reportagem
A Arte da Tradução
"São os autores que fazem as literaturas nacionais, mas são os tradutores que fazem a literatura universal"
Associando-se à 90.ª Feira do Livro de Lisboa, a Agenda Cultural de Lisboa decidiu prestar o merecido tributo a uma atividade literária que, embora essencial na cadeia de produção do livro e na criação do elo entre autores e leitores de línguas diferentes, muito frequentemente permanece na sombra: a tradução. A qualidade do trabalho de Paulo Faria, Margarida Vale do Gato, Valério Romão, Hugo Maia e Miguel Martins recusam categoricamente o velho aforismo italiano: traduttore, traditore.
Escreveu José Saramago: “São os autores que fazem as literaturas nacionais, mas são os tradutores que fazem a literatura universal”. Por ocasião da Feira do Livro de Lisboa, que regressa ao Parque Eduardo VII, na sua 90.ª edição, de 27 de agosto a 13 de setembro, a Agenda Cultural de Lisboa falou com cinco tradutores.
Valério Romão
A informática ocupou grande parte da vida profissional de Valério Romão. O escritor, licenciado em filosofia, chegou à tradução por via da paixão pela leitura e pela escrita e “pela vontade de ver em português um determinado texto que não tenha ainda sido traduzido. Tentar fazer aquilo que os outros tradutores fizeram antes de mim, incorporar na cultura portuguesa a voz de determinado autor, dando-o a conhecer.”
Nascido em França, onde viveu até aos 10 anos, tem facilidade natural em traduzir do francês, mas também traduz do inglês, “com a ajuda do dicionário”. Traduz muita poesia que não está editada. “São traduções que tenho na gaveta e que faço por gosto, que eventualmente um dia proporei a uma editora. Estou a traduzir o livro La Main hantée, da poeta canadiana Louise Dupré que escreve em francês. Admiro a poesia dela que descobri numa livraria francesa. Enviei-lhe uma mensagem a dizer que gostava muito de traduzir o livro, mas que não tinha como pagar direitos de autor porque nenhuma editora iria suportar esse custo. A edição de poesia em Portugal faz-se com tiragens de cem exemplares e sem dinheiro. Ela ficou muito satisfeita. Disse que não era pelo dinheiro que estava na poesia e ficou encantada com a situação de um autor ter entrado numa livraria e ter lido um livro seu que lhe apeteceu traduzir e divulgar.”
A mais recente tradução de Valério Romão, O Quarto de Giovanni, de James Baldwin, foi parar-lhe ao colo por via da editora para quem já tinha traduzido Houellebecq. “Foi uma honra porque é um autor tremendo, não só pelo valor literário, mas por todas as contribuições para a luta dos direitos humanos, nomeadamente dos negros e homossexuais. É um livro arriscadíssimo, dos anos 50, muito bem escrito por um negro homossexual, sem qualquer ambiguidade de discurso. O Baldwin é um daqueles autores de que uma pessoa pensa: gostava de ter conhecido este tipo! É um sujeito com uma coragem e uma lucidez espantosas”. Quanto à obra, refere que o livro não tem uma linguagem complexa: “Um pouco escola Hemingway, exilado, frases curtas, embora com um tópico e uma densidade emocional diferente”. Perguntado sobre se essa simplicidade de estilo não é difícil de transpor para a tradução, responde: “Depende, se a aparente simplicidade do autor é mais um efeito, ou não. No caso do Baldwin, existe uma grande honestidade na forma como escreve”.
E termina com um desabafo: “a atividade de tradutor é muito mal paga em Portugal. Se fizermos contas ao tempo investido, à qualidade que exige de si próprio, ao que fica depois dos impostos, só vale a pena fazer isto por amor ou por não saber fazer mais nada”.
Margarida Vale de Gato
Margarida é licenciada em Línguas e Culturas Modernas, mas o seu encontro com a tradução começou antes de ir para a faculdade. Aos 13 anos foi com a família viver temporariamente para a Califórnia enquanto o pai fazia o mestrado. “Já na altura gostava de línguas. Costumava interrogar-me como as pessoas pensavam em línguas diferentes. Entrei na escola local e, ao fim de alguns meses, comecei também a sonhar em inglês. Isso iluminou os meus dias que eram um pouco solitários, porque não é fácil transitar com essa idade para outro país. Como sabia que ia regressar a Portugal comecei também a aprender francês, mas como era bastante rudimentar, dediquei-me a aprender autodidaticamente ouvindo Jacques Brel. As minhas primeiras traduções foram letras de Brel. Logo aí percebi que esta era uma atividade onde me sentia muito bem.”
Neste momento não traduz do francês, a não ser que lhe venha algum poema: “não por ser mais fácil, mas porque há uma concentração na palavra que requer outro tipo de atenção que não tem a ver com expressão do uso quotidiano da língua. Para traduzirmos romances, temos que estar sempre a ver séries na televisão, que não gosto especialmente, ou filmes – que vejo mais. Ou vamos constantemente aos países onde se fala a língua na variante em que traduzimos, senão a coisa começa a congelar. A literatura é um mecanismo de inovação da língua onde se acompanham os rumores mais recentes.”
