entrevista
Jérôme Bel
'Rétrospective' é apresentado no âmbito do Doclisboa
Jérôme Bel, coreógrafo parisiense cujo percurso de criador leva já 25 anos no ativo, é um dos elementos do júri da Competição Internacional do Doclisboa 2019. A 19 de outubro, sábado, estará na Culturgest para apresentar e debater um dos seus últimos projetos, o vídeo Rétrospective, que organiza cronologicamente vinte cenas retiradas das suas peças, e por ele escolhidas. Ficámos a saber também que poderá andar à procura de uma atriz lisboeta para a sua próxima criação. Atrizes de Lisboa e restantes leitores, segue-se o produto da nossa entrevista com Jérôme Bel.
O que o atraiu no convite feito pelo Doclisboa, além da possibilidade de mostrar Rétrospective (2019), um dos seus últimos trabalhos?
O meu trabalho não tem uma relação com o cinema. Fiz este filme de maneira muito experimental, como forma de dar exposição ao meu trabalho, e para grande surpresa minha, tenho recebido convites de festivais de cinema. Dá-me enorme satisfação pois permite que um novo público possa descobrir o meu trabalho.
Aceitaria ter como lema para as suas criações “uma dança para todos e tudo pode ser visto como sendo dança”?
É uma forma simplificada de ver as coisas, espero que o meu trabalho não se resuma a isso. Mas sendo uma das questões que levanta, posso aceitá-lo.
Alguma vez teve a intenção de provocar o público nos seus espetáculos?
Nunca na vida. Sempre fiz o que me pareceu ser necessário. Prestei muita atenção, sempre que trabalhei sobre a articulação do sentido, para que toda a gente pudesse compreender o que procurava expressar, mas uma parte do público, a parte burguesa, a academia, os profissionais da profissão como dizia Godard, os que acreditavam saber o que era a dança, insurgiram-se e provocaram o escândalo. Essas pessoas estão hoje esquecidas, na reforma, ou estagnaram nas redações do seu jornal ou na cave do Ministério da Cultura. Travou-se uma batalha estética, venci-a e pude prosseguir com o meu trabalho sem esses filistinos.
Lembra-se de alguma reação particularmente violenta, que tenha ido além dos protestos verbais ou do abandono da sala?
Recordo-me de que uma vez um espectador tentou dar-me um murro na cara.
A razão para ter abandonado desde cedo a nudez liga-se ao facto de se ter tornado um cliché na performance?
Não, tratou-se de uma ideia para um espetáculo apenas. O espectáculo seguinte era sobre o vestuário, no caso sobre as t-shirts que toda a gente usa sem se preocupar com o que trazem escrito.
Rétrospective apresenta uma memória pessoal dos seus trabalhos. Que interesse tem hoje para si aquilo que fez?
São várias as razões que levaram a estas escolhas. Após a peça Véronique Doisneau (2004) para essa bailarina da Ópera de Paris, ficou claro para mim que deveria abandonar os solos autobiográficos. Mais recentemente, o encenador suíço Milo Rau pediu-me que participasse na série de trabalhos que estava a começar em Gand, intitulada Histoire du théâtre. Respondi-lhe que saberia apenas fazer a história do meu teatro. Ao mesmo tempo, uma produtora de audiovisual propôs-me que realizasse qualquer coisa para televisão sobre o meu trabalho. Comecei por tentar escrever a minha autobiografia, debruçando-me sobre os arquivos filmados da companhia. Contar a minha vida de coreógrafo rapidamente me aborreceu; por outro lado, pus-me a imaginar o que resultaria da montagem de excertos de várias peças para esse projeto televisivo. Percebi que o que tinha em mente nunca poderia ser exibido pela televisão que é um meio bastante formatado. Decidi então fazer uma nova peça, que seria um filme para projetar nos teatros. O que é, acredito, uma péssima ideia! Mas este filme não pode passar em mais lado nenhum. Não tem ambição cinematográfica, é constituído por imagens de arquivo, pela captação de espetáculos, daí um filme para televisão, mas algumas imagens são de muito má qualidade. Pensei disponibilizá-lo através do YouTube mas como existe nudez não é possível. Um museu não seria opção porque existe uma dramaturgia, uma cronologia: não podemos apanhá-lo em curso como fazemos nos espaços das exposições. Em suma, só restavam os teatros. É uma conclusão por defeito, mas o teatro é verdadeiramente o espaço onde me sinto livre. Tenho a sensação de poder fazer tudo o que me apeteça. O material de que dispunha são dezanove peças. Foi somente aí que tive consciência de que seria a 20.ª peça e de que tinham passado cerca de 25 anos desde que comecei a produzir espetáculos. Não seria motivo para festejar, mas sim refletir: em vez de fazer algo novo, ver o que tinha para me contar esse conjunto de peças antigas. Para meu grande espanto, o que se impôs no momento em que assistia a todas essas imagens de arquivo, foi a dança. A dança é apenas uma das questões levantadas pelo meu trabalho anterior mas agora, com o recurso à imagem em movimento, o que se revelou foi o caminho doloroso e tortuoso da dança e da coreografia nos meus espetáculos. Digo agora porque esta retrospetiva é produzida a partir do meu momento presente. Tenho a certeza de que se a tivesse feito há cinco anos ela seria diferente e será de novo diferente se voltar a fazê-la dentro de cinco anos. O que me impressionou enquanto fazia mentalmente a colagem das cenas umas nas outras, imaginando o trabalho do montador, foi a lógica de alguns pressupostos coreográficos que pus em prática em certos momentos e durante algumas peças.
