Samuel Úria

"A esperança é um elemento fundamental nos meus discos, mesmo que seja em doses pequenas"

Samuel Úria

Samuel Úria está de regresso aos discos e aos palcos. No novo álbum, o cantor questiona a pós-modernidade e o falhanço coletivo de todos nós, mas surgem também alguns raios de esperança e possíveis finais felizes. O disco é composto por nove canções, todas elas ilustradas por vídeos (realizados por Joana Linda), que o mostram a passear por Lisboa. Canções do Pós-Guerra tem apresentação marcada para 6 de outubro, no Teatro Tivoli.

O teu novo disco tem um nome muito forte e simbólico, Canções do Pós-Guerra. Porquê este título?

As primeiras canções que escrevi para este disco nasceram duma guerra conceptual. Deparei-me com expectativas em relação à progressão sonora na minha carreira, e a noção de que o próximo passo musical teria de acrescentar algo mais aos passos anteriores. Apeteceu-me refrear essas ideias, e assumir que uma carreira artística não é necessariamente feita de progressões e acréscimos, também pode contemplar recuos, insistências e subtrações. Comecei a fazer canções contidas, e isso foi uma guerra. Daí brotou o título, que era amplo o suficiente para poder albergar várias temáticas. Há muitas guerras, literais e simbólicas. E há muitas noções em torno do pós-guerra: reconstrução, esperança, desesperança, luto, nascimentos, rescaldos. Finalmente, o título também serviu de pretexto para evocar alguns poetas (de guerras e de pós-guerras) que admiro.

Segundo o press da tua editora, este é o teu disco mais maduro e direto de sempre. Isso está, de alguma forma, relacionado com a maturidade da idade?

Esse press foi o primeiro contacto que tive com uma análise ao meu disco, e por isso aprendi a concordar com o que lá está escrito. Revejo-me nessa ideia, porque revêm essa ideia em mim. Não sinto que fiquei uma pessoa madura dum dia para o outro, mas o abeirar dos 40 (que não são especialmente ternurentos como cantava o outro; parecem-me bem banais) deu-me a capacidade de simular melhor essa maturidade. É como se uma mera faixa etária me conferisse autoridade poética para rezingar, ou para ser incómodo sem amenizar tudo com ironias. O meu relógio biológico é uma coisa bio-poética.

O disco abre com Ao Pós. Atravessamos um período de ascensão de novos populismos, como se não tivéssemos aprendido nada com o passado. A cantiga pode ser uma arma contra a ignorância?

Pode, embora perceba que o poder de uma cantiga para estupidificar é mais forte do que para instruir. Não será uma arma direta contra a ignorância. Para apelar a um ignorante, provavelmente há que baixar o discurso ao nível da compreensão do destinatário, e assim tudo se inquina. Mas uma cantiga pode imiscuir-se no tecido cultural de pessoas, dum povo – e um povo que se habitua a cantar os valores certos dificilmente descai para povo errado.

O disco é composto por canções que são gritos de revolta sobre os nossos falhanços coletivos, mas também por outras que são uma lufada de ar fresco, em que parece que tudo vai ficar bem. Quiseste criar um equilíbrio entre as trevas e a esperança?

Não sei se chega a haver um equilíbrio. Não uso as canções luminosas como contrapeso às canções sombrias, porque acho que o Mal e o erro são mais abundantes do que o Bem e o certo. Mas estar rodeado de negatividade não me impede de fixar os olhos naquilo que lhe escapa. É aí que entra a esperança como elemento fundamental dos meus discos, mesmo que seja em doses pequenas. Não tento, por isso, o equilíbrio. Acabo sempre por abrir portas, mesmo que sejam portas estreitas.

Há também canções que parecem ter um tom demasiado íntimo e pessoal (embora o seu significado pareça algo encriptado), como Cedo ou O Muro. As tuas canções são uma espécie de catarse?

Não procuro catarse nas canções, mas pelos vistos a catarse acaba por me apanhar. É que mesmo as coisas mais mecânicas do meu processo criativo são ativadas por desabafos, por esvaziamentos. Tudo o que eu tenho acumulado, consciente ou recalcado, pode desaguar em canção. Apesar do cariz utilitário, apesar de ser trabalho, há claramente uma purga. E a essa purga podemos chamar catarse.

“Um povo que se habitua a cantar os valores certos dificilmente descai para povo errado”

 

Utilizas muitas metáforas nas tuas letras, deixando sempre várias interpretações em aberto. Preferes que seja o ouvinte a fazer a sua própria interpretação da canção?

Não é bem uma preferência, embora sinta qualquer interpretação do ouvinte como um momento de extrema generosidade. É generoso, até quando não me encontra e se encontra a ele próprio na canção. Deu-se ao trabalho, escutou, escrutinou: é generoso. Quando escrevo, procuro a sinceridade, que é uma coisa muito pedante de se dizer, mas não deixa de ser verdade. E em quase toda a poesia que me interessa, a sinceridade é reforçada por símbolos, não por relatos concretos. Corro o risco de não ser entendido, mas, se finalmente me entendem, corro o risco de não ser esquecido.

O álbum – que contém nove faixas – é ilustrado por nove vídeos, filmados em sequência, e que te mostram a passear por Lisboa. É uma carta de amor à cidade?

É uma carta de amor a esse tesouro que é poder andar na rua. Não conseguimos fazê-lo durante uns meses, continuamos limitados e não sabemos muito bem o que nos espera. Este disco cumpriu o confinamento caseiro como qualquer um de nós; ficou fechado à espera da altura em que pudesse sair. Levei-o, portanto, a passear na minha cidade. A passear nas mesmas ruas onde, tantas vezes, já andei a pé à procura da rima certa, ou da frase mais conveniente.

A quarentena trouxe-te algum tipo de inspiração para este disco ou para discos futuros?

Embora não tenha escrito qualquer canção durante a quarentena, não deixou de ser um dos períodos mais marcantes pelo qual passei no meu tempo de vida. Assim sendo, duvido que consiga estar imune a isto tudo quando voltar a escrever.

Menina surge como uma canção de embalar que fecha o disco com um final que se espera feliz. Há luz ao fundo do túnel?

Menina abeira-se do contrassenso. Canto e toco-a como se fosse de embalar, mas é uma canção sobre despertar. Há luz, e vivo acordado para essa certeza.