entrevista
Tiago Rodrigues
"Eduquei-me a imaginar muito à frente, mas nunca a planear um percurso"
No final do verão de 2020, ainda antes da estreia, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, Catarina e a beleza de matar fascistas já trazia consigo o sabor da polémica. Ao longo dos meses, a criação de Tiago Rodrigues continuou a ganhar protagonismo no debate público, levantando acesas discussões na imprensa e nas redes sociais. A controversa peça de teatro chega, a 19 de abril, à Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II, e é o ponto de partida para uma conversa com o encenador, dramaturgo e diretor do Teatro Nacional D. Maria II, onde foi impossível escapar a temas como o teatro na pandemia, os prémios que o distinguiram nacional e internacionalmente, ou o futuro, que colocou debaixo de incerteza o projeto de encenar José Saramago com a Royal Shakespeare Company, mas que, no imediato, o leva ao Festival d’Avignon, em julho, para ali estrear O Cerejal de Tchékhov, protagonizado pela atriz francesa Isabelle Huppert.
Como é que surgiu a ideia de escrever uma peça como Catarina e a beleza de matar fascistas?
O primeiro impulso para a escrever, em 2018, surgiu da constatação de que na sociedade portuguesa continuamos a encontrar sintomas autoritários, e até totalitários. Houve um episódio real que foi determinante: a controvérsia em torno dos acórdãos de tribunal do juiz Neto de Moura. Nesse episódio triste, tornava-se percetível o resíduo de uma ditadura que continua presente, não só na sociedade como nas instituições. Aqueles acórdãos, assentes numa retórica retrógrada, faziam lembrar o discurso oficial de outros tempos, com a agravante de perpetuarem uma violência sofrida por mulheres que, ao recorrerem a um poder autónomo, a um poder que é pilar do regime democrático – ou seja, o judicial –, se viram reféns da visão de um juiz que atenuou penas aos agressores, evocando a eventualidade dessas mulheres serem adulteras. Isso pareceu-me completamente antidemocrático e contrário ao espírito daquilo que está consagrado na nossa Constituição.
E é desse impulso que surge Catarina Eufémia e o título?
A minha indignação enquanto cidadão perante este episódio levou-me a imaginar uma coisa que o teatro permite e a vida real não: um encontro entre o juiz Neto de Moura e a ceifeira Catarina Eufémia, assassinada em 1954, em Baleizão, pela Guarda Nacional Republicana, quando lutava por receber um pouco mais. Foi aí que surgiu a ideia de introduzir o mito de Catarina, a combatente antifascista, essa espécie de feminista avant la lettre. Esta foi a premissa inicial, sabendo que a peça poderia assumir múltiplas formas, mas ainda longe de sabermos o que iria ser.
Houve noção, logo nessa altura, de que só o título poderia suscitar controvérsia?
Um título como Catarina e a beleza de matar fascistas tem, claro, uma dimensão provocatória, mas também passa uma mensagem explicitamente política que achava ser importante dar ao espetáculo.
Calculo que a crescente influência do populismo e dos movimentos de extrema-direita ajudou a definir o que viria a ser a peça.
Há dois acontecimentos importantíssimos que mantiveram a pertinência do título, mas afetaram o enredo da peça. O primeiro decorreu das eleições legislativas de 2019, com a chegada da extrema-direita ao Parlamento. No meu entender, isso mudou por completo o paradigma do discurso político na democracia portuguesa. Esse acontecimento fez-nos abandonar a ideia de nos debruçarmos sobre os resquícios e ecos da ditadura. Ou, roubando a imagem a Dickens, já não nos interessava tanto o fantasma do fascismo passado, mas o fantasma do fascismo futuro…
E o segundo?
Foi a pandemia, que nos apanhou nos primeiros dias de ensaios e acabou por levar a ação da peça do ano de 2020 para 2028. Isto porque comecei a pensar que uma das coisas que nos era roubada pela incerteza derivada da crise seria a capacidade de nos projetarmos no futuro. E o teatro que fazemos tinha a urgência de recuperar essa capacidade.
Chegamos, assim, a 2028, o ano em que decorre a ação…
E onde a extrema-direita conquista uma maioria absoluta.
E, ainda por lá anda o personagem do juiz?
