entrevista
Gabriel Abrantes
"Diamantino inspira-se na grande tradição da sátira política"
A primeira longa-metragem de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, Diamantino, chega às salas a 4 de abril. O filme, vencedor do Grande Prémio da Semana da Crítica no Festival de Cannes, em 2018, conta a história de Diamantino (interpretado por Carloto Cotta), uma super-estrela do futebol mundial cuja carreira cai em desgraça. À procura de um novo objetivo para a sua vida, entra numa odisseia delirante e onírica. Conversámos com Gabriel Abrantes sobre as intenções e expetativas deste novo trabalho.
Diamantino começa assumindo-se como ficção. No entanto, a personagem principal e o contexto sociopolítico têm uma aparência muito real. Onde encontraram inspiração para esta obra?
O filme parodia bastante o que está mesmo agora a acontecer. Aspirava a satirizar ludicamente a cultura da celebridade, especialmente focada em estrelas dos desportos como Cristiano Ronaldo ou Lance Armstrong, estrelas de reality show como Kim Kardashian, ou mega-celebridades como Madonna e Angelina Jolie. Mas todas essas estrelas foram só inspirações. Diamantino deixa de algum modo ver para além e por detrás da máscara da celebridade superficial, auto-obsessiva e materialista, e permite aceder a um tipo de pessoa completamente diferente, que é apenas inocente, cândida, e cheia de amor.
O filme é uma metáfora de um país, Portugal, mas também do mundo ocidental. Através da comédia são abordadas questões dramáticas: a crise dos refugiados, o populismo que vinga nos EUA e na Europa, e um endeusamento exacerbado de determinadas personalidades. Foi intenção levar o público a reflectir sobre estas questões?
O filme é uma sátira e espero que faça o público rir e pensar sobre as coisas mais ridículas e chocantes que estão hoje a acontecer, como o Brexit, a presidência do Donald Trump, a ascenção da extrema direita ou a crise dos refugiados. Nesse sentido, Diamantino inspira-se na grande tradição da sátira política que vem desde Aristófanes, passa pelo Candide para desembocar em South Park: uma comédia que é suposto fazer rir e pensar ao mesmo tempo.
Podemos dizer que hoje os estádios de futebol são as novas catedrais, que os jogadores são os novos Michelangelo?
O filme começa com o Diamantino a dizer isso mesmo em voz off. E há alguma verdade nessa frase. A beleza dos jogadores mais talentosos pode ser comparada às mais belas obras de arte e os estádios são um centro de devoção, de fé, de superstição. Mas tudo isso talvez esteja um pouco hiper-romantizado. Os estádios são também lugares comparáveis ao Coliseu de Roma, no sentido em que neles se manifesta a mentalidade da horda populista que os tornou possíveis. Penso que o filme joga com essa dupla função do desporto de elite – pode ser belo e inspirador e ao mesmo tempo uma das mais virulentas formas do nacionalismo, do nepotismo, e do pensamento massificado que hoje se espalham rapidamente.
Diamantino foi o filme de abertura do festival Queer, em Lisboa. Em que sentido se pode dizer que esta obra pertence ao universo queer?
Diamantino é um filme sobre ambiguidade e liberdade, sobre a descoberta da sexualidade, sobre a fluidez de género. É também extremamente camp e tonto, e deleita-se no poder intoxicante do mau gosto mais trashy, como por exemplo com uma super estrela do futebol a fantasiar sobre cãezinhos pequineses enormes a saltar através de nuvens cor-de-rosa.
Os atores são todos portugueses. Como foi feito o casting para o filme, foi imediata esta opção em relação aos atores?
O Daniel e eu ficámos muito empolgados por trabalhar com este cast. Já tinha trabalhado três vezes com o Carloto Cotta, e o Daniel e eu escrevemos o guião a pensar nele. Queria também o Filipe Vargas e a Joana Barrios, com quem já tinha colaborado. Não conhecia a Margarida e a Anabela Moreira, a Maria Leite, a Carla Maciel ou a Cleo Tavares, mas foram todas tão brilhantes… São alguns dos atores mais talentosos e foi realmente magnífico trabalhar com eles.
Diamantino recebeu este ano o Grande Prémio da Semana da Crítica no Festival de Cannes. Tem ainda marcado presença em importantes festivais de cinema. Qual o impacto dos prémios e a importância da presença em festivais?
O Daniel e eu ficámos chocados por ganhar o prémio. Já tínhamos ficado surpreendidos por termos sido aceites num festival tão prestigiado. Começámos a trabalhar no Diamantino em 2010 e estamos ainda a trabalhar na distribuição do filme agora em 2019 – por isso pode dizer-se que, do princípio ao fim, levou mais de uma década a fazer esta obra. Durante este tempo houve imensos altos e baixos, chegámos por vezes a perder a perspetiva do filme e do que ele poderia representar para as pessoas. Neste sentido o prémio, bem como a reação dos críticos e público em Cannes, foi arrebatadoramente positiva e uma grande emoção, fazendo-nos sentir que todos estes anos a trabalhar no filme valeram a pena. O mais importante para nós era ouvir as pessoas a rir, senti-las a emocionarem-se com o filme.
O Gabriel tem também formação em artes visuais. De que forma essa vertente influência o seus filmes?
Comecei a pintar quando era muito novo, fui para a escola para pintar e foi então que passei a frequentar as aulas de História do Cinema com o mítico crítico do Village Voice, Jim Hoberman. Aprendi quase tudo o que sei sobre história do cinema nessas aulas. Ele deu-nos a ver Dryer e Griffith juntamente com Anger e Warhol. Penso que foi esse mix de experiências arcaicas no cinema primitivo e de filmes de arte underground que realmente influenciou as minhas primeiras tentativas de fazer cinema.