reportagem
Uma casa dos artistas
Nos 25 anos da ZDB
Até parece ter sido noutro tempo e noutro lugar que nasceu uma associação cultural que haveria de marcar indelevelmente as décadas seguintes. A Galeria Zé dos Bois, ou simplesmente ZDB, acaba de soprar 25 velas na certeza de ter cumprido uma missão justificada por todo um passado de intensa atividade dedicada à criação, à produção e à programação de iniciativas culturais, e crente num futuro como entidade viva em permanente questionamento. Uma “casa dos artistas” que é, ao mesmo tempo, um centro cultural situado em pleno Bairro Alto, e onde entrámos guiados por Natxo Checa, Marta Furtado e Sérgio Hydalgo, os atuais responsáveis pela “instituição” (ao fim de todo este tempo, não há como fugir ao termo) que continua a marcar o panorama cultural da cidade nas áreas das artes visuais e performativas e da música.
Quando a 29 de outubro a ZDB abriu as suas portas, num “espaço de cerca de 100 metros quadrados, na Rua da Vinha” ao Bairro Alto, poucos arriscariam supor que um grupo de 15 jovens recém-formados em artes acabava de lançar a semente para aquela que viria a ser uma das mais influentes estruturas artísticas do país. Um desses jovens era o catalão Natxo Checa, então com 25 anos, que lembra a criação da ZDB como “uma questão de sobrevivência”. Estávamos em 1994, o ano de Lisboa – Capital Europeia da Cultura, da abertura do Centro Cultural de Belém e da Culturgest, da Casa de Serralves, no Porto, “e, em conjunto com outros artistas acabados de se formarem nas mais diversas áreas, das belas artes à música, passando pela arquitetura, pelo teatro ou pelo cinema, víamos a Cultura ser tomada pela geração que nos antecedia. Foi preciso tomar a iniciativa, pois só assim o nosso trabalho poderia tornar-se visível.”
Com a “bênção” de Joseph Beuys
Cada um dos artistas associados pagava a parcela correspondente da renda do imóvel da Rua da Vinha e acabava de se comprometer a manter-se por um ano. “O que pretendíamos era mostrar o nosso trabalho, e até final desse ano programámos quatro exposições, vários concertos, um festival de performance e um outro de vídeo internacional”, lembra Natxo. Com a irreverência da juventude, à associação seria dado o nome de Zé dos Bois, uma corruptela do nome do influente artista experimental alemão Joseph Beuys. “Julgo que foi o Tiago Gomes, da revista Biblía, que o sugeriu e, como foi moda nos anos 90 as galerias serem rebatizadas com o nome dos galeristas, pareceu-nos perfeito.”
Aqueles intensos meses iniciais de ZDB acabaram por ser marcantes. “Muito naturalmente, sem pensarmos nisso, definimos com grande clareza o que haveria de ser a ZDB, uma entidade em que a comunidade artística se revê, sejam aqueles que apoiamos, sejam os outros.” Juntar tornou-se o verbo que ainda hoje a atual direção artística conjuga com orgulho quando tem de tomar decisões. “Criámos a ZDB para viabilizar projetos artísticos num espírito de comunidade, com uma ideologia e um pensar próprio e isso mantêm-se: a priori, nunca fechamos a porta a nenhum artista.”
Os verdes anos
Ao fim de um ano, a grande discussão entre os artistas associados era se a ZDB servia somente para dar exposição aos seus trabalhos ou se outros poderiam entrar e comungar desse espaço. A última via acabou por triunfar e nasceu o Festival Atlântico, uma bienal internacional de artes performativas que haveria de decorrer em 1995, 1997 e 1999. Natxo sublinha a ajuda prestada pelo amigo Marcel-li Antúnez, conceituado artista visual catalão, que lhe dava feed back do que se passava no panorama internacional, e foi determinante na construção da programação. E, com humor, recorda os primórdios da internet, em que artistas tão relevantes como Marina Abramovic “tinham na sua página o número de telefone de casa”, o que “facilitava bastante o contacto.”
Apesar do fôlego demonstrado e da experiência internacional decorrente de programar o Atlântico, a ZDB já não tinha residência na Rua da Vinha e debatia-se com a precariedade de espaços para prosseguir a atividade. Natxo acumulava praticamente a responsabilidade de programação em todas as áreas e impunha-se tomar a decisão de continuar com o projeto ZDB, ou acabar e limitar-se ao festival. A opção passou por continuar a ZDB, “garantindo uma programação mais regular ao longo de todo o ano e com isso ganhar maior consistência no meio artístico.”