Não chega a ser uma personagem. Há uma referência meio jocosa que surgiu como uma tentação provocatória a que não consegui resistir. A certa altura, fala-se de um juiz, mas resume-se a duas ou três frases. Efetivamente, perdeu importância nas nossas preocupações e no nosso olhar sobre o presente.
Voltemos então a esse futuro distópico…
A peça parte da premissa absurda, e completamente ficcional, de que há uma família que desde há 70 anos, rapta anualmente um pretenso fascista, leva-o para uma humilde casa de campo no sul de Portugal, e aí, numa celebração sórdida, o assassina. 2028 é um ano diferente, porque uma das Catarinas da família (todos os elementos têm este nome) completa 26 anos, idade simbólica porque era a de Catarina Eufémia aquando da sua morte. É ao completar essa idade que, como ritual de iniciação, será ela a proceder à execução.
Mas a jovem Catarina vai ter dúvidas…
Ela não só hesita, como vai questionar se não será errado o simples ato de matar. A peça vai ser alimentada por esse conflito, e é isso que nos permite colocar, hoje, uma questão fundamental: até onde estaremos dispostos a ir para defender a democracia e os seus valores. Haverá, nalgum momento, legitimidade em cometer um crime, recorrer à violência ou fugir às regras do jogo democrático, para defender a própria democracia?
E haverá?
Esse é um dilema da própria democracia. Quando assistimos ao ataque e ao risco de destruição dos valores democráticos, não podemos afastar-nos dessa discussão.
O mito de Catarina Eufémia, tão celebrado na arte, na música e na literatura da segunda metade do século XX, é recuperado aqui, numa época em que, provavelmente, muitos desconhecem a história. Houve alguma vontade de fazer pedagogia ao resgatar esta figura da resistência?
Não. Admito que possa haver quem descubra Catarina Eufémia através deste espetáculo, mas considero-o uma consequência feliz, porém acidental. A convocação que se faz de Catarina Eufémia é poética, não tem qualquer espécie de objetivo didático. Não queremos partir do pressuposto que o público que vê o espetáculo sabe menos ou pensa menos sobre os assuntos do que quem o faz. E isso foi muito discutido entre toda a equipa, parecendo-me preponderante em qualquer peça de teatro que queira ter uma dimensão assumidamente política, como é o caso.
Essas discussões que tiveram adivinhavam já alguma controvérsia à volta da peça devido a um título que já a suscitava e o conteúdo que arriscava continuá-la?
Parto sempre do princípio de que as pessoas na plateia têm a capacidade crítica para compreender que estamos no reino do teatro, e que nem tudo o que é dito é defendido por quem faz o espetáculo. No teatro há personagens e há códigos e, especialmente nesta peça, há frases que me fariam, na vida real, levantar e gritar porque delas discordo profundamente. Porém, há um debate que necessita desses diferentes pontos de vista, desde aqueles de que discordo àqueles com que concordo, passando por tudo aquilo sobre o qual ainda não formei uma opinião clara. Mas, tudo isso tem de ter lugar para que a peça, para além da obra artística, seja um debate político e humano onde, em vez de serem apresentadas soluções simples, sejam lançados problemas interessantes para as nossas vidas e para o mundo. Sabíamos que havia o risco de ofender com a dimensão provocatória do título e até, eventualmente, com o conteúdo da peça, mas a confiança que tenho no teatro e na inteligência do público levam-me a encará-lo como um risco compreendido enquanto discurso artístico. E, sejamos claros, esse não pode ser confundido com o risco de ofender quando se tem, por exemplo, uma tirada racista na tribuna da Assembleia da República – esse sim é nocivo e com consequências gravíssimas de normalização da violência verbal, e até física.
Como tem sido a reação do público que assiste ao espetáculo?
Tenho percebido que as pessoas se deixam levar e que o espetáculo abre as portas a muita participação e reação do público. Por muito que se indigne com o que se está a passar em palco, a generalidade levanta-se e aplaude assim que a peça termina. Esse jogo da indignação com a ação e o aplauso à obra de arte a seguir é o território onde está este espetáculo. Porque Catarina e a beleza de matar fascistas contém a provocação, mas também a reflexão, a poesia e a ternura.
Quero voltar à questão do debate, porque parece essencial relevar algo inédito nos últimos anos, que foi uma peça de teatro ter gerado uma discussão tão viva na sociedade portuguesa, ampliado não só nas redes sociais, onde tantas vezes a razão fica de fora, como em vários artigos na imprensa. Como é que lidaste com todo este fenómeno?
