teatro
O que os “guilty pleasures” dizem sobre nós
"Maráia Quéri" estreia no Teatro Nacional D. Maria II
Aquilo que começa como a exposição de um trabalho académico sobre o prazer e a culpa, tendo como epicentro a música que se ouve e que, eventualmente, se tem vergonha de ouvir, acaba por evoluir para um exercício confessional e biográfico. Romeu Costa abre o “armário” em Maráia Quéri, a sua mais recente colaboração com Marta Carreiras, depois de Pedro e o Capitão.
Um projetor de acetatos, uma secretária, um teclado, um velho gravador de áudio para cassetes e um ecrã em fundo, é quando basta para Romeu Costa dar início a esta conferência-performance. Talvez seja prematuro, neste ponto, identificar o homem que nos fala pelo nome próprio e apelido quando, ele mesmo, apenas se anuncia como “Romeu”, assumindo, à boa maneira académica, a primeira pessoa do plural, o “nós”, para se dirigir à audiência.
Este investigador em Ciências Sociais dedicou-se, nos últimos tempos, a estudar a ligação entre o prazer e a culpa, usando as preferências musicais como reveladoras daquilo que somos. Mas, paulatinamente, a conferência científica, baseada em conceitos e números, vão revelando um ser humano que se martirizou durante anos por ter como “guilty pleasure” (à falta de melhor tradução, “prazer culposo”) a música pop cantada pela norte-americana Mariah Carey.
Afinal, quantos prazeres permanecem em segredo por vergonha e, no limite, nos impõem uma noção de culpa só porque podem ser censurados socialmente?
A entrada em cena da cantora de All I Want for Christmas is You (canção que, segundo um estudo científico evocado, potencia maior disponibilidade para fazer compras a quem a ouve no interior de lojas durante a quadra natalícia) vai diluindo o “nós” no “eu”. E estamos no território do “guilty pleasure” de Romeu Costa, aquele que foi, na década de 90 do século passado, um rapaz de Aveiro, homossexual, que ouvia e vibrava em segredo com os hits de Mariah Carey. “Há uns anos, eu não me atreveria a falar em público sobre a minha paixão por ela ou confessar que sei de cor a letra de Without You”, confessa o ator.
Marta Carreiras, que assina com Romeu Costa a direção artística do espetáculo, crê que, ao abordar esta temática do “gosto” como Maráia Quéri o faz, se lança para o debate “a necessária crítica ao cânone produzido pela academia bem pensante”. Afinal, “o que é isso do gosto que inclui e exclui, o que é isso da alta e da baixa cultura?”
Do mesmo modo, Romeu Costa, ao assumir como a figura da estrela pop se tornou parte da própria vida, e permitindo traçar com a vergonha do “gosto” uma analogia com a sua homossexualidade, chega mesmo a questionar “quem é que pode definir se Mariah Carey é ou não é boa música. Serão os mesmos que durante tanto tempo definiam que ser heterossexual é que é bom?”
Com a densidade dramática de uma confissão, o espetáculo acaba a gizar um retrato do próprio país, da última década do século passado até aos dias de hoje, e consequentemente do lugar desse mesmo país no mundo. Talvez por isso, e até no título “aportuguesado”, Maráia Quéri seja, como a dupla de criadores sintetiza, “um espetáculo sobre inclusão em oposição a exclusão.”
Com estreia remarcada para 16 de fevereiro, está em cena, na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, até 6 de março.