O homem que inventou a vida para o cinema

"Essencial Fellini" no centenário do cineasta

O homem que inventou a vida para o cinema

Para assinalar os 100 anos do nascimento de Federico Fellini, a Risi Film, a Alambique e a Festa do Cinema Italiano devolvem ao grande ecrã, em cópias restauradas, seis filmes "essenciais" do cineasta italiano. Para além dos famosos La Strada e La Dolce Vita, o ciclo, que decorre entre agosto e setembro, inclui Os Inúteis, Fellini 8 ½, Julieta dos Espíritos e A Voz da Lua, obra derradeira do realizador.

 

Nasceu em Rimini a 20 de janeiro de 1920, filho de um caixeiro-viajante e de uma romana. Aos dez anos, fugiu de casa para se juntar a uma trupe circense onde, confessou o próprio, cuidou de uma zebra doente. Antes da guerra, viajou por toda a Itália com uma companhia de teatro ambulante, até se fixar em Roma, onde passou pelo jornalismo, foi ilustrador e desenhador, escreveu sketches humorísticos e trabalhou para a rádio.

Com o final do conflito, e já casado com a mulher da sua vida – a atriz Giulietta Masina –, dedicou-se a fazer retratos e caricaturas de soldados norte-americanos. Foi nesse estado de sobrevivência que conheceu Roberto Rossellini, que fez dele assistente de realização e coargumentista em Roma, Cidade Aberta. Foi a porta de entrada para o cinema, a arte que imortalizou Federico Fellini como um dos grandes cineastas da segunda metade do século XX.

Por ocasião do centenário do nascimento, a Alambique devolve ao grande ecrã seis das suas obras mais emblemáticas em cópias restauradas, num ciclo intitulado Essencial Fellini. Oportunidade soberana para (re) descobrir o realizador que acreditava que nos seus filmes “nada há de anedótico ou autobiográfico”. Antes, e como escreveu, foi através deles que “inventei a minha vida. Inventei-a de propósito para o cinema.”

LA DOLCE VITA (1960)

ESTREIA A 6 DE AGOSTO

A cena de Anita Ekberg banhando-se na Fontana di Trevi, em Roma, é das mais famosas de toda a história do cinema. La Dolce Vita foi também o filme que cunhou um termo intemporal e, subitamente, universal: paparazzo. Obra de um pessimismo atroz, Fellini considerou-a “a récita das peregrinações diurnas e noturnas de um jornalista sem envergadura”, interpretado por Marcello Mastroianni. Apesar de significar o rompimento definitivo com a herança neorrealista (que, embora seja opinião pouco consensual, se reconhecia nas obras anteriores), o filme põe completamente a nu o fascínio da decadência e a obsessão da morte que parecem trespassar toda a obra do cineasta desde Luci del varietà, obra de estreia codirigida com Alberto Lattuada. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes.

A ESTRADA (1954)

ESTREIA A 13 DE AGOSTO

Provavelmente, um dos mais belos filmes de Fellini, obra em que a realidade e o mundo da imaginação se combinam numa experiência cinematográfica única. La Strada significou a consagração internacional de Fellini ao conquistar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, e nele habitam duas das mais inesquecíveis personagens da história do cinema: Gelsomina (Giulietta Masina) e Zampano (Anthony Quinn). Ela é a jovem vendida pela mãe que, como Fellini dizia, com “a perícia mimica de um palhaço” procura todos os sonhos do mundo; ele é o rude e bruto saltimbanco que a compra, mas que por ela vai descobrir sentimentos e emoções que, na sua cruel e desolada vida, jamais pensou existirem.

FELLINI 8 ½  (1963)

ESTREIA A 20 DE AGOSTO

De 8 ½ disse François Truffaut ser “o filme dos realizadores, aquele que todos os cineastas deviam aprender de cor e não esquecer”. Genial variação sobre o processo de criação artística, para muitos a obra-prima do cineasta, é uma reflexão incisiva sobre o cinema enquanto arte dos mitos e dos sonhos codificados. O veículo para essa reflexão é a personagem de Guido Anselmi, um realizador em crise encarnado por Marcello Mastroianni, alter-ego do próprio Fellini. Durante a estadia numas termas para preparar um novo filme, Guido confronta-se com a paralisia criativa e deixa que os fantasmas do passado tomem conta da realidade. Mas quando tudo parece desmoronar, o realizador consegue voltar ao plateau e, por fim, gritar “ação!”

JULIETA DOS ESPÍRITOS (1965)

ESTREIA A 27 DE AGOSTO

Oito anos depois do sucesso de As Noites de Cabíria, Fellini volta a dirigir Giulietta Masina numa obra onde o próprio definiu a atriz, sua mulher, como “a alma do filme”. Na verdade, Julieta dos Espíritos pode considerar-se uma homenagem surrealístico-conjugal a Masina, que aqui interpreta uma mulher burguesa de meia-idade perturbada por frustrações sexuais que o casamento, com um homem para quem se tornou invisível, lhe impõe. Apesar dos excessos e desequilíbrios, trata-se do primeiro filme a cores do cineasta, filmado num deslumbrante technicolor à Minnelli, a quem se pode pensar que Fellini não se coibiu de prestar um justo tributo.

OS INÚTEIS (1953)

ESTREIA A 3 DE SETEMBRO

Apesar de negar um caráter autobiográfico à sua obra – “os meus filmes só são autobiográficos na mesma forma que todos os livros, todos os poemas, todos os quadros são autobiográficos” –, Os Inúteis (I Vitelloni) é, com 8 ½ e Amarcord, uma das obras mais representativas da vida do realizador. O filme retrata o dia-a-dia de cinco homens jovens numa pequena cidade costeira italiana, a Rimini natal de Fellini, entre festas e namoricos inconsequentes, tentando preencher o vazio das vidas provincianas. Até ao dia em que um deles decide romper com a toda essa fútil existência, partindo para Roma. Martin Scorsese considerou-o, na sua Viagem pelo Cinema Italiano, um dos filmes que mais o influenciou.

A VOZ DA LUA (1990)

ESTREIA A 10 DE SETEMBRO

O último Fellini (o realizador morreria em 1993) é, como destacou Jean Douchet, “uma espécie de projeção irónica do pensamento masculino italiano”. Com Roberto Benigni no protagonista, A Voz da Lua realça um olhar amargo sobre a sociedade italiana e, embora não explicitamente, sobre o esmagamento do cinema pelo lixo televisivo dos tempos de Silvio Berlusconi. O magnata da televisão e político italiano é, aliás, diretamente visado no filme sem qualquer pejo de ambiguidade. Não se inscrevendo no leque de obras-primas do realizador, o filme passou quase incógnito à data de estreia, tendo sido reabilitado ao longo dos anos pela crítica e por novos cinéfilos que o destacam como um exercício de profunda lucidez de um cineasta em fim de vida.