O Palácio Baronesa de Almeida e o início de um novo ciclo
O regresso ao Bairro Alto, em outubro de 1997, permite à ZDB instalar-se na Rua da Barroca, no Palácio Baronesa de Almeida, um edifício da segunda metade do século XVIII, onde chegou a viver Almeida Garrett e que, no início do século XX, enquanto casa da aristocrata que lhe deu nome, era tido como “terreno neutro” para tertúlias entre “os homens de letras e os homens políticos”, na descrição do pai da olisipografia Júlio de Castilho. É já nesse magnífico espaço de 2500 metros quadrados que a ZDB toma a decisão de terminar com o Festival Atlântico e com a edição da revista f l i r t, uma publicação dedicada às artes, bilingue e com distribuição gratuita.
Natxo nota que, em 1999, a ZDB define um processo de renovação que passa por “deixar de trabalhar especificamente com a geração dos anos 90, refletida em 2000 com uma exposição da dupla João Maria Gusmão + Pedro Paiva, ainda estudantes das Belas Artes”. Nos anos seguintes, “deixámos de ser uma estrutura de vontade para incorporar uma vontade estruturada”. Chegou o “tempo de profissionalizar, de dar uso à experiência adquirida”. “O processo de especialização” fez Marta Furtado entrar na estrutura para desenvolver a área das artes performativas e Nelson e Pedro Gomes, hoje na Filho Único, para programar a área da música até 2006.
Entre a sala de ensaios e a sala de espetáculos
Marta começou por ser uma frequentadora da ZDB até ser convidada para dirigir a área na qual tem formação, conhecimento e, sublinha, “uma maior afinidade”. Em 2005, com o arranque do Negócio, na Rua d’O Século, “o teatro e a dança encontram da parte da ZDB uma resposta à necessidade de espaço físico e condições logísticas para o desenvolvimento de trabalho nessas áreas”. Esse espaço, que Marta define como “uma ponte por entre a sala de ensaios e a sala de espetáculos” acolheu companhias como a Mala Voadora e o Teatro do Vestido ou criadores como John Romão e Patrícia Portela.
Embora encerrado há um par de anos, altura em que a renda do local se tornou incomportável, tal não significou um abrandamento na atividade da ZDB nas artes performativas. “Continuamos com as residências de artistas e, muito em breve, vai surgir um novo espaço,” garante a programadora.
A ZDB a formar novos músicos
Sérgio Hydalgo chega à ZDB, por 2007, já a galeria era uma referência no panorama da música em Lisboa. Porém, o antigo radialista, autor do programa Má Fama, solidificou e diferenciou ainda mais esse papel apostando “numa rede nacional e internacional que agregou estruturas que têm como foco músicos emergentes, ou underground. A isso, juntámos uma programação regular que dá voz e espaço a propostas que não têm visibilidade em mais lado nenhum.”
O papel da ZDB na divulgação da música alternativa, leva Sérgio a crer que “o fervilhar da cena musical lisboeta” se deve muito ao que foi acontecendo no “aquário” (a sala de concertos da galeria com montra para a rua), mas também pela aposta “pioneira de residências na vertente musical, com parcerias na produção de discos ou no acompanhamento próximo dos músicos”, apontando Gabriel Ferrandini como um exemplo recente.
Quando se questiona como é que a ZDB conseguiu trazer a Portugal bandas como Animal Collective ou músicos como Kim Gordon, dos Sonic Youth, a resposta dada passa por outra característica muito especial: a forma como se acolhe e se está disponível “para ir buscar o artista ao aeroporto, para conversar e jantar com ele”. “Eles vêm, são mal pagos, mas saem contentes”, brinca Natxo.
Únicos, after all these years
Mais do que um centro cultural, “somos uma casa dos artistas”. A filosofia ZDB está implícita no modo como se trabalha com os artistas e naquilo que se lhes dá: “meios, visibilidade, acompanhamento e inserção em redes internacionais”.
Natxo sublinha, sobretudo, a relação com os artistas visuais: “o artista que acolhemos na ZDB está aqui o tempo que for preciso e quando nascer um corpo de trabalho com sustentabilidade própria, expomos.” Por isso, com graça, Marta admite que Natxo “nunca os larga, e é pelo mundo fora” – ainda há meses, esteve com André Príncipe no Zimbabué e noutras paragens distantes com Gabriel Abrantes.
Esta forma singular de ser e de estar tem resistido a todos os contextos e, orgulhosamente, o trio que dirige a ZDB assume que, todos os dias, se reinventa para os acompanhar. Afinal, como nos lembra Marta, “esta é uma casa de liberdade. E isso é aquilo que verdadeiramente importa para um artista.”