Acho que há dois tipos de debate. O primeiro, aquele que me interessa imenso, dispensa a minha intervenção porque a peça já existe. Esse é um debate sobre os temas da obra, ou a forma como os perspetiva, e sobre a sua pertinência artística acerca desses mesmos temas. E, interessa-me tanto do ponto de vista do elogio e da defesa, como quando critica e ataca, porque me parece ser um debate informado e esclarecido. Para alguém que trabalha em teatro há mais de 20 anos é fantástico ver um espetáculo ser alvo de debate na opinião pública, suscitando tantas reações e reflexões. O outro debate, que tenho dificuldade em caracterizar como tal, mas que é muito sintomático dos nossos tempos, é o ruído que se gera de controvérsia e ofensa pessoal. Começou mesmo antes da estreia, portanto nem sequer teve a ver propriamente com a peça.
Mas esse “ruído” acabou por suscitar uma intervenção.
A partir de certa altura, quando percebi que havia uma campanha de desinformação – mas atenção, não era o ruído criado nas redes sociais, até porque, como sabemos, muito dele não corresponde sequer a pessoas reais –, senti necessidade de intervir. Esse ruído estava a ecoar na imprensa, mesmo que sobre a forma de artigos de opinião (os quais considero não deixarem de ser jornalismo e estarem legitimados por critérios editoriais de um órgão de comunicação social). Foi quando decidi fazer um esclarecimento, que me pareceu simples e cabal, para responder àquilo que era mera calúnia e difamação sobre mim.
Apesar desse aspeto mais desagradável, não deixa de ser interessante, até porque é algo tão extraordinário uma criação artística saltar dos cadernos de Cultura e inscrever-se como assunto de “âmbito geral”, digamos assim, em vários jornais…
É importante na sociedade portuguesa que a criação teatral possa contribuir para um debate mais alargado, e não fique confinada às páginas cada vez mais asfixiadas que a imprensa generalista dedica à Cultura. Penso que o jornalismo tem muitas vezes reportado mal a Cultura, porque ela é muito mais do que o espaço que tem. Por vezes, parece que Portugal é um país com pouca diversidade e pouca excelência artística, e isso não corresponde à realidade. Entendo que o jornalismo é o que nos diz da realidade que acontece; e nas artes, a realidade é muito mais forte e pujante, mesmo nestes tempos catastróficos, do que aquilo que o jornalismo nos conta.
Passemos agora para o teu papel enquanto diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II), cargo em que foste reconduzido recentemente. Nesta conjuntura tão complexa que já leva, infelizmente, um ano de extremas dificuldades, qual foi a tua principal prioridade?
É sempre um enorme prazer passar para o papel de diretor artístico do TNDM II, como aliás o tem sido ao longo dos últimos seis anos. Porém, este último ano foi bastante abalado por tudo o que vivemos, não só na área da Cultura, como na sociedade em geral. No nosso caso, além da prioridade global da saúde pública – que assumimos, à semelhança da generalidade das instituições –, o fundamental foram as pessoas. Quisemos, desde o primeiro dia de confinamento em março de 2020, assegurar e cumprir todos os compromissos financeiros, não só com a equipa fixa do TNDM II, como com artistas e técnicos das companhias de teatro independente que connosco colaboram. Fizemo-lo porque sabemos como o tecido cultural em Portugal é frágil, e como toda esta situação vinha agravar uma área de atividade já muito desvalida em termos de capacidade económica e de subsistência.
E uma das lutas do TNDM II neste contexto foi também reagendar todos os espetáculos programados.
Essa foi a segunda prioridade, depois de garantirmos às pessoas algum nível de conforto. Conseguimos salvar os cerca de 20 espetáculos programados. Mas agora, com o confinamento de 2021, vamos ter de procurar reagendar, por uma terceira vez, alguns desses projetos artísticos. O nosso grande objetivo vai ser garantir um serviço mínimo de Cultura que consiga vir a apresentar, ao vivo, todos eles.
