entrevista
Sílvia Real
"Sempre gostei de abordar questões sérias de uma forma por vezes brincalhona"
Na semana em que estreia, no São Luiz Teatro Municipal, a nova criação de Sílvia Real, Concerto nº. 1 para Laura, em colaboração com Francisco Camacho, entrevistámos a coreógrafa e cofundadora da Real Pelágio. O resultado é uma quase história da dança na primeira pessoa e um testemunho sempre atual.
Quando olha para o panorama das artes performativas de há 25 anos (1997, o ano da fundação das Produções Real Pelágio) e de hoje, que reflexões lhe surgem dessa comparação?
Muitas coisas melhoraram, mas muitas continuam exatamente na mesma. Há 25 anos, andei com o coreógrafo Francisco Camacho porta a porta pelo país fora, a tentar convencer programadores e presidentes/vereadores de câmara a apresentarem os nossos espetáculos. Queríamos teimosamente provar que a dança que se fazia na altura em Portugal poderia ser vista por qualquer pessoa, de norte a sul, inclusive elaboramos um “dossier de circulação” que disponibilizámos depois à comunidade; um esforço enorme cuja repercussão ainda hoje a sentimos. Muitos dos nossos coprodutores dessa altura continuam a receber-nos.
Em Portugal, a dança tem um lugar evidente nas artes performativas, existem muitos mais coreógrafos jovens a trabalhar nesta área, existem muitos mais festivais, pequenas associações, estruturas de artistas que apoiam outros artistas, ou seja, a comunidade cresceu muito e isso é muito positivo. O que mudou muito pouco ou nada é que infelizmente os nossos políticos, independentemente dos partidos a que pertencem, continuam a não alterar o orçamento para a Cultura, continuamente subvalorizado, o que faz com que companhias e associações de artistas vejam os seus projetos acabar por falta de recursos, ou façam uma ginástica inadmissível para sobreviverem (e muitos não conseguem), para continuarem e para adaptarem os seus projetos à precariedade.
Muito sinceramente, acho que a falta de interesse nesta área é evidente! Quantas pessoas, ministras, ministros, deputados vimos nas salas de espetáculos? Lamento dizer, mas raramente, e isto prova realmente onde estamos ainda…
Outra dificuldade que encontramos e que persiste na área da educação pelas artes, e é evidente no projeto das Produções Real Pelágio, e certamente em muitas outras estruturas que trabalham paralelamente estas duas grandes áreas é, se por um lado o Ministério da Educação (ME) considera que o nosso trabalho, por sermos maioritariamente artistas, deveria ser mais apoiado pelo Ministério da Cultura (MC); o MC entende que o ME deveria apoiar-nos mais porque o nosso projeto inclui crianças, jovens e toda uma vertente mais pedagógica. Isto não faz sentido nenhum. A educação pelas artes acaba sempre por ser uma área por vezes invisível. O esforço em trabalhar com escolas, direções e crianças, é enorme, e nós acreditamos que é imprescindível este contacto e que deveria chegar a todas as escolas, mas sentimos que não é valorizado e apoiado de forma consistente.
Como perspetiva os próximos anos de atividade das Produções Real Pelágio (PRP)?
Neste momento, temos uma equipa extraordinária, e tudo o que fazemos deve-se a muito diálogo, muita reflexão constante entre todas e todos. O núcleo principal são seis pessoas, mais seis professores regulares que trabalham nas escolas A Voz do Operário (VO), nossa parceira há cerca de 10 anos, e a Escola Básica do Castelo, a que se juntam pontualmente vários artistas com quem trabalhamos projeto a projeto.
Este ano, pela primeira vez, conseguimos ter contratos de trabalho (três a tempo inteiro e três a part-time), o que é incrível. Estamos no Teatro da Voz (espaço cedido pela escola VO, uma parceria exemplar inédita entre artistas e uma escola), que é a nossa sede, onde para além dos nossos ensaios e de vários projetos e artistas que apoiamos, temos o Centro de Formação Artística, onde damos aulas extracurriculares para além das aulas que levamos às escolas.
Finalmente temos um site atualizado disponível… e muitos projetos na cabeça. O que espero sinceramente é que o MC compreenda que existem muitos projetos tal como o nosso, que não podem, nem devem deixar de ser apoiados quando elegíveis, por falta de visão e de investimento político e estratégico, mas é o que acontece. E acabam assim de um dia para o outro. As Produções Real Pelágio já estiveram para acabar várias vezes, para destruir a equipa porque o dinheiro não chega, mas graças a apoios de coprodutores e a apoios sustentados e continuados como o da Câmara de Lisboa e outros, continuamos a resistir, mas não sem grandes ansiedades. Temos um percurso, isso é garantido e é uma conquista feita à custa de muito esforço.
Quais dos protagonistas da Dança pertencentes à sua geração considera seus “companheiros de estrada”, e que tipos de ligação mantêm hoje uns com os outros?
