Rui Zink

"A imaginação por vezes é apenas lucidez, vê mais longe"

Rui Zink

Falámos com Rui Zink sobre o seu novo livro Manual do Bom Fascista, editado pela Ideias de Ler. Embora não seja uma obra de ficção, cumpre um princípio ficcional: põe-nos na pele de uma personagem. À partida este bom fascista parece muito diferente de nós. Mas, será assim tanto?

Escreveu o Manual do Bom Fascista. Como conhece tão bem esse sujeito?

Porque nasci em Portugal, em 1961, e foi um ano com uma óptima colheita. Acho muita graça às pessoas que agora se queixam que estamos a ideologizar as crianças. Vê -se que não foram meus colegas de escola, onde tínhamos na sala de aulas o retrato do Dr. Salazar e a cruz. Mesmo que não fossemos católicos, eramos obrigados a seguir os seus preceitos. O meu irmão mais velho teve que ir à Mocidade Portuguesa. Eu, por uma razão qualquer, acho que o meu avô disse que eu era asmático, consegui escapar. Mas, ainda me lembro, aos dez anos, no Estádio Nacional, durante um exercício de ginástica, fazerem a saudação do braço estendido. Estamos a falar de 1971, durante a chamada Primavera Marcelista. Como dizem os ingleses: “descanso a minha mala” [I rest my case].

Este manual é um livro de autoajuda?

Se o quisermos colocar dentro de um género, descende de uma linhagem que vem da sátira romana, passa pela Utopia de Thomas More, pelo Elogio da Loucura de Erasmo, e depois, na época moderna, pelo magnífico texto Uma Modesta Proposta de Jonathan Swift que propõe, para resolver o problema da fome na Irlanda, apenas porque é bom para a economia, que os ricos comam os filhos dos pobres. Com isso, Swift inaugura a forma moderna, que já vinha do Erasmo, de dizer as coisas ao contrário. O humor negro moderno, a ironia da nossa época tem à volta de três séculos e esse pai que é o Jonathan Swift. Como vemos, a tradição dos livros de autoajuda como livros humorados é grande, e eu inscrevo nela este texto. Por isso, o slogan publicitário é: Não se contente em ser um facho no armário, seja mesmo um bom fascista! O meu livro pode ser lido por pessoas que não gostam da “coisa”, ou por pessoas que não sabendo que gostam da “coisa” gostam dela. Pelo menos, assim, já ficam mais conscientes, porque o grande inimigo da vida é a estupidez. Há pessoas que passam a vida inteira sem saber o que são.

Afirma que o “melhor fascista” nunca leu um livro. Como o pretende convencer a ler este?

Dizendo que é para rir e que tem bonecos. Em Portugal lê-se pouco. A indústria do livro sobrevive graças a duas instituições maravilhosas: o Natal e os aniversários. É o único país que eu conheço que quando compro um livro perguntam: “é para oferecer?” A hipótese do livro ser para ler é mais improvável do que ser para oferecer.

“Vou às escolas e as pessoas dizem-me – nunca li um livro seu, mas gostava muito de o ver na televisão.”

Confesso que me revi nalgumas situações descritas no livro. Nessa altura o Manual, além de muito divertido, torna-se inquietante. É esse o objectivo?

Acho que o humor, a ironia interessante é sempre inquietante. Um sinal de que estamos a ficar com a cabeça estreita é quando apontamos o dedo aos outros: a velha brincadeira do individuo que se queixa do engarrafamento ou dos condutores de domingo, sem perceber que ele é o engarrafamento e que ele é o condutor de domingo a queixar-se dos outros. Ler este livro e começar a rever-se nele é um sinal de saúde mental. O meu medo são as pessoas que lêem o livro e não se revêm de todo porque se acham o máximo.

É uma questão de lucidez?

Sim. Não lhe posso garantir, nem a si nem a mim, uma vida maravilhosa até ao fim, cheia de lucidez. Mas acho que a prevenção para ficarmos estreitos da cabeça é aceitarmos sempre a possibilidade de estarmos a ficar estreitos. Vivemos numa euforia do ter razão, seja à direita seja à esquerda (o fascismo é de direita, mas também há fascistas de esquerda). Eu penso de forma clara que a marca da obra literária é a ambiguidade. Num texto comunicacional o objectivo é só esse: se em vez de um café, pedir ao balcão “aquele néctar escuro que revitaliza os nervos e as sinapses” a senhora do bar vai dizer – O quê? Ao contrário, num texto literário é bom haver ambiguidade, o prazer da leitura de um poema é o prazer de ler um texto ambíguo. O que é engraçado é que, hoje em dia, mesmo no campo da literatura, os bárbaros estão chegando. Estão a tornar óbvio tudo o que não o devia ser. Num mundo onde há cada vez mais gente convencida de que tem razão, onde os líderes políticos dizem “venham por aqui que eu tenho razão” e, às vezes, são os mais insanos que o dizem (o homem mais genial, segundo ele próprio, é Donald Trump, e o mais honesto, segundo o próprio, é Bolsonaro), se calhar a função moral do objeto literário e do humor escrito no século XXI é não ter razão. O escritor é aquele que diz: “eu não tenho razão, mas vou tentar ajudar-vos a pensar e, como sei que vocês se cansam depressa, pelo meio vou dizer uma piada ou outra.”

Por isso diz que mais importante que perguntar se o fascismo está “entre nós” é descobrir se está “dentro de nós”?