Não ao vivo, mas através do digital, o TNDM II tem estado muito ativo a levar as artes performativas ao público…
O TNDM II nunca deixou de ser a fábrica de criatividade, de invenção e de pensamento alternativo que deve ser um teatro nacional, mas nem sempre conseguiu ser a casa onde o público se encontra com essa criação por todas as vicissitudes que levaram ao encerramento do teatro. Porém, conseguimos manter uma boa programação online que, aliás, evoluiu muitíssimo, tanto em quantidade como em qualidade.
Apesar da oferta digital, com os registos de espetáculos, o live streaming, os podcasts, etc., a relação de proximidade com o público e a comunidade, que o TNDM II vinha a desenvolver em inúmeros projetos, foi muito afetada?
Foi reduzida, mas não interrompida. Somos uma casa que cumpre 175 anos, e por isso sabemos que não chegam as ferramentas do futuro, pelo que não abdicamos das ferramentas do passado. Uma das coisas que nos enche de orgulho foi, durante o confinamento, manter laços à distância, e isso aconteceu até por correio. Por exemplo, um dos projetos que mantivemos, e embora seja ainda muito invisível porque começou poucos meses antes da pandemia, foi o Projeto Presente, desenvolvido em parceria com o pelouro da Educação da Câmara Municipal de Lisboa, e que consiste em desenvolver grupos de teatro em seis escolas da cidade. Conseguimos manter-nos em contacto com os adolescentes que os integram, nomeadamente enviando-lhes encomendas para as suas casas, como ferramentas digitais de que muitos não dispunham – computadores ou acessos wi-fi – e outros materiais, como objetos relacionados com os projetos que estavam a desenvolver nas suas escolas. E é especialmente gratificante quando recebemos de uma mãe, a resposta de que a filha ficou felicíssima porque, pela primeira vez, tinha recebido correspondência em seu nome.
Há umas semanas, o The Guardian publicava um conjunto de pequenas entrevistas com ilustres personalidades do teatro europeu sobre os efeitos dos confinamentos e da suspensão da atividade teatral na Europa. Registei, por exemplo, as inquietações do diretor artístico do Schaubühne, Thomas Ostermeier, quanto ao teatro em streaming, mostrando-se particularmente cético sobre a capacidade do teatro, que caracterizou como uma “arte 3D” para ser vista ao vivo, em poder competir nos ecrãs com o cinema ou as séries televisivas. Acompanhas estas dúvidas?
Digamos que não me coloco incondicionalmente a favor, nem incondicionalmente contra. Acho que o salto para o digital foi, desde março de 2020, um gesto excecional, um gesto de emergência e, em muitos casos, um gesto de uma enorme generosidade. Mas também penso que, nalguns casos, foi muito pouco original em termos artísticos. Porém, não podia mesmo deixar de o ser. E digo-o porque respondeu, num primeiro momento, com essa espécie de artesanato do online, o artesanato possível que todos conseguimos fazer, para reagir e para dar uma prova de vida. Posteriormente, percebeu-se que o digital não podia substituir de todo a experiência teatral e, portanto, nesse sentido, acompanho muitas das opiniões dos entrevistados no artigo que citaste. Como também percebo outros artistas com quem falo e que consideram o digital um sucedâneo, mas não é teatro, ou seja, que é mais chicória do que café. Porém, é qualquer coisa, talvez uma memória de teatro, ou uma promessa de teatro…
Podes concretizar?
Parece-me que o mais importante não é o rótulo. Ou seja, não é tanto saber se é teatro ou não, mas que importância pode ter. No TNDM II, verificámos que o salto para o digital de muitos conteúdos contribui para a democratização do acesso à nossa atividade. Claro que podes dizer-me que não é a democratização do acesso ao teatro, porque não é teatro. Mas é divulgação de teatro, é dar a conhecê-lo. Há, portanto, qualquer coisa no digital que permite essa democratização das ideias e dos discursos artísticos relacionados com o teatro. E até pode ter uma dimensão artística e criativa muito interessante.
Poderá haver, no futuro, espaço para este tipo de formatos na programação dos teatros, ou extinguir-se-á naturalmente com o fim da pandemia?
