aliás, é o tempo, marcado pelos relógios e pelos mais diversos artefactos em palco, que parece ser a chave para descodificar este objeto tão fascinante como enigmático. Porque, no fundo, nunca sabemos onde estão e quem são aqueles homens e que lugar é esse que ressoa, mas não vemos, chamado Ballyturk.