É sempre esse o princípio, até porque não há um gene do fascismo. Dizer que há tipos que nascem fascistas é terrível, é já fascista em si mesmo. O fascismo está dentro de nós é a tese do livro. Entendo que há um fascismo histórico e político e outro intemporal que, volta e meia, vem ao de cima, a maior parte das vezes está a larvar, outras vezes põe a cabeça de fora, noutras chega ao poder. Nos EUA, chegou ao poder. O Philip Roth escreveu uma fantasia há alguns anos [A Conspiração contra a América] e agora temos o resultado. Alguém vai apontar que a culpa do Trump é do Philip Roth. É possível. A imaginação por vezes é apenas lucidez, vê mais longe.

O bom fascista do seu Manual é português. Em que se distingue dos seus congéneres estrangeiros?

Pela mansidão. Penso que um Manual do Bom Fascista em Espanha ou na Alemanha seria menos manso. É sintomático que nunca tenhamos repensado a nossa colonização. Há quem ainda acredite no mito de que o colonialismo português era bonzinho, que “eles” gostavam de nós. O nosso fascismo era como a sociedade portuguesa: oportunista e preguiçoso. Porque nós somos mais o animal que está à espera do que o animal que age.

Diz que o bom fascista nunca ofende, passa a vida a ser ofendido. Vai sentir-se ofendido com este livro?

O drama do livro, ao contrário do artigo de jornal, é que só é lido por quem o quer ler. Portanto, é um objecto de não poder, tem um valor simbólico, mas nunca chega aos leitores a quem queria convencer. Portanto eu não vou ofender os fanáticos do futebol, ou os racistas ou os fanáticos vegans, porque esses não o vão ler. Mas vão saber que existe pelo facebook, porque eu uso muito as redes sociais. Vão-lhes chegar os ecos do livro. Depois, as pessoas que me apetece ofender ou provocar um bocadinho são os leitores compradores do livro que pensam que se vão rir dos outros e acabam por descobrir que a piada é também para eles. Mas aí é uma provocação amável, porque me coloco também como alvo do riso. Ou seja, o livro deixa de ser altivo e torna-se compassivo. Gosto de me ver como uma pessoa compassiva. A luta do futuro vai ser entre a empatia e a falta de empatia. O princípio da ficção é pormo-nos no lugar do outro. E é esse exercício de empatia que dá esperança à humanidade.

Umberto Eco fala da suspeição do fascismo pela cultura, na medida em que esta se identifica com o sentido crítico. O Rui afirma que o bom fascista detesta intelectuais.

É verdade, porém a questão portuguesa do ódio ao intelectual não é muito grande porque, em Portugal, nunca houve muitos intelectuais. É por isso que Portugal é um país bonito, porque é o sítio em que uma pessoa com meio neurónio já passa por génio brilhante. A nossa elite intelectual deixa muito a desejar. É a mesma elite que acha que o Gil Vicente é importante e que não compreende que o teatro sempre foi um sinal da nossa pobreza franciscana. A prova é a falência do teatro português ao longo dos séculos, sempre foi muito poucochinho, com pouca produção. É o elo fraco da nossa literatura: poesia está bem, narrativa também, mas não o teatro. Porquê? Porque o teatro depende de haver um coletivo. Nós somos o país que teve um espectáculo de revista no D. Maria e foi a coisa com maior sucesso. Ainda hoje a grande maioria dos grupos de teatro do país não representam textos de autores portugueses. Há aqui um cosmopolitismo que me doí. Outra prova da falência intelectual portuguesa é o facto de muito dos nossos intelectuais respeitados em certo tempo não terem obra. Não temos um só texto filosófico que seja internacionalmente lido. O único grande filósofo português é português porque o pai nasceu em Portugal: o Espinosa. Quando um polemista como o Alberto Pimenta é sufocado e só agora é que começam a dar-lhe atenção, e a falar como se sempre tivessem gostado dele, são sinais de falência.

E essa falência deriva da falta de coletivo?

Sim, porque sempre fomos muito poucos e nunca houve uma estrutura coletiva para o pensamento. As pessoas estavam sempre isoladas, sempre falando sozinhas. O próprio Fernando Pessoa… metade do que ele disse é pastiche; é bom, mas é pastiche, é regurgitado, uma versão portuguesa do que se fazia lá fora. E isto diminui-nos sempre. Sentem-se sempre as poucas leituras. Eu vou às escolas e as pessoas dizem-me – nunca li um livro seu, mas gostava muito de o ver na televisão. Até nos meios universitários isso se sente. Na faculdade, falo com um colega e ele diz: “não li, mas ouvi dizer que é mau”. Temos sempre as mesmas cristalizações.

Os escritores que cultivam o humor têm mais dificuldade na consagração, em serem levados a sério?

Comigo acontece isto: durante muito tempo chamavam-me “engraçadinho”, agora que o humor está na moda acusam-me de não ter humor suficiente. É verdade que o humor como género é sempre historicamente diminuído, sempre visto com uma coisa baixa. Mas, por vezes, é o humor que melhor agarra a alma de um país, e um bom exemplo é a personagem principal da nossa cultura ser o Zé Povinho. Uma excepção importante foi quando atribuíram o Prémio Nobel da Literatura ao Dario Fo. Ele passeou-se pela Feira do Livro de Frankfurt com a mulher, [a atriz] Franca Rame, vestida de freira dando passinhos de boneco mecânico e sorrindo para toda a gente. Aí tiro o meu chapéu: este homem era palhaço antes de ganhar o Nobel e palhaço continuou no dia do Nobel.