Cristina Carvalhal

‘O Dia do Juízo’ “é uma peça sobre a nossa responsabilidade individual”

Cristina Carvalhal

Um acidente de comboio ocorrido junto de uma pequena cidade abala profundamente toda a comunidade local. Este é o ponto de partida de O Dia do Juízo, peça escrita por Ödön von Horváth que estreia dia 10 de outubro, no Teatro São Luiz, com encenação de Cristina Carvalhal. A Agenda Cultural de Lisboa esteve à conversa com a encenadora sobre esta parábola intemporal que fala de culpa e de inocência, interpelando “a nossa responsabilidade” enquanto cidadãos num tempo dominado pelas imagens e pelas redes sociais.

Foi a última peça escrita pelo dramaturgo austro-húngaro Ödön von Horváth, em 1937, pouco antes de falecer aos 36 anos. Ao longo da sua curta mas profícua vida de escritor (iniciada em Berlim, no início da década de 1920), Horváth tornou-se autor de um teatro que espelha uma época ensombrada pela ascensão e triunfo do nazi-fascismo. Depois de décadas em que permaneceu praticamente esquecida, a sua obra irrompeu nestes anos de crise económica e social por alguns dos grandes palcos da Europa, nomeadamente em Inglaterra (onde era um autor praticamente desconhecido) ou na Alemanha que o “redescobriu” com particular entusiasmo.

Portugal, naturalmente, não foi exceção. Horváth tornou-se, hoje, um dramaturgo representado com regular assiduidade nos nossos palcos (a exemplo, ao longo dos últimos anos Tonán Quito dirigiu Histórias dos Bosques de Viena, Fé, Caridade e Esperança e Casimiro e Carolina, e a Companhia de Teatro da Almada levou a cena as peças Em direção aos céus e Noite da Liberdade). Agora, é a vez de Cristina Carvalhal apresentar com as “suas” Causas Comuns, O Dia do Juízo, mais uma tragédia de Horváth que é, como todas as suas peças, uma “comédia”. Mas, uma comédia sombria a que a encenadora emprega um ambiente fantasmático, sublinhado pelo trabalho em vídeo da autoria do realizador Pedro Filipe Marques.

Passado numa pequena cidade rural, em O Dia do Juízo acompanhamos a rotina do Sr. Hudetz (Carlos Malvarez), chefe da estação de comboios e seu único funcionário desde que o Estado decidiu racionar os gastos com pessoal, zelando meticulosamente para que nenhum sinal falhe. Uma noite, porém, Hudetz é seduzido por Anna (Júlia Valente), a jovem filha do taberneiro local (Pedro Lacerda), e falha por segundos a sinalização. Ocorre então um terrível acidente que, não só afetará brutalmente a vida do chefe da estação, como a de toda a comunidade, colocando a nu pequenos dramas de personagens em permanente conflito com a própria perceção do acontecimento.

Carlos Malvarez e Ivo Alexandre numa cena do espetáculo. ©Estelle Valente

Depois de um longo período de esquecimento, Ödön von Horváth tornou-se, nos últimos anos, um dramaturgo muito revisitado. É um autor para tempos sombrios?

Já queria ter feito esta peça há uns quatro ou cinco anos, precisamente no período da troika. Porém, só agora foi possível. O Horváth escreveu-a em 1937, já com Hitler no poder, retratando um tempo de crise, com falta de empregos, com a desvalorização da moeda e com a fome a assolar muitos europeus. Nos anos da troika, muitos desses problemas ressurgiram um pouco por toda a Europa, tendo-se refletido com maior violência em economias mais frágeis, como a portuguesa. Talvez por isso, nos últimos tempos eclodiram tantas revisitações à obra de Horvath, autor que tão bem espelha tempos difíceis.

E porquê esta peça especificamente?

Apesar de estarmos a viver um tempo de recuperação, esta é uma peça que aborda questões intemporais como a responsabilidade individual – a do chefe da estação que falha o sinal, a do talhante que acossa a noiva por ciúmes, etc. – ou a condição da mulher – o preconceito sobre a mulher mais velha que casou com o jovem, a desconfiança perante a rapariga que usa produtos de beleza… São temas presentes nos dramas de cada personagem e acabam por ter repercussões em toda a ação.

O sublinhado à responsabilidade individual é um alerta para todos nós?

A nossa responsabilidade, hoje, é acrescida porque, através da internet, podemos veicular todo o tipo de opiniões. Vivemos numa sociedade inundada de imagens e informação, muitas delas falsas, que desfilam sem filtros de qualquer espécie. Hoje, através de redes sociais, cada um de nós tem quase o poder de, consciente ou não, provocar revoluções. O alerta que a peça deixa é que cada um de nós, mesmo nos mais pequenos gestos, é responsável na construção da coisa pública.

Mas, esta é também uma peça sobre a culpa…

Com certeza. Faz parte da nossa civilização judaico-cristã, e persegue-nos desde que nascemos [risos]. Mas é, sublinho, uma peça sobre a responsabilidade. Veja-se o caso do acidente: o Estado racionalizou tanto os meios que conta apenas com um empregado para sinalizar o tráfego que passa pela estação. Provavelmente, se houvesse mais um trabalhador, o sinal não falharia e não se dava a tragédia. No apontar de responsabilidades, o chefe da estação falhou, mas o Estado não assumiu as suas responsabilidade ao colocar sobre a supervisão de um único homem a segurança dos passageiros.

O espetáculo tem “um lado espetral que pode contextualizar este tempo em que vivemos, em que as coisas são cada vez mais tomadas pela aparência e pelo imediatismo.”

 

A utilização do vídeo é, para além de ser por vezes uma contracena, o espelho sobre a atualidade?

Achámos que dava muitas valências ao espetáculo. Por um lado sublinha a volatilidade da opinião pública, que passa muito pelas imagens, pela manipulação da informação em redes sociais, cada vez mais capazes de fazer eleger “capitães Bolsonaros”. Depois, dá-nos também um lado espetral que pode contextualizar este tempo em que vivemos, em que as coisas são cada vez mais tomadas pela aparência e pelo imediatismo.

Traçando um paralelismo com as redes sociais, aquilo que se passa na peça é também essa capacidade de naquela pequena comunidade cada um dos seus elementos passar de herói a vilão de um momento para o outro…

É um pouco como quem lê o título e não se interessa por ler o resto da notícia. Ou seja, basta o título para formar uma opinião e difundi-la. Na peça, dá-se um fenómeno semelhante quando uma apreciação ou um boato sobre alguém é capaz de contaminar toda a comunidade.

O Dia do Juízo reúne muitos atores como quem já trabalhaste e outros que diriges pela primeira vez. Feliz com este belíssimo elenco?  

Muito, mesmo muito. Conseguimos reunir cúmplices de muitos anos e muitos projetos, como a Manuela Couto e a Cucha Carvalheiro, a atores com quem queria muito trabalhar, como o Paulo Pinto ou o Ivo Alexandre. A eles consegui juntar o Carlos Malvarez, o Eduardo Frazão, o Pedro Lacerda e a jovem Júlia Valente, que selecionámos num casting e com quem estamos muito contentes. É um elenco de luxo!