Éric Lapierre

"A arquitetura tem de ser racional, inteligível e compreendida por todos"

Éric Lapierre

O arquiteto francês Eric Lapierre é o curador principal da Trienal de Arquitetura de Lisboa 2019, que tem início a 3 de outubro. Há cerca de um ano, completou um projeto de residências universitárias em Paris, que venceu um prémio de melhor edifício construído em França em 2018, entre outros prémios internacionais.

O seu trabalho está muito ligado ao mundo académico?

Também sou um arquitecto no sentido tradicional do termo, tenho um ateliê em Paris, onde sou professor, bem como em Lausanne (Suiça) e em Harvard (EUA). Cerca de metade do meu tempo é dedicado ao ensino e o restante ao meu ateliê. Para além disso, escrevo livros e artigos sobre temas contemporâneos da arquitetura.

Esta edição da Trienal tem como tema central A Poética da Razão. Foi o Eric Lapierre e a sua equipa que o escolheram?

É um trabalho que tenho desenvolvido com uma equipa de professores com os quais colaboro na escola de arquitectura (École d’Architecture de la Ville et des Territoires à Paris-Est). Estavamos a trabalhar o tema há já cerca de um ano, no campo académico. A Poética da Razão é uma pesquisa que procura definir as especificidades da racionalidade da arquitetura. O convite foi oficializado há cerca de três anos, no final da Trienal anterior (2016). Isto permitiu que tivéssemos todo esse tempo para trabalhar o tema, um prazo que permite fazer uma pesquisa mais profunda, ao invés de outras bienais onde, por exemplo, se tem apenas seis meses de preparação.

De que maneira caracteriza essa racionalidade?

Para a nossa equipa é importante dizer claramente que a criação é parte da intuição, mas também está baseada na racionalidade. A arquitetura é uma arte pública, as suas obras não estão fechadas em museus ou colecções privadas. Pertencem a todos, não apenas ao arquitecto ou aos seus clientes, fazem parte do espaço público e da cidade. Assim, é importante afirmarmos que a arquitectura tem de ser racional, inteligível e compreendida por todos, e que para atingir esse propósito tem de se basear em premissas racionais. Note que quando me refiro à racionalidade, não é que esta seja mais aborrecida ou chata do que algo mais subjetivo. A arquitectura tem sempre algo de subjectivo, mas esta parte não tem de ser a mais relevante. É importante pensar que a razão é glamorosa. E que envolve muita imaginação.

Não são conceitos que se costumam classificar como antagónicos?

Não há oposição entre racionalidade e sensibilidade ou sensualidade e imaginação. Uma das nossas exposições, Espaço Interior, curada por Fosco Lucarelli e Mariabruna Fabrizzi, é sobre a imaginação na arquitetura. Mostra que um arquiteto deve começar por criar o seu próprio imaginário, como corolário de um processo racional. Deve ir para além do gosto: os arquitetos precisam de razões mais sólidas para agir e para julgar as coisas. Para o público, a apreciação tem a ver com o gosto de cada um, o que é natural. Para um arquiteto, tal como um artista, há um processo racional no imaginário, que vem da memória, das classificações, da escolha do campo ou da tradição em que gostaria de inscrever o seu trabalho. Estes aspectos pertencem a um processo de racionalidade que não é seco nem aborrecido, nem menos interessante do que a criatividade. Há uma ponte entre racionalidade e criatividade que é impossível de destruir. Racionalidade é um modo de inscrever as nossas obsessões ou desígnios no campo da cultura comum. É o mediador entre essas obsessões íntimas e a cultura comum.

É uma ferramenta?

Sim, uma ferramenta, uma rede de interpretação e de leitura. Algo que abre a imaginação.

“A arquitetura sempre respondeu às questões sociais contemporâneas”, considera o curador principal da Trienal de Arquitetura de Lisboa 2019

 

Como é que isso se relaciona com a individualidade? Por exemplo, com os arquitetos de grande nomeada que têm um estilo muito reconhecível?

Está a falar dos starchitects [“estrelas da arquitetura”]. Aqui em Portugal têm alguns, tal como o Siza Vieira. São pessoas que desenvolveram uma visão pessoal da arquitectura, ao longo de um percurso. Estes arquitectos estão profundamente conscientes do peso da sua cultura e que por essa razão, as suas obras são facilmente apropriadas pelo público. Para mim, a questão da disciplina da arquitectura é também enfatizar que ser arquitecto é estar envolvido nesta cultura. É o facto de inscrever o seu trabalho conscientemente no fluxo da cultura arquitectónica que permite que se façam coisas colectivas. É algo muito maior que um indivíduo. Fazer arquitetura é fazer algo colectivo, ainda que se faça uma casa privada: é sempre colectiva porque pertence à cultura comum da arquitectura.

Os nomes das exposições da Trienal sugerem que Beleza Natural e Espaço Interior são de um universo mais interior e que Economia de Meios e Arquitetura e Agricultura: Do lado do Campo são de um universo mais racional.

Não diria isso, porque tentamos definir as especificidades da racionalidade da arquitectura e toda esta racionalidade está essencialmente baseada na Economia de Meios. As outras exposições abordam aspectos específicos da racionalidade da arquitectura. Beleza Natural é sobre o facto de precisarmos de uma estrutura para que um edifício se mantenha em pé. É sobre as escolhas que se podem fazer para conceber uma estrutura.

Pode especificar?

Considere, por exemplo, um ramo de uma árvore. Tem a forma e a quantidade de matéria exactamente suficiente para se equilibrar. Pode replicar-se esta qualidade nas estruturas dos edifícios, por exemplo de maneira a cobrir a maior extensão possível de espaço com o mínimo de material. Economia de meios é um modo de pensar intimamente ligado aos processos naturais. Espaço Interior lida com o cérebro do arquitecto e sobre o modo como o arquitecto usa processos racionais para construir o seu imaginário. Recorre a maquetas, desenhos, realidade virtual e uma série de objectos que são uma espécie de cabinets de curiosités. Agricultura e Arquitetura debruça-se sobre o ambiente e os problemas que estamos actualmente a sofrer como o aquecimento global. A exposição evoca a história do ambiente e propõe quatro cenários para o futuro próximo. É um modo de alertar o público que temos de mudar drasticamente e em breve. E que para isso precisamos da arquitectura. A arquitetura sempre respondeu às questões sociais contemporâneas. Quando atravessamos uma crise pode ser muito fácil dizer que não precisamos de arquitectura, mas se amanhã o ambiente é mau, feio e as pessoas estão deprimidas, temos de ter soluções.

Acredito que consiga mobilizar os seus alunos com estas questões, mas como podemos consciencializar os poderes públicos, os nossos líderes ?

Certamente os nossos líderes não estão ainda prontos, mas tem havido uma evolução. Há dez anos, apenas os partidos ecológicos falavam nestes assuntos. Atualmente, excetuando algumas figuras mais extremistas, como Trump ou Bolsonaro, qualquer líder político razoável aborda estas questões. Não penso que consigam já tomar as decisões certas porque  as medidas necessárias seriam difíceis de explicar às populações. No futuro próximo, essa vai ser uma das questões centrais: como vamos conseguir impor as mudanças necessárias a quem se habituou a viver esbanjando energia e recursos.

Pensa que há uma responsabilidade dos arquitectos em fazer passar esta mensagem, por exemplo aos seus clientes?

Em parte sim. Quando se tem um contrato com um cliente não é fácil convencê-los, porque pode implicar um aumento dos custos ou mudar de tal maneiro o projeto que eles ficam receosos. Eventos como a Trienal são ideais neste aspeto, porque não sofrem a pressão do mercado, são livres em todos os sentidos do termo. Se dedico o meu tempo a um evento como este é para tentar educar a sociedade de um modo que não consigo nas escolas, por exemplo. Penso que temos o dever de o fazer.