Gosto muito de trabalhar em dupla, acho que penso melhor! Quando tenho a oportunidade, gosto de partilhar as minhas dúvidas constantes, pois duvido muito do que penso, da maneira como danço, daquilo que faz sentido apresentar num palco, constantemente. Esse diálogo para mim é imprescindível. Acho que pessoas muito importantes para mim foram, sem dúvida, o João Fiadeiro, a Vera Mantero e tantos outros.
No entanto, há três pessoas que destaco, meus parceiros indiscutíveis e que determinaram tudo o que fiz e faço, e me mudaram e me ajudaram a ser quem sou! Artisticamente, e não só. Uns pelos longos anos com que trabalhei e trabalho, mas também pela a intensidade que envolveu cada colaboração, a cumplicidade existente:
O Luís Filipe Quitas, dramaturgo, ator (1964-2016), coautor da encomenda para o espetáculo POUR BIEN. Eu tinha 23 anos, e este espetáculo foi o culminar de todos os meus devaneios e inquietações resultantes de uma adolescência muito intensa, sofrida, mas com momentos inesquecíveis e muito bons. Aos 15 anos fui viver sozinha para Londres, e foi regressar a Portugal e querer colocar tudo num mesmo espetáculo, quase como a minha apresentação a uma nova comunidade que começava a conhecer… Com o Filipe aprendi que tudo é possível colocar em palco, desde o mais foleiro ao mais erudito, desde que bem sustentado! O Filipe ensinou-me que tudo é possível, que a nossa imaginação não tem limites e essa liberdade marcou-me profundamente e para sempre.
Outro é o Sérgio Pelágio, cofundador das PRP, coautor e músico de vários espetáculos, parceiro numa digressão de cerca de 300 espetáculos durante 25 anos, entre os quais a trilogia da Sra. Domicília, personagem que ambos construímos quando estávamos a estudar em Nova Iorque e que durante cerca de 15 anos apresentámos em diferentes locais, de festivais de pequena e grande dimensão a espaços alternativos, aceitávamos tudo! Queríamos na altura provar que a dança portuguesa poderia circular! Muitas digressões em Portugal e no estrangeiro, éramos a certa altura quase uma “banda rock”, até conseguimos comprar uma carrinha para as nossas digressões. Neste momento, o nosso percurso é mais independente, mas aquilo que aprendi com o Sérgio está sempre em tudo o que faço! Durante muitos anos costumava dizer que as ideias, as grandes ideias dos vários espetáculos sempre foram do Sérgio, eu limitava-me a colocá-las na prática e sempre foi assim… o Sérgio era muito mais do que um músico, escrevia guiões, trabalhava a dramaturgia, dava ideias para ações, adereços, maneiras de me movimentar, etc…
E o Francisco Camacho, com quem há uma relação artística e de amizade de 30 anos. Foi a coreógrafa, bailarina e grande produtora (do Festival Danças na Cidade), a Mónica Lapa, que me apresentou ao Francisco quando regressei de Londres onde tinha estudado dança durante cinco anos, tinha 20 anos e não conhecia ninguém. As colaborações entre nós durante este 30 anos foram muitas: Bute-Bute (1992) onde o Francisco foi meu intérprete e seguidamente fui intérprete de vários espetáculos dele (Live-Evil, Andiamo!, Lost Ride, e recentemente VELHⒶS), para além disso coabitámos (EIRA e PRP) um mesmo espaço de trabalho durante cerca de oito anos. Ainda colaborámos ambos como intérpretes num espetáculo (Espiões) de Filipa Francisco. As afinidades são evidentes, artísticas, estéticas, mas também a outros níveis, que partilhamos regularmente, como por exemplo ao nível da produção do nosso trabalho. Com o Francisco, durante os ensaios há por vezes uma empatia muitas vezes quase telepática, ele comenta algo e era exatamente isso que eu queria dizer… Quando convidei o Francisco para coreografar um solo para mim, o Lost Ride, foi precisamente porque adorava e adoro a maneira como ele me dirige, diz-me as coisas que preciso ouvir, dando-me liberdade e ao mesmo tempo sempre exigindo grande rigor. Admiro profundamente o trabalho dele e o seu olhar exterior nas minhas últimas criações (A Laura quer!, e este Concerto n.º1 para Laura) determinam certamente o resultado.
No balanço a que se impôs durante a pandemia, passou-lhe pela cabeça largar tudo e dedicar-se a outra coisa?
Sim e não! Não sou uma desistente, nunca fui, sou muito teimosa, quando está tudo “a cair” sou daquelas que vê sempre ainda uma solução! Tive momentos muito trágicos na minha vida (pessoais e profissionais), mas quem não tem? Sinto-me sempre uma privilegiada e nos momentos piores tento sempre pensar que há pessoas em situações muito piores e são muitas.
