Batida

'Alojamento artístico local' na Casa Independente

Batida

Pedro Coquenão – mais conhecido como Batida – é autor de uma obra multidisciplinar que inclui música, rádio, dança, artes visuais e plásticas. De 4 a 29 de fevereiro, apresenta, na Casa Independente, um alojamento artístico local que inclui todas estas formas de arte. O projeto conta com a participação de Luaty Beirão.

Nasceste no Huambo e manténs uma forte ligação às origens. Que recordações guardas dos tempos de criança?

Saí de lá muito pequeno. As memórias que tenho foram todas construídas através do que ouvia. Cresci com pessoas que se queixavam do frio e que tinham a esperança de regressar ao local de origem, que se queixavam também de uma certa frieza das pessoas. Adultos que falavam de um outro sítio, de outra realidade. De que não devíamos estar aqui e de que a qualquer momento poderíamos regressar. Estas são as minhas memórias: pessoas adultas que não se coibiam de falar desses assuntos e de política à frente das crianças. Na realidade sou um descendente daquele contexto. Em casa havia música europeia, mas também muita percussão e batuques. Cresci com isso tudo, com saudades de coisas que não conhecia. Com uma sensação de que era marginal e de que não encaixava totalmente nesta realidade.

Lisboa é uma cidade acolhedora?

Lisboa é feita de pessoas de todo o mundo, mais até de pessoas de fora do que das que cá nasceram. Fala-se muito da ideia das cidades serem novas, de Lisboa ser “a nova Berlim”. Os nacionalistas dirão que Lisboa é a “velha Lisboa” e os mais modernos que é a “nova Lisboa”. Acho tudo isso de um provincianismo com o qual não me identifico. As cidades com que me relaciono são cidades de toda a gente. O Trump é um bom exemplo de alguém que se apropria de um sítio com o qual não tem uma relação profunda. Lisboa é uma cidade muito rica em termos de construção de identidade: ela é africana antes de ser europeia, é árabe antes de ser cristã. Tem uma história muito rica que aceita todo o tipo de pessoas.

Teres nascido em Angola mas teres crescido em Portugal alguma vez te fez sentir que não pertencias a lado nenhum ou, por outro lado, deu-te referências e uma bagagem que noutras circunstâncias não terias?

Sinto que sou condicionado por isso tudo e que tenho essa herança de DNA. Quando se fala de uma Lisboa muito multicultural, a mim parece-me que ainda falta um bocado para se aceitar essa contribuição e não separar os subúrbios do centro. As pessoas devem ser mais convocadas não só para trabalhar, mas também para viver e contribuir. Temos todos a ganhar. Em vez de nos encontrarmos só no metro, encontrarmo-nos também em pistas de dança, em galerias, em musicais…

Em que altura da tua vida sentiste o apelo da música?

Acho que só por volta dos 30 anos. Sempre considerei a música demasiado sagrada, achava que não tinha o direito de me meter nisso. O meu padrasto era músico e muito bom, a minha mãe também ouvia música muito boa, havia ali uma mistura inacreditável. Por um lado isso tornou-me um consumidor atento, mas distante da parte técnica. A certa altura percebi que tinha de assumir o risco de eventualmente ser mau e de me concentrar apenas em fazer. Depois se as pessoas gostavam ou não era outra história. Para conseguir ser um animal vivo tenho que me exprimir como me apetece. E isso, muitas vezes, implica regressar aos instintos básicos, de criança. Tento fazer aquilo que me faz feliz e projetar essa felicidade em quem me segue. Acaba por ser um exercício de deixar o DNA e as circunstâncias existirem. Este trabalho que vou apresentar na Casa Independente é a sorte que tenho de, ao fim de todos estes anos, poder cruzar tudo o que fiz, tudo o que gosto, coisas que arrisquei a fazer mas também coisas que alguém fez. Devemos reconhecer o mérito do outro, não invejar, que é uma coisa muito portuguesa e que gostava que deixasse de existir. Em crianças, eu e os meus primos fazíamos apresentações de música e dança para os adultos. Percebi que fui muito feliz nessa época e sou muito feliz a ter diálogos artísticos e a apresentar as minhas ideias. Gosto de liderar mas cresço muito quando não tenho razão. Acho que a melhor maneira das coisas acontecerem é convocar pessoas com ideias diferentes.

O teu trabalho mistura sonoridades e influências. É difícil ‘casar’ referências musicais mais antigas com sonoridades mais atuais?

Se pensarmos em techno e em kuduro, são exatamente a mesma coisa. A ferramenta pode ser outra, mas é apenas uma forma diferente de fazer a mesma coisa. Há dj’s em Berlim a fazer remixes de músicas angolanas. Quando fiz o primeiro disco isso era completamente exótico e estranho, diziam que era game changing. Neste momento, para um berlinense isso é perfeitamente natural, porque já tem acesso aos discos. Portugal fez um péssimo serviço a promover a cultura das ex-colónias. Nos últimos anos Angola tem conseguido exportar-se mais porque tem uma relevância financeira muito grande, porque existe este circuito Lisboa-Luanda que torna as duas cidades familiares e indissociáveis. O que nos falta é processar e aceitar essa mistura, porque ela existe inevitavelmente.

