entrevista
Tiago Guedes
'A Herdade' chega aos cinemas a 19 de setembro
A última vez que Portugal teve um filme a competir pelo Leão de Ouro foi em 2005, com O Fatalista, de João Botelho. Tiago Guedes estreou-se no formato longo um ano depois, com Coisa Ruim, e filmou ainda para cinema Entre os Dedos (2008) e Tristeza e Alegria na Vida das Girafas (2019), entre projetos para televisão que lhe deram maior notoriedade, como as séries Odisseia (2013) e Os Boys (2016). Mas nada nos podia preparar para aquilo que A Herdade é, e que Veneza verá antes da estreia em Portugal (dia 19), junto com o decisivo Festival de Toronto, que coloca este filme às portas da América. Misto de western e melodrama que homenageia grandes cineastas de sempre em ambos os géneros, A Herdade é um marco no cinema português. Tem a palavra o seu principal autor.
Em que fase de desenvolvimento se encontrava este projeto quando se deu a sua entrada?
Quando o Paulo Branco me propôs o filme já existia um primeiro guião do Rui Cardoso Martins. Quando aceitei, disse ao Paulo que gostava muito do tema, do assunto, mas que queria mexer no guião. Trabalhei sozinho em cima da versão do Rui, e depois entrou também o Gilles Taurand para trabalhar uma parte, tendo eu procedido à colagem final.
A escolha do ator Albano Jerónimo para o papel principal é decisiva no impacto do filme. Foi evidente para si que o João Fernandes tinha de ser ele?
Foi claríssimo. Lembro-me das conversas prévias que tive com o Paulo Branco e, mesmo antes da reescrita que permitiu que me apoderasse de parte da história para a tornar minha, o Albano era a única pessoa que via com o perfil certo para uma personagem desta dimensão. Não só pelas características físicas, mas também porque ele tem capacidade para aceder a uma loucura que não se percebe bem. Essa zona de ambiguidade tinha de existir no João Fernandes.
A contribuição de Paulo Branco em A Herdade vai muito para além do papel de produtor. Em que áreas se reflectiu o seu contributo?
A vontade de fazer um filme sobre este assunto nasce dele. Quando entro com o desejo de me apropriar emocionalmente do assunto, para não ficar limitado a executar o papel de realizador, o Paulo esteve sempre muito comigo. Não só do ponto de vista técnico, mas tínhamos boas discussões sobre filmes, sobre emoções e sobre cenas que deveriam entrar ou sair.
O filme só tem música na abertura e no fecho. O que justifica no seu entender esta opção?
Não foi algo de que tivesse consciência desde o início. Durante a montagem, com o Roberto Perpignani, comecei a sentir que o filme precisava de espaço e de tempo e de som. Som ambiente, dos ventos, do silêncio. E o processo apanha-me numa fase em que nos meus trabalhos no teatro não queria sublinhar emoções. O papel da música no cinema é o de encaminhar, de direccionar, de dar um determinado ambiente ao espectador. O próprio filme começou a rejeitar algumas experiências que fomos fazendo. A música ficou apenas nos momentos em que surgem os títulos.
A Herdade não mostra sexo ou violência, embora as consequências destes elementos sejam bem visíveis. Isto resulta de uma tentativa de fugir à gratificação mais óbvia do cinema? Ou há outra explicação?
Vou deixar para já de lado a parte sexual e falar das ações propriamente ditas. Gosto muito dos espaços que ficam “entre”. Entre os eventos. O filme tem bastantes eventos, mas consegui encaminhar de tal forma a narrativa para poder viver só com as consequências dos eventos. Uma zona de ambiguidade emocional de que gosto muito. Daquilo que as personagens estão a sentir. De onde tiramos sempre coisas diferentes da pessoa sentada ao nosso lado. Relativamente à questão sexual, como é um assunto tão fundamental naquela história, não quis mostrar o que não precisava de ser mostrado.
O filme dura duas horas e 45 minutos. Trata-se da primeira e definitiva versão de montagem ou existiram outras com diferentes durações?
No primeiro corte tínhamos três horas. Mas existia uma consciência muito clara de que havia várias cenas para resolver. Coisas que não estavam a funcionar. Falei com o Paulo Branco para saber se a duração poderia ser um problema. Respondeu que seria a que o filme pedisse. Então eu e o Roberto Perpignani estivemos muito à vontade no deixar o filme correr para o sentimento que pretendiamos.
O cinema português não costuma apresentar guiões com tanta qualidade de escrita e fôlego romanesco. As fontes de inspiração do filme são predominantemente de ordem literária ou cinematográfica?
Uma das minhas grandes vontades foi a de trazer para o filme o prazer que retiro da leitura. Gosto muito dessa zona que a leitura permite, de liberdade interpretativa, e quis que o interior das personagens e o que se passa dentro delas fosse entregue dessa forma. Quanto às referências que tínhamos, eram de filmes clássicos do cinema americano e italiano. Posso falar do Leone (Aconteceu no Oeste, de 1968), do Minnelli (A Herança da Carne, 1960); enquanto preparávamos o filme, andámos a rever filmes de que gostávamos desde a infância e conhecer outros novos. Do ponto de vista da literatura não consigo destacar uma referência. O que gosto é dessa regra fundamental que permite seres tu a construir o teu filme.
A Herdade exigiu um aturado trabalho de reconstituição? Que relação estabelece entre as limitações da produção e as soluções encontradas?
Muitas coisas estão preservadas. Aquele terreiro está muito assim, mas obviamente tivemos que apagar alguns sinais de modernidade, embora isso hoje seja relativamente simples. O terreiro foi uma das razões pelas quais escolhi aquele espaço. O terreiro com o pilarete no meio, e aquela dimensão foi o que me fez querer muito filmar aquela casa. Mas, parte dos interiores, não foram filmados no mesmo sítio.
Homens, cavalos e grandes espaços são elementos que associamos ao género do western. Podemos fazer esta leitura, a de A Herdade poder ser visto como um western lusitano?
Sim, e até era mais do que acabou por ficar. Filmámos bastantes cenas deles a cavalo, coisas mais típicas do western, mas acabaram por sair. Houve uma necessidade na montagem de tornar este João Fernandes heróico e humano. Ou seja, não querer transformá-lo num boneco em que não se acredita, e precisávamos de ter muitas zonas cinzentas nele. Acabou por ficar só a parte final, em que ele monta a cavalo noite fora, e adquire outra força.
No seu entendimento da personagem principal (João Fernandes), trata-se de alguém forte com uma capacidade invulgar de enfrentar as adversidades, ou será antes um homem fraturado por dentro, obrigado a crescer depressa de mais e a abdicar da sua inocência?
Ele parece um valente, mas depois há momentos em que não consegue assumir-se perante certas coisas. Eu adoro essa contradição na personagem, acho que a torna muito humana. Esse lado de cobardia, de dificuldade nos afectos, são zonas muito queridas para mim quando estou a trabalhar personagens. A dificuldade na comunicação, a incomunicabilidade que existe uns com os outros. Gosto disso. E gostei muito de trabalhar um homem valente que resolve vários assuntos, mas que nalguns momentos-chave não consegue.
O olhar do filme sobre aquela herdade e o seu mundo tem, a seu ver, alguma nostalgia ou procurou antes filmar uma realidade histórica que os novos tempos vieram substituir?
Nostalgia não tenho. Agradou-me muito no argumento original e na ideia base do Paulo Branco ver a história do nosso país de um ponto de vista que normalmente não é retratada. Para mim é claríssimo que ela tinha que mudar. Que aqueles tempos iam acabar e que aquela forma de viver ia terminar. Isso é claro nas condições de vida dos trabalhadores, na obrigatoriedade do ordenado mínimo. Tudo isso tem como consequência o fim dessa maneira de estar.
Demarcando-nos por último deste seu filme em particular, diga-nos de que cineastas se sente mais devedor? Portugueses ou estrangeiros.
São muitos e muito diferentes. Acho que tem a ver com certas fases. Os meus incontornáveis são pouco originais. Vou-lhe falar do Kubrick. Vou-lhe falar do Scorsese. Quanto a portugueses, não tenho ninguém de quem me sinta devedor, no sentido de lá ir beber.