teatro
Uma estranha aventura fora da caixa
“Hamster Clown” de Ricardo Neves-Neves e Rui Paixão
E se, cansado de estar confinado na gaiola, um hamster se libertasse e decidisse enfrentar o mundo? Claro que, em Hamster Clown, a figura antropomórfica em cena não é propriamente a de um típico ratinho de estimação, e o mundo lá fora é ainda mais bizarro e desconcertante do que aquele em que os comuns mortais habitam (pelo menos, até prova em contrário!). Seja como for, estamos de volta ao universo surpreendente de Ricardo Neves-Neves que, em parceria com o performer Rui Paixão, leva sonho, fantasia, pesadelo, e tudo o que lá couber, ao palco do Teatro São Luiz.
A estranheza instala-se de imediato quando se sabe que este é o primeiro trabalho de um autor e encenador que, até aqui, privilegiou sempre a capacidade plástica e musical das palavras, seja nos espetáculo que dirigiu com os seus próprios textos, seja nos de outros autores (como Martin Crimp ou Copi, por exemplo). Mas, neste insólito Hamster Clown, estamos perante um “Ricardo Neves-Neves”… sem texto.
“Na verdade, já andava há algum tempo com a vontade de trabalhar um espetáculo que assentasse, sobretudo, no lado plástico”, confidencia. Até que ao ver alguns vídeos e fotografias do performer e clown Rui Paixão, “que não conhecia pessoalmente”, Neves-Neves percebeu ter encontrado o parceiro perfeito para uma aventura onde “a transfiguração do corpo e do rosto” assumisse o protagonismo para contar “uma história sem palavras.”
Estamos, portanto, no campo do teatro físico onde, como explica Rui Paixão, “a escrita é radicalmente diferente”. “Aqui, as imagens é que são as palavras, o que leva quem vê a poder ampliar vários significados”, explicita, lembrando que Hamster Clown se situa “num território de grande liberdade conceptual e interpretativa, que permite pôr em cena todas as ideias possíveis e imaginadas.”
É essa liberdade que permite ao espetáculo assimilar incontáveis referências, que percorrem o non sense e o absurdo, tão caros ao teatro de Neves-Neves, e toda uma panóplia de citações plásticas e sonoras, algumas mais explícitas e assumidas que outras, que vão do universo retrofuturista a Lady Gaga, passando por uma multiplicidade de menções que incluem a estética drag (Juno Birch, RuPaul), a leitura quotidiana da pop art (Norman Rockwell), a K-Pop, o cinema de terror (o ulular da coruja ou a luta com um polvo) ou até a escultura renascentista e a pintura de Hyeronimous Bosch.
E tudo começou, como explica Rui Paixão, com a ideia proposta por Neves-Neves de “um hamster que vive dentro da gaiola e consegue escapar”. É a partir da fuga que começa o espetáculo. Através de um “longo e experimental” processo de trabalho, a dupla de criadores desenhou um personagem que assume formas distintas, que o levam do hámster que quer ser humano, ou vice-versa, à figura andrógina ou ao monstro alienígena – notáveis trabalhos de caracterização de Cristovão Neto e de figurinos de Rafaela Mapril.
O que se torna simultaneamente estranho e fascinante em Hamster Clown é a inexistência de limites temporais ou espaciais que possam impedir a fluência da imaginação – previamente, a dos artistas; posteriormente, a nossa enquanto espectadores. A partir do momento em que aquela figura antropomórfica sai da gaiola, começa a aventura de, nós mesmos, sermos colocados permanentemente “fora da caixa”.
Hamster Clown estreia a 23 de junho no São Luiz Teatro Municipal, onde permanecerá em cena até 4 de julho, seguindo depois para Loulé (16 a 18 de julho), Ovar (30 de julho), Odivelas (15 a 17 de outubro), Braga e Ílhavo (em datas a anunciar).