“O meu trabalho tem sido pensar em coisas que posso apresentar que sejam não um exercício egocêntrico, mas sim um processo de partilha e comunicação”

 

Em 2019, passaste muito tempo a trabalhar neste alojamento artístico local. Como surgiu esta ideia?

No fundo, passei a minha vida inteira. A ideia de fazer este alojamento surgiu de uma aproximação à Casa Independente, que, em 2018, me convidou a fazer a passagem de ano. Gostei muito de ter vivido essa noite, de estar num prédio no meio de Lisboa (ao contrário de todos os outros que estão degradados ou inflacionados ou formalizados por alguma instituição) onde se pode fazer o que se quiser. Depois fiz uma experiência no 25 de Abril, que foi uma emissão de rádio que seguia a cronologia desse dia. As pessoas foram, dançaram ao som da rádio e apercebi-me da predisposição delas para coisas diferentes. Como artista, isso deixou-me feliz. Se eu fizer humor e obtiver um sorriso, isso é suficiente, não é preciso a pessoa rir-se à gargalhada. O princípio é provocar o sorriso, logo, essa reação é boa para mim. Estas intervenções provocam estranheza e desconforto numas pessoas – o que é bom – e noutras provocam sorrisos – o que é ainda melhor. O meu trabalho tem sido pensar em coisas que posso apresentar que sejam não um exercício egocêntrico, mas sim um processo de partilha e comunicação.

Qual é o conceito por trás deste alojamento artístico local?

Este trabalho cruza tudo o que fiz, tudo o que gosto, coisas que arrisquei a fazer mas também coisas que alguém fez. Acho que a melhor maneira das coisas acontecerem é convocar pessoas com ideias diferentes das nossas. Vou expor, ter dança, música e uma rádio normal, tudo a acontecer ao mesmo tempo. Umas coisas são minhas, outras de pessoas que admiro. Espero que as pessoas entrem e participem. Podem rebentar-me com o ego no fim, mas uma coisa não vai falhar: o de existir um espaço que não é nem um museu, nem uma discoteca, nem um bar, nem um restaurante, nem uma casa, mas que é isso tudo. O objetivo é quebrar fronteiras formais. Durante este mês haverá ainda uma Rádio Normal, com emissão para o quarteirão todo. A definição de “rádio normal” é uma rádio coreografada, repetitiva, com informação redundante, gravada, escrita, umas vezes com pouca emoção, outras vezes histérica, sem publicidade.

A residência inclui a exposição Neon Colonialismo, que inclui peças próprias e outras do espólio do Museu de Lisboa…

Dentro das minhas peças há uma grade de garrafas de água do Luso a que acrescentei a palavra ‘angolano’e que pretende pôr as pessoas a pensar; um padrão (falso) de azulejos criado para dar uma ideia do tradicional; uma peça chamada Neon Colonialismo que pretende provocar uma reação e fazer as pessoas olharem para a mesma coisa e ver que ela pode ter vários significados, e um estendal com roupa, que simboliza o facto de eu estar mesmo a viver na Casa durante esse mês (é um alojamento literal). Há ainda peças do Arquivo Histórico do Museu de Lisboa. Neste processo descobri uma coleção de mais de dez quadros relacionada com o mar, de um pintor que desconhecia, o António Costa Pinheiro. Foi-me apresentado como um autor incontornável da pintura portuguesa. Senti-me um ignorante, mas fiquei imediatamente apaixonado pelas obras dele. Fiquei muito feliz por ter acesso a estas obras e por poder mostrá-las a quem também não as conhece.

O momento musical desta residência é uma parceria com Luaty Beirão. O que podemos esperar deste encontro?

Não havendo relação familiar entre nós, o Luaty é o mais próximo que tenho de um irmão, alguém que está sempre disponível. Quando surge algum projeto em mãos, é praticamente inevitável incluí-lo. O espetáculo pretende colocar questões: qual é o momento sério? É quanto estamos a cantar, a dançar, ou quando estamos a passar o som de uma rádio? Temos textos feitos pelo Luaty, bailarinos a dançar que vão ilustrar uma história ou uma música. Há momentos em que é a cena que define tudo, outros em que a dança é predominante e outros em que é o ritmo ou as palavras.

É difícil viver da arte em Portugal. Qual é a motivação?

É inevitável, não é uma escolha. Se não houver filhos que dependam financeiramente de nós, acho que é preciso ser-se muito corajoso para não se fazer o que se tem dentro do coração. Morre-se em vida, que é uma coisa muito triste. É preciso ter coragem para ignorar tudo o que grita dentro de nós. Não consigo calar essas vozes, é impossível. A motivação é ter paz, é um exercício de sobrevivência.