Vamos por partes. Acho que ainda não fazemos objetos francamente interessantes no digital, por ser uma solução de recurso. Porém, já não é um recurso de emergência como no início da pandemia, e hoje até se filmam melhor as peças, embora ainda sem o tempo, o pensamento e o investimento artístico, mas também financeiro, para que aquela filmagem seja uma obra de arte em si. Acredito estarmos numa fase de transição, e arrisco dizer que o digital veio para ficar não só como espaço de comunicação, mas como espaço de divulgação do teatro. Por outro lado, será que vai ser um espaço de criação teatral? Julgo que muitos artistas de teatro poderão olhar para o digital como o seu palco privilegiado, e não tenho dúvidas que, a acontecer, surgirão obras artísticas fundamentais. Não sei se lhe chamaremos teatro, mas, como já disse, o rótulo interessa-me muito pouco.
Enquanto artista, já te ocorreu dar esse salto para o digital?
Não. A minha grande fome é estar ao lado do público na Sala Garrett, com os atores em palco, e regressar a essa assembleia humana que é fundamental na minha vida, e espero que fundamental na vida de cada vez mais pessoas. Sei quanto essa experiência pode ser transformadora e necessária.
E enquanto diretor artístico do TNDM II?
Posso avançar que, na próxima temporada, o TNDM II vai fazer uma aposta no digital completamente inédita. Aposta que passará não só pela criação de conteúdos expressamente pensados para o digital, mas também pela forma como filmamos os espetáculos, que deixarão de ser encarados como registos e ganharão a forma de uma obra em si.
Nos últimos anos, foste amplamente reconhecido enquanto homem do teatro com a atribuição de importantes prémios e distinções nacionais e internacionais (o Prémio Europa Novas Realidades Teatrais, a ordenação de cavaleiro da Ordem das Artes e Letras de França, o Prémio Pessoa). Que impacto têm estes prémios no teu percurso?
Os prémios são sempre embaraçosos para mim. Digo isto porque não vejo o trabalho artístico como uma competição e tenho horror aos pódios que perfilam os melhores de…, os melhores da sua geração, os melhores de todos os tempos, etc. No entanto, os prémios são uma enorme dádiva porque permitem ver orgulho em quem gosta de nós (a maior alegria que tive ao receber o Prémio Pessoa foi observar a felicidade da minha filha). Eventualmente, do ponto de vista de algumas pessoas, poderá existir uma certa mudança no modo como passam a encarar o meu trabalho, e espero sempre que essa atenção se estenda também a quem trabalha comigo e, de certo modo, a quem trabalha no teatro em geral. Um Prémio Pessoa para um artista de teatro ou uma distinção internacional para um diretor artístico de um teatro nacional português podem ser formas de dar visibilidade e carinho ao teatro e à criação artística em Portugal, embora não queira, nem deva assumir-me como representante de todos os artistas.
Toda esta consagração alterou alguma coisa no teu modo de trabalhar?
O trabalho que faço não pode ser conjugado no singular porque existe uma tremenda influência de quem trabalha comigo, sejam aquelas pessoas que o fazem permanentemente no TNDM II (como a Magda Bizarro, o André Pato, o Rui Simão, a Cláudia Belchior, a Carla Ruiz, entre tantos outros), sejam os atores que me têm acompanhado há anos. Uma boa parte do meu trabalho é devedora de artistas, como a Isabel Abreu, o Tonán Quito ou o Gonçalo Waddington… Acima de tudo, os prémios, ou essa consagração, confirmam a minha convicção num modo de trabalhar e de olhar o mundo. Uma visão que é profundamente coletiva e partilhada com os outros, aqueles que me ensinam ou que me influenciam.
No plano artístico, a pressão não se tornou crescente?
Encaro a criação artística como algo irregular e instável. Por isso mesmo, não vejo a visibilidade que fui ganhando como uma pressão. Movo-me sempre naquela ideia de que o próximo espetáculo pode não ter a qualidade do anterior. Mas até pode ter, ou ser até mais interessante ou, em última instância, ser só eu a achar isso. São consequências naturais da criação artística que é sempre um lugar de tentativa e erro e de aprendizagem, o que leva sempre a um lugar incerto onde não se pode ser sempre eficaz. O maior fascínio do teatro, para mim, é partir para cada espetáculo como um aprendiz que ainda não sabe como vai fazer e, por outro lado, saber que trabalho numa área onde ao final do dia não preciso saber se o resultado é uma cadeira ou um microchip. Tenho é que trabalhar e descobrir mais tarde o que resultou, ou não resultou.
Em 2020 deverias ter dirigido a Royal Shakespeare Company, em Inglaterra, com uma adaptação para teatro dos romances de José Saramago Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez. Há novidades sobre o projeto Blindness and Seeing?
