teatro
A condenação de uma serial killer portuguesa
Maria Henrique encarna "Luiza de Jesus - A Assassina da Roda"
Em 1772, Lisboa assistiu à condenação de uma jovem mulher acusada de ter assassinado 33 crianças, deixadas à guarda da Misericórdia de Coimbra. O facto histórico, vertido em livro por Rute de Carvalho Serra, é agora dramatizado no palco da Sala Estúdio do Teatro da Trindade, pela atriz Maria Henrique que, a solo, conta a história da condenação de Luiza de Jesus – A Assassina da Roda.
Uma entrevista à jurista, investigadora e cronista Rita de Carvalho Serra transmitida na rádio despertou na atriz Maria Henrique, conhecida do grande público, sobretudo, pelos seus papéis na comédia, a vontade de se (voltar a) desafiar enquanto artista. Em causa, o livro A Assassina da Roda, lançado em 2020 pela editora Guerra & Paz. “Ao ouvir a história daquela mulher condenada pelo assassinato de 33 crianças, senti uma vibração, quase como um acesso de loucura, e depressa recorri às redes sociais para entrar em contacto com a autora”, conta a atriz.
Foi o início de uma colaboração que está na génese do espetáculo, estreado a 29 de abril no Teatro da Trindade, não muito longe do local onde, a 1 de julho de 1772, padeceu aos olhos do povo da cidade a tenebrosa infanticida. Em palco, na companhia do músico Hugo Aristide, Maria Henrique encarna Luiza de Jesus, revelando episódios da vida de uma mulher e plantando no espectador a dúvida de estar perante “um monstro ou uma vítima” da justiça cruel da época, impiedosa no uso da tortura e da violência.
“Algo que me inquietou nesta história foi perceber como o recurso à tortura levava os processos judiciais a terem, de antemão, um fim determinado”, sublinha Maria Henrique a propósito das sevícias impostas a Luiza de Jesus durante o cárcere. Como lembra o advogado e investigador José António Barreiros, em texto integrante da folha de sala do espetáculo, “a condenação era a de que morresse, mas não sem que antes lhe decepassem as mãos e «atenazada» fosse, o que vale dizer queimada com um ferro em brasa; morte sim, enfim, não pela sufocação de uma corda que a asfixiasse, mas pelo garrote que a isso juntava a lenta perfuração do pescoço.”
No contexto da peça, a dúvida da culpabilidade surge no discurso em off do intendente Pina Manique, que se debate pela averiguação rigorosa dos factos, em contraponto com as “certezas” dos acusadores. Como lembra a atriz, “estamos já no declínio da Inquisição e era imperativo para o clero mostrar publicamente o seu poder.”
No seu ambiente espectral e na “não-linearidade” narrativa, Luiza de Jesus – A Assassina da Roda apresenta-se como um espetáculo de questionamento, em que uma personagem a priori monstruosa, ganha uma perturbadora dimensão humana. “E isso não quer dizer que se procure desculpabilizar seja o que for”, alerta Maria Henrique, lembrando que “as pessoas não são só uma coisa e nem sempre as histórias são tão lineares como aparentam.”
Um debate que, aqui, é o teatro a propor, mesmo que com uma história passada há mais de dois séculos, mas com pertinente atualidade quando os temas da justiça estão, por estes dias, no centro das atenções.