No entanto no primeiro confinamento, tal como todo o mundo, andava perdida, pensava que a fazer outro projeto era urgente arriscar muito, era esta a altura, quis estar mais presente dentro da comunidade, porque acabamos por partilhar muitas vezes dentro de uma equipa, e deixar mais de lado uma comunidade incrível de artistas à nossa volta; juntei-me à ação cooperativista e quis ajudar outros que precisavam mais. Foi muito importante, e ainda é, este grupo informal que continua em voluntariado a ajudar… Mas passei momentos muito solitários, as PRP estavam nesta altura num impasse, o Grupo 23: silêncio! (uma digressão via-se obrigada a ser interrompida e por questões de falta financiamento tinha de ser extinto), mais uma vez não tínhamos sido apoiados pelo MC apesar de elegíveis e era altura de restaurar tudo novamente, despedir pessoas, etc… e com a pandemia tive uma onda de pessimismo enorme, salvou-me como me salva sempre ir para o estúdio e dançar, pesquisar, cantar, incentivar e isso acalmava-me. Ainda sem tudo certo, mas tentava retirar forças para continuar e uma coisa era certa, não queria ficar sentada no sofá a ver o mundo a colapsar, tinha de agir!
O que distingue a receção ao seu trabalho em Lisboa, no resto do país, e no estrangeiro?
Tenho tido experiências muito diferentes, festivais muito ecléticos e salas muito informais, escolas… e esse confronto interessa-me muito! O que é que as pessoas retiram que aos profissionais às vezes lhes escapa? As crianças e os jovens às vezes diziam pelo seu lado mais ingénuo, e até por vezes corrosivo, aquilo que precisava de ouvir para alterar algo, para compreender o que estava a fazer (um desenho de uma criança chegou a ter a chave para o final de um dos nossos espetáculos – o Tritone). Em relação ao estrangeiro, como raramente somos conhecidos, há um lado também muito original. Por exemplo, quando fomos ao Brasil (Festival Panorama, a convite da curadora e produtora Catarina Saraiva) ou um festival em Liubliana, onde apresentámos o Casio Tone há alguns anos. Foram momentos especiais e inesquecíveis.
Quem foi a pessoa que mais lhe abriu a cabeça para tudo o que é possível fazer num palco?
Há três pessoas, como disse anteriormente, mas se tiver de nomear uma só, foi o Sérgio Pelágio.
Concerto nº. 1 para Laura oscila entre a melancolia, a energia xamânica que parece desejar um qualquer exorcismo, e um registo paródico que desconstrói estereótipos da cultura popular. Concorda com esta leitura?
Gosto da sua interpretação e fico contente pela sua visão sobre este Concerto. Sempre gostei de abordar questões sérias de uma forma por vezes brincalhona! Neste espetáculo, revejo momentos trágicos e muito hilariantes do meu percurso… mas, para não tornar este espetáculo demasiado autobiográfico (nunca foi essa a intenção), o facto de trabalhar com dois intérpretes mais jovens que nunca viram os espetáculos anteriores da Real Pelágio, espero ter conseguido retirar alguma melancolia inevitável.
Gosto de misturar materiais improváveis num mesmo contexto, por exemplo, citações musicais de Erik Satie e Igor Stravisnsky, juntamente com canções como Set the world on fire, (The Ink Spots) ou You dont know what love is (Don Raye/Gene DePaul) ou ainda canções originais de Sérgio Pelágio como é o caso de Pour Bien (Pour Bien/1995) e Ahora No (Road Movie/1996). Baralhar, rir e chorar ao mesmo tempo…
Não sendo música nem cantora, a música sempre teve um papel fundamental na minha vida, ouvia muito música punk na minha adolescência, mas também rock, jazz, música clássica, contemporânea, mas também alguma música foleira abraçava diferentes géneros musicais. Considero-me uma pessoa foleira. Gosto de sentir a liberdade de poder misturar materiais improváveis e, eventualmente, pouco coerentes vindos de uma mesma pessoa. Sim, desejo mudança, desejo que o que faço transpire essa vontade de agir e de querer transformar… se isso for evidente, fico muito contente!
O que procura transmitir aos bailarinos mais jovens, como a Beatriz Valentim e o Magnum Soares, que consigo colaboram neste espetáculo?
Procuro dar-lhes toda a confiança para não desistirem, que na idade deles é possível passarem momentos mais precários e financeiramente questionarem a profissão, mas com o talento que ambos têm, não devem desistir! Dizer-lhes sempre que nunca devemos colocar nada em palco que não tenhamos certeza de que chegamos ao melhor possível… não ter demasiadas certezas! A dúvida é saudável. E falar de coisas sérias a brincar também é fundamental! Nunca se levarem demasiado a sério! Nas suas ideias e na vida em geral.
Quem é Laura, nome por mais de uma vez citado nas suas criações?
Esta reposta não posso dar. É um enigma. Cada espetador retirará as suas conclusões, mas para isso terá de ir ver! É uma espécie de MacGuffin, uma ideia que veio também de todo o nosso fascínio (meu e do Francisco) pelo cinema em geral, e muitos realizadores que ambos admiramos profundamente, a exemplo Ingmar Bergman, Hitchcock, Tarkovsky, Kubrick, Cassavetes, e tantos outros. No início dos nossos processos começamos sempre por ver muitos filmes e levamos, de alguma forma, estes imaginários para dentro dos ensaios e das improvisações. E é a segunda vez que este nome surge no título de um trabalho nosso.