música/ teatro
A caminho de ser um recital…
"Malfadadas" no Teatro Nacional D. Maria II
A partir de 20 de julho, Aldina Duarte, Isabel Abreu, Filipe Raposo e Miguel Loureiro apresentam o resultado de uma colaboração a quatro que, em palco, se traduz no respeito pela separação de artes que se complementam: quem canta, canta; quem representa, representa; quem toca, toca; e quem encena, só encena. Malfadadas está em cena, na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II, até ao próximo dia 28.
Isabel Abreu explica a génese do projeto. Tudo começa na admiração mútua existente entre ela e a fadista Aldina Duarte. Nasceu uma “vontade grande de nos juntarmos e de podermos trabalhar juntas. A Aldina falou de quatro fados que já faziam parte do repertório dela (no disco Contos de Fados, 2011): Ainda Mais Triste, letra de Manuela de Freitas (inspirado por Longa Jornada Para a Noite, texto de Eugene O’Neill do qual é protagonista Mary Tyrone), Branca, Branca, letra da mesma (baseado em Um Eléctrico Chamado Desejo, peça de Tennessee Williams, onde a figura principal é Blanche DuBois), Fado Com Dono, escrito por Maria do Rosário Pedreira (servindo-se do mito de Orfeu e Eurídice) e À Espera de Redenção, letra, uma vez mais de Manuela de Freitas (partindo da tragédia Medeia, de Eurípides). Às duas mulheres, a atriz e a fadista, reuniram-se dois homens: o ator, dramaturgo e encenador Miguel Loureiro, com quem Isabel Abreu já tinha trabalhado, e o pianista Filipe Raposo, trazido por Aldina Duarte de outras aventuras musicais.
O trabalho fez-se de uma sucessão de encontros para onde cada um trazia propostas que levaram à reflexão conjunta. As letras dos fados existentes proporcionavam uma primeira dramaturgia. Juntaram-se os textos canónicos das quatro personagens. Miguel Loureiro escreveu ainda um texto para as mesmas personagens. Finalmente a música trazida por Filipe Raposo, de sua autoria e também dos colossos Johann Sebastian Bach e Kurt Weill. “Tivemos uma gestão do tempo completamente diferente do habitual”, refere Isabel Abreu. “Tínhamos semanas em que nos encontrávamos dois dias.” Acrescenta o encenador: “Elas tiveram esta ideia há dois anos, depois surgiram as conversas iniciais, e houve um tempo para desenvolver a parte da escrita. Do que havia nestas personagens, três delas feitas no palco pela Manuela de Freitas, e a da Maria do Rosário que é uma personagem mais mitológica, Eurídice.”
Quatro pilares, quatro figuras que conduziram Miguel Loureiro às fontes da sua proveniência. Os autores, os textos que fizeram evoluir a sua escrita específica para o espetáculo. Um recital de músicas e palavras, com uma dramaturgia que faz incidir a luz nas zonas de sombra. “Fui descrevendo sensações numa espécie de itinerário com vento doentio, as notas musicais entendidas como condições atmosféricas que envolvessem os textos, e de gradações de desgraça: Blanche Dubois presa num colete de forças; Mary Tyrone viciada na morfina; Medeia lidando com a morte, com o assassínio; Eurídice num estado post mortem, no Inferno.”
O espetáculo abre com uma pontuação kurt weilliana de duas irmãs, ambas chamadas de Anna, e que são na verdade uma desdobrada em dois corpos, que amparadas uma pela outra avançam pelo cenário despido de tudo o mais, além do piano, de algumas cadeiras, e do equipamento necessário à apresentação da música, atravessado por uma iluminação bastante crua. Elas entram às cegas, para depois serem possuídas pelas quatro identidades que surgem da complementaridade ao trabalho de ambas. Uma atriz e uma fadista. “Não há nem houve nunca a intenção de ir fazer o que o outro faz. Vive-se mais da sensação do encontro e da comunhão. Podes servir o outro, mas nunca procurar fazer o que o outro faz.” Palavras, uma vez mais, de Isabel Abreu, que remete para a dinâmica pedida de empréstimo ao ballet satírico Sete Pecados Mortais, de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O piano de Filipe Raposo dá o ponto de gravidade no palco, lança a noção de périplo e chega a deslocar-se em cena tal como as duas mulheres que darão voz e funcionarão como silhuetas das outras quatro.