O que procura nas artes performativas enquanto espectador?
Ter experiências novas.
A diversidade humana é aquilo que continua a inspirá-lo enquanto criador?
Sim, a diversidade humana produz danças diversas e explorei essa via em anos recentes com grande alegria.
Uma vez que a sua companhia deixou de se deslocar de avião (por razões ecológicas), nunca mais apresentará os seus trabalhos fora da Europa?
Não, de forma alguma. Em 2007, eu vinha de avião de Melbourne para Paris. Tínhamos estado a apresentar The Show Must Go On. Num dos jornais oferecidos a bordo, li um artigo que afirmava que devido ao aquecimento do planeta, todas as pessoas deveriam reduzir a sua pegada de carbono. Ao meu lado, no avião, iam os 20 dançarinos da companhia, e tive a ideia de que a partir daquele momento, não viajaríamos mais com toda a companhia, e que enviaria apenas dois ou três dançarinos para que eles montassem os espetáculos no estrangeiro com recurso a dançarinos locais. Foi a minha primeira ação ecológica. Em 2014, a programadora de um importante teatro parisiense fala-me de um espetáculo sobre ecologia que irá receber. Entusiasmado com a notícia, pergunto qual a origem da companhia. “Austrália”, diz-me ela. Nesse momento senti que havia ali qualquer coisa de errado: como podemos exprimir qualquer coisa em termos artísticos, fazendo exatamente o seu oposto. Mais recentemente, já este ano, estou no meu apartamento de Paris. Regulo o aquecimento de modo a poupar o máximo de energia possível. De repente dou conta de que dois dos meus assistentes estão a regressar de Hong-Kong, onde estiveram a remontar a peça Gala com dançarinos locais, e dois outros meus assistentes deslocam-se para Lima com o objetivo de remontar o mesmo espetáculo. Então concluo que eu próprio sou um hipócrita e que a minha vida se resume ao mau teatro, totalmente vaidoso. Entro numa depressão que se prolongará por semanas até chegar à conclusão de que o meu trabalho não pode continuar a contribuir para a destruição do planeta, e decido que nem eu nem qualquer elemento da minha companhia viajará mais de avião. Isto causou o pânico generalizado no seio dos meus colaboradores mas depois instalou-se a calma e começámos a ponderar alternativas para podermos trabalhar internacionalmente sem viajar de avião. Nessa altura estava a iniciar os ensaios da peça Isadora Duncan em Paris com a dançarina Elisabeth Schwartz, e tive a ideia de fazer uma segunda versão da peça com uma outra excelente dançarina “duncaniana” de Nova Iorque, que tinha descoberto na internet, Catherine Gallant. Existirão duas versões da peça: uma que rodará na Europa e outra no nordeste dos Estados Unidos. As duas dançarinas deslocar-se-ão apenas de comboio. Quanto aos outros espectáculos, trabalhamos atualmente as partituras das peças mais requisitadas no estrangeiro, tais como The show must go on e Gala. Trabalhamos com coreógrafos locais das cidades que programam essas peças (Taipé, Cidade do México, Buenos Aires, Beirute, etc.) de modo a que eles possam reconstitui-las com base nas partituras, vídeos e ensaios por teleconferência. O meu próximo projeto é uma peça para uma atriz e vou trabalhar em simultâneo com diferentes intérpretes em Berlim, Paris, Sheffield e Nova Iorque por enquanto, e talvez Lisboa, se encontrar a atriz ideal. Isto muda completamente a minha forma de trabalhar e é muito estimulante.
Já encontrou resposta para o que é o teatro?
Sim.