Em bom português, e à semelhança de tantos projetos artísticos, está em “águas de bacalhau”. Chegou a ser completamente cancelado mas, entretanto, houve uma retoma de diálogo no sentido desse projeto vir a ser concretizado. Com muita pena, não o será até final de 2022, o ano em que se celebra o centenário de Saramago. Mas, não desisti do projeto, à semelhança de outros que vinha a desenvolver e que ainda não tinham sido tornado públicos.
Fora de “águas de bacalhau” está o teu regresso ao Festival d’Avignon, e desta feita com um dos espetáculos mais aguardados do ano no panorama teatral europeu, ou não estivesse, a encabeçar um grande elenco luso-francês, a atriz Isabelle Huppert. Este Cerejal de Tchekhov é o maior desafio da tua carreira até ao momento?
O próximo espetáculo é sempre encarado como o meu maior desafio neste caminho no teatro. Este tem a particularidade de envolver uma atriz que, para além de ser uma artista extraordinária, é uma das mais celebradas do planeta, o que faz com que a peça gere uma enorme expectativa. Mas, o espetáculo conta com uma equipa artística absolutamente brilhante, e que me honra muito dirigir. Por outro lado, a apresentação vai ser feita no Cour d’Honneur du Palais des Papes, que é o palco histórico, e o principal, do Festival d’Avignon.
O encontro com Isabelle Huppert é o culminar de uma cumplicidade artística há muito estabelecida entre os dois?
Vem, de facto, de muitas conversas que fomos tendo ao longo dos anos. A dada altura, confessei-lhe que se só pudesse encenar um texto que não fosse escrito por mim, seria certamente O Cerejal. E a Isabelle Huppert diz-me que o desafio que lhe faltava viver no seu percurso de atriz era interpretar Tchékhov, algo que, surpreendentemente, nunca fez. Nesse momento, acho que houve uma espécie de faísca, as coisas começaram a ganhar forma, envolvemos o Festival d’Avignon e, ao longo do último ano e meio, fomos dando forma ao projeto.
Quando começam os ensaios?
Começam já no próximo mês de maio, e irão decorrer entre Paris e Avignon, para estrear no Festival a 6 de julho.
O espetáculo entrará, meses depois, numa digressão que arranca, precisamente, em Lisboa…
Em dezembro, no TNDM II. Depois há várias datas já agendadas em 2022, com passagem por alguns grandes teatros europeus, como o Odéon em Paris.
Com tantas solicitações e projetos em curso, como é, por norma, a tua atividade diária?
A minha atividade diária é preparar espetáculos, escrever teatro, imaginar encenações, ou seja, estar dedicado à criação. E a isso acresce ser também o diretor artístico do TNDM II, algo que é muito desafiante e obriga a um uso do tempo muito intenso, ainda mais nesta altura. Mas, sem a faceta artística não teria combustível para enfrentar as dificuldades que esse papel comporta.
Se surgisse o desafio de dirigires um outro grande teatro europeu ou uma companhia de renome internacional, o que farias?
O meu compromisso com o TNDM II é, neste momento, absoluto, e a ele sou leal, transparente e radicalmente comprometido. Acho que há muito trabalho para fazer e é o único teatro que me vejo dirigir em Portugal, sobretudo agora, porque é uma história de amor consumada. Qualquer projeto futuro depende muito dos desafios e do projeto em si, e da possibilidade de continuar a trabalhar enquanto artista. Só começo a pensar no futuro quando esse futuro me entra pela porta dentro.
Mas tens essa ambição?
À exceção dos espetáculos, nunca fiz planos sobre o que iria fazer a seguir. Posso dizer que a lista de espetáculos que gostaria de fazer é suficiente para encher um caderno, e sei que nunca os irei fazer a todos. Como fui artista independente durante largos anos, habituei-me (e espero nunca o esquecer) a inventar os meios para fazer aquilo a que me proponho. Eduquei-me a imaginar muito à frente, mas nunca a planear um percurso. Logo, como não me vejo a dirigir instituições para o resto da vida, nem vejo o meu percurso como uma carreira, não sustento esse tipo de ambição. Porém, não digo que não haja por aí uma aventura absolutamente fascinante que me possa vir a bater à porta. Digamos que a porta está destrancada para a vida me colocar desafios e novas aventuras.