Margarida prepara uma antologia de poesia Beat com Nuno Marques e traz-nos um volume de Marianne Moore, O Pangolim e Outros poemas, a única proposta que fez à editora. “Queria muito traduzir este livro. Sou professora de Literatura Americana e no modernismo agradam-me aqueles que fazem experiências. Ao nível da poesia, gosto muito de arriscar perceber a experiência através da tradução. Marianne Moore é uma poeta que conjuga a curiosidade pelas pequenas vidas (o pangolim, bicho tão maltratado pela nossa pandemia, ou a nectarina e o morango, por exemplo) com a consciência de que a maneira de conhecer já depende de anteriores representações – mas de que ela procura oferecer um ângulo diferente através da cadência de linguagem. Enquanto autora, ela proporciona-me uma atenção ao objeto representado que sai da esfera do eu. A minha poesia tende a ser pessoal e a jogar com a autobiografia de uma maneira que continuo a prosseguir porque acho interessante, mas que ela contraria.”
Sobre o tema da tradução, afirma: “é muito difícil trabalhar com certos tipos de sistematização porque há textos que admitem uma maior literalidade, importante para conservar o estilo e a estranheza. Outras vezes, é preciso adaptar. Por isso, quando se fala em coerência em tradução, devemos desconfiar. É preciso arriscar contradizer-se, porque a unidade do texto é algo que a tradução nega por inerência”.
Miguel Martins
Arqueólogo que não exerce, Miguel Martins começou a ser convidado por editores para traduzir em virtude de ser poeta. Embora também faça crítica para a revista Colóquio/Letras da Gulbenkian, vive essencialmente da tradução. Traduz do francês, inglês e castelhano e já traduziu um livrinho a partir do italiano, Manifesto da Música Futurista de Luigi Russolo, que foi uma coisa por amor e mais morosa do que seria se tivesse verdadeiro domínio da língua. “Eu traduzo tudo para ganhar a vida, livros muito maus, de auto-ajuda, etc. De vez em quando, lá traduzo coisas verdadeiramente boas como sejam o Forster ou a peça de teatro Mariana Pineda, do Lorca, além de muita poesia para revistas literárias.”
Sobre a sua mais recente tradução de A Máquina Pára e Outros Contos, de E. M. Forster, uma coletânea de textos escritos ao longo de 20 anos, diz-nos: “para motivar os leitores falaria essencialmente do conto que lhe dá titulo, um texto verdadeiramente fantástico que, escrito há cem anos, prevê com rigor surpreendente muitíssimos dos aspectos do mundo atual e das suas características distópicas: a comunicação apenas através da máquinas, o afastamento das pessoas, uma espécie de internet ou coisas como os likes do facebook.”
Da atividade de tradutor, salienta: “penso que para uma boa tradução é muito menos importante o domínio da língua de partida, (com mais ou menos trabalho chega-se lá), do que o domínio da língua de chegada. Finalmente, o que chega às pessoas tem que estar escrito em bom português. Por isso, acho que, sempre que possível, as traduções literárias devem ser feitas por escritores. Mas, paralelamente a isto, a tradução implica cultura, referências de toda a ordem, histórica, científica, artística, política. É por aí que muitas traduções pecam. E é por essa razão que, apesar das exceções, tenho sérias dúvidas que possa haver grandes tradutores muito jovens. Quem trabalha em tradução profissionalmente não sabe o que lhe vai parar às mãos, portanto essa cultura tem de ser tão abrangente quanto possível, sem prejuízo das pesquisas necessárias a cada caso. Não se pode viver da tradução trabalhando só em coisas boas. Em Portugal, os preços são iguais, quer estejamos a traduzir Shakespeare ou a biografia das Spice Girls. Ora, de um livro de chacha, eu traduzo quinze páginas por dia; de Shakespeare, se calhar traduzo sete linhas. Os tradutores que só traduzem coisas verdadeiramente interessantes, ou não vivem disso ou vivem muito mal. Para mim, o problema deste trabalho é não ser ininterrupto, haver hiatos entre uma tradução e outra. Se estivesse sempre a trabalhar (o que também não era desejável, porque é mentalmente muito cansativo e porque, às vezes, preciso de me libertar do estilo e linguagem de um autor, antes de começar outro) seria uma profissão relativamente bem paga.”
Hugo Maia
“Comecei a aprender árabe quase por brincadeira. Tinha passado férias em Marrocos e fiquei curioso com a língua. Compreendemos castelhano, falamos inglês, mas não entendemos a língua de um país vizinho que nos parece totalmente diferente.”
Hugo Maia inscreveu-se então num curso livre de árabe na Faculdade de Letras e leu muito sobre a história do mundo árabe e da presença islâmica em Portugal. Como era o melhor aluno da turma conseguiu uma bolsa para um curso intensivo de verão na Tunísia. “Apercebi-me que, para aprender árabe, teria que o fazer num país árabe. Era a melhor forma de aprender o árabe padrão e o árabe coloquial e por isso decidi inscrever-me no curso anual intensivo, em Tunes. Na realidade sou licenciado em antropologia e interrompi a licenciatura, em 2001/2002, para fazer este curso. Não sou um especialista em literatura. Considero-me acima de tudo um leitor. Por vezes comparava traduções de árabe para francês e comecei a interessar-me por teoria da tradução. Constatava que, em Portugal, praticamente não existiam traduções directamente do árabe. Em 2006, apresentei alguns projetos de tradução a várias editoras que foram recusados. Felizmente, porque os meus conhecimentos não eram assim tão bons. O árabe não é uma língua muito difícil de aprender, mas tem uma grande complexidade do ponto de vista sociolinguístico, aquilo a que chamamos uma diglossia muito acentuada. Existe um árabe padrão, que é igual em todos os países árabes, e um árabe coloquial, que muda de país para país e mesmo de região para região. As diferenças entre as várias línguas árabes coloquiais são tão grandes como as que existem entre o português, o italiano e o romeno. Costumo dizer que, para aprender bem o árabe, temos que saber duas línguas: o árabe padrão e, pelo menos, um árabe coloquial. Entretanto, vivi cinco anos em Marrocos, onde aprendi o árabe coloquial marroquino que me ajudou a traduzir As Mil e uma Noites, uma obra que inclui muitas expressões árabes coloquiais do Levante, da Síria e Egipto, apesar de serem muito diferentes.”
Quando Hugo descobriu Périplo pelos Bares do Mediterrâneo numa livraria de Tunes, não sabia que Ali Duaji era considerado o pai do conto contemporâneo tunisino. Ficou fascinado com a ironia e o sarcasmo do autor que, nos anos 30, “satirizava as novas classes burguesas que surgiam aliadas ao poder político do protetorado francês, com aquela mistura de costumes muito confusa”. Mas a sua mais recente tradução, parece-lhe, sobretudo, um relato de viagens muito particular. “Uma viagem através dos bares da Europa e da Ásia, ignorando os locais tradicionais de visita como os museus”. Confessa que até se identificou com isso, dando um exemplo “vergonhoso”: viveu um mês em frente ao museu Van Gogh de Amesterdão e nunca o visitou. “E adoro o pintor. Já vi os quadros dele do Museu d Orsay!”
Paulo Faria
Licenciado em Biologia, o escritor e tradutor literário Paulo Faria chegou a dar aulas nessa área, embora não fosse aquilo de que gostava. O avô era professor de línguas no Colégio Militar e ensinou-lhe inglês e francês desde muito novo. Ficou-lhe a vocação para as letras que explorou como autodidata e, quando surgiu a oportunidade de fazer tradução literária, aproveitou.
Traduz do francês, mas essencialmente do inglês. Traduziu Emily Brontë, Jane Austen e Charles Dickens, porém, ressalva que quando as pessoas o referenciam nesta vertente, costumam dizer que “é o tradutor do Cormac McCarthy”, autor pelo qual nutre uma admiração especial e de quem traduziu doze títulos. “Traduzi três deles por duas vezes de raiz, porque o resultado das primeiras traduções me começou a irritar, quando calhou folheá-las uns anos depois: Meridiano de Sangue, O Guarda do Pomar e Filho de Deus.”
Ganhou o Grande Prémio Internacional de Tradução Literária da Sociedade Portuguesa de Autores 2015 com a tradução de História em Duas Cidades de Dickens e, talvez por isso, o seu nome surja quase sempre associados aos grandes clássicos. É também de Dickens a sua mais recente tradução: O Mistério de Edwin Drood. Trata-se do último romance do autor que ficou incompleto, pois Dickens morreu subitamente a meio do livro. Tem, por isso, “essa característica bizarra de ser um romance de vocação policial em que o mistério não é resolvido. O mistério do título torna-se assim um mistério duplo.”
Paulo cita Dire Quasi la Stessa Cosa: “obra em que Umberto Eco diz que na tradução nunca se consegue dizer a mesma coisa, mas consegue-se dizer quase a mesma coisa se o tradutor for bom. Eco define a tradução como uma interpretação que segue uma negociação. Concordo com ele. No caso da tradução de um escritor como Dickens é preciso perceber o que os leitores da sua época sentiam quando liam aquele texto que para eles era natural (embora nem todos falassem assim) e tentar depois criar uma artificialidade natural. Não conseguimos reproduzir em português a linguagem da época, nem o leitor contemporâneo quererá isso. A boa tradução deverá ir ao encontro do leitor sem distorcer o original. É justamente essa a razão pela qual as traduções envelhecem. Cada geração traduz o Dickens ou o Victor Hugo porque o nosso mundo já não é o mundo deles, mas também já não é o mundo das traduções dos anos 40. Enquanto escritor, quando redijo um romance não penso nos leitores, enquanto tradutor, penso sempre no leitor.”