teatro
Uma descida ao lado negro com Bruno Nogueira
"A Matança Ritual de Gorge Mastromas" no Teatro Nacional D. Maria II
Depois de Órfãos, o cineasta e encenador Tiago Guedes (Coisa Ruim, Entre os Dedos) regressa ao teatro do britânico Dennis Kelly com A Matança Ritual de Gorge Mastromas. Através do percurso de vida de um homem banal, a peça é um convite à reflexão sobre a irresistível tentação do mal. Bruno Nogueira lidera um elenco onde pontuam António Fonseca, Rita Cabaço, Inês Rosado, José Neves, Beatriz Maia e Luís Araújo. Em cena, no Teatro Nacional D. Maria II, até 30 de junho.
No final desta descida aos infernos da condição humana proposta pelo dramaturgo britânico Dennis Kelly, poder-se-á pensar na velha máxima de Rousseau que todo o homem nasce bom e a sociedade é que o corrompe. Decerto, Gorge Mastromas, de quem, em retrospetiva, vamos conhecer o percurso de vida, desde a infância comum até à chegada à idade adulta, se enquadra nesse princípio. Porque, na essência, o jovem Gorge optou sempre pelo bem, mas um conjunto de vicissitudes mais ou menos corriqueiras foi tornando irresistível ao adulto a tentação do mal.
À semelhança de Fausto, Gorge acaba como que por vender a alma ao diabo e perante os dilemas morais que lhe surgem, o caminho escolhido torna-se o mais perverso. Assim, o homem banal, nem mais nem menos inteligente do que os outros, alcança a riqueza e o poder e uma tenaz capacidade de indiferença à mentira. Ou melhor, Gorge torna-se num homem de sucesso abraçando mentiras sucessivas de que o próprio se convence serem verdades. A sua, e só sua, verdade.
Como aponta o encenador Tiago Guedes, o mais fascinante neste texto é “a forma que o autor encontrou para confrontar o espetador, reservando-lhe, através do coro que enquadra a ação, o julgamento da personagem”. “Diria que Gorge Mastromas é o reflexo daquilo em que nos podemos tornar nesta sociedade”, e que perturbador pode ser pensar que “agir pelo bem não nos leva a lado nenhum.”
Guedes vai mesmo mais longe, e partilha a sua inquietação pessoal, enquanto pai: “pretendo sempre transmitir aos meus filhos os valores certos, mas que assustador pode ser perceber que esses valores não se coadunam com o mundo em que vivemos”. Por isso, “prefiro imiscuir-me de julgar o Gorge, não pensar se ele é vítima ou culpado.”
Desde que leu A Matança Ritual de Gorge Mastromas, Guedes pensou em Bruno Nogueira como o ator ideal para o papel. “Senti que o Bruno tinha a escala adequada para o interpretar e, tendo em conta todo o reconhecimento, e também o poder que tem, vi poder emprestar ao personagem a dimensão dramática necessária.”
Para Bruno Nogueira, que aqui abraça um registo completamente diferente daquele que lhe granjeou notoriedade, ser Gorge Mastromas “não é mais nem menos difícil do que fazer comédia. É diferente, porque o drama é também muito exigente”.
Sobre o personagem, o ator sublinha “a grande dificuldade de reconhecer naquilo em que ele se torna pontos de identificação”. Mas, acrescenta, “acho que todos nós encontramos nele muitas semelhanças com alguns tipos que conhecemos. E o que mais me aborrece é acreditar que, a cada noite, quando se deitam na cama, dormem perfeitamente. Pelo menos até serem apanhados”. E, tristemente, conclui: “são poucos aqueles a quem